domingo, 25 de junho de 2023

Choque elétrico nas “senzalas modernas”

 



                                                 *Cesar Vanucci

 

choque elétrico e “spray” de pimenta eram aplicados nos “trabalhadores”” (fiscal do MT acerca das condições de trabalho em Bento Gonçalves)

 

Este nosso mundo velho de guerra, mundo do bom Deus onde o tinhoso costuma implantar detestáveis enclaves, continua nos surpreendendo com suas inimagináveis narrativas. Algumas de arrepiantes impactos. Ferem direitos sagrados. Alvejam em cheio a dignidade humana.

Caso sem tirar nem pôr dessa inacreditável notícia de trabalho escravo em Bento Gonçalves, Rio Grande do sul. Ampla divulgação pela mídia acentua que o Min. do Trabalho flagrou em vinícolas da região condições de trabalho análogas ao da escravidão. Resgataram 207 operários submetidos a degradante tratamento. As “modernas senzalas” dispunham de aparelhos de choque elétrico e de “sprays” de pimenta utilizados na “relação trabalhista”.  Situações assemelhadas têm sido identificadas pela fiscalização noutras partes do país.

Humanistas, defensores dos direitos humanos, cidadãos dotados de sensibilidade social se perguntam, tomados de estupefação e santa indignação, como algo desse gênero pode prosperar em pleno século XXI, molestando tão ruidosamente os brios da nacionalidade e envergonhando um setor produtivo relevante no plano econômico. Provocou pasmo argumento atribuído à representação das organizações pilhadas em flagrante delito trabalhista, ao proclamarem que o trabalho escravo está relacionado com a falta de mão de obra.

O chocante episódio reavivou em minha memória história ocorrida a mais de meio século. Relato-a em seguida.

O antigo "Correio Católico", vibrante diário (mais de 10 mil assinantes) da arquidiocese de Uberaba, e que provocou também reações enfurecidas de setores radicais, que insistiam em nada ver de reprovável na ocorrência, estava ligada ao tráfico de seres humanos transportados como mercadoria nos chamados "paus-de-arara". De quando em vez, década de 50, um desses caminhões, atulhados de nordestinos escorraçados pela seca, atraídos pelas imagens mirabolantes do tal sul maravilha, despejava sua carga nas imediações do Mercado de Uberaba, defronte à sede da Delegacia Regional de Polícia. O que vinha na sequencia daria para estarrecer as imagens de pedra dos profetas enfileirados por Mestre Aleijadinho no átrio da Igreja de Congonhas. O leilão humano se desenrolava debaixo da passividade geral. Lembrava leilão bovino. As ofertas eram precedidas de exames físicos aviltantes, meticulosos. Operada a transação, a mercadoria, ou seja, o ser humano adquirido, era conduzido a área próxima, devidamente cercada e vigiada. Permanecia ali até que o conduzissem, com os companheiros de desgraça, ao seu destino final. Dos compradores dizia-se serem "generosos credores" dos "trabalhadores rurais" recrutados no tenebroso processo. A esses últimos sobrava a "prerrogativa" de, em esfalfante lida rural, poderem algum dia quitar os débitos e, quem sabe até, ganhar de futuro sua "alforria", minha Nossa Senhora da Abadia!

A denúncia do jornal explodiu na Câmara dos Deputados. Estimulou até mesmo, em certa ocasião, uma ação de resgate, executada com precisão de comandos israelenses. Ela foi articulada por cidadãos bem situados na comunidade. Nas caladas da noite, deram fuga a um grupo que havia sido "leiloado" na véspera, na porta do Mercado, defronte a Delegacia Regional de Polícia, para prestar serviços a uma meia dúzia de "senhores feudais" responsáveis pelo pagamento dos custos da "viagem" aos donos dos "paus-de-arara". O pessoal libertado foi recolhido, por dias, aos vestiários do estádio "Boulanger Pucci", do Uberaba Sport, por iniciativa do presidente do clube, Rafael Angotti, o Bolão. Lá fora, as intensas buscas para se saber do paradeiro dos fugitivos resultaram infrutíferas. Com a solidariedade das pessoas que os arrebataram do regime de trabalho escravo das previsões iniciais, homens, mulheres e crianças puderam regressar aos seus pagos nordestinos.

 


Jornalista(cantonius1@yahoo.com.br)

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