sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Celebrando o Dia da Consciência Negra

Cesar Vanucci

“Mas não se trata de raças, senão das variedades
de uma mesma raça, de uma mesma espécie...”
(Anatole France)

A cena, de fascinante simbolismo, ficou gravada na memória velha de guerra. Na entrevista na agência de empregos, preenchendo convencional questionário, a jovem negra, de altivo semblante, anota no quesito “raça” a expressão “humana”. Recusa-se, com polidez, mas firmeza, a alterar o registro feito, contrariando a insistente alegação do funcionário do atendimento de que estaria ocorrendo, no caso, uma quebra do protocolo burocrático.

Noutro lance, numa repartição de Registro Civil, o artista famoso confronta, com serena, mas inflexível determinação, objeção levantada por alguém, do lado de dentro do balcão, a respeito do nome dado à filha. “Sim, senhor. Este o nome de minha filha: Preta. Preta é um nome tão lindo quanto, por exemplo, Clara.”

Estes dois emblemáticos episódios remetem este desajeitado escriba, incorrigível caçador de quimeras, a evocar o “Recado de Zumbi”. Repetir o recado é preciso. Sobretudo em instantes confusos como os de agora, em que a intolerância racial se revela contundente, escancarada ou dissimulada. É só por tento no noticiário nosso de cada dia.

De tempos distantes chegam até nós, nesta hora, o clamor e a ânsia de liberdade de Palmares. A lendária figura de Zumbi se introduz nas atenções populares, em sua grandeza épica, carregando sonhos e esperanças de libertação. São sentimentos válidos não apenas para aquele momento vivido e sofrido do holocausto negro, em que o abençoado irredentismo do herói da raça cravou presença na história. Aproveitam a todos os instantes, épocas e lugares onde a insanidade encontra terreno propício para cultivar o germe da divisão dos homens pela cor e pela etnia.

A mensagem de Zumbi, tradicionalmente relembrada nas comemorações da "Semana da Consciência Negra", é de ofuscante atualidade. Aborrece o desvario radical, as posturas acomodadas, as reações hipócritas. As atitudes cotidianas que asseguram, em tantas partes e setores deste planeta azul, a cobrança implacável e interminável de um tributo de dor e humilhação às pessoas de epiderme escura. Contra elas, em nome de ostensiva ou encapuzada, mas sempre despropositada e falsa supremacia racial, são colocadas em movimento, mais exacerbadas aqui, mais brandas ali, as engrenagens do ódio, da ignorância e da opressão e, também, da indiferença e da omissão, que conseguem às vezes magoar e ferir tanto quanto.

Sendo de conteúdo universal, dizendo respeito a uma questão de essência no capítulo dos direitos fundamentais do ser humano, o recado de Zumbi dos Palmares foi feito para alcançar todos aqueles territórios do Atlas Geográfico em que se pratica discriminação, em que se cultiva racismo. Serve de reforço no combate ao segregacionismo em que se acha empenhada a poderosa sociedade democrática do país do saudoso Martin Luther King. Experimentando alívio diante dos bons resultados já alcançados e alguma expectativa quanto aos futuros desdobramentos, acompanha as evoluções no processo de integração conduzido na origem pelo sempre lembrado Nelson Mandella na África do Sul. Alenta e encoraja grupos minoritários perseguidos e ultrajados em largas extensões deste mundo de Deus onde o diabo costuma plantar seus indesejáveis enclaves. Confronta clima permanente e dolorido de desconfiança, a partir das inquirições e revistas de bagagens diferenciadas nos postos alfandegários, com que são recebidos em países da Europa e nos Estados Unidos turistas e imigrantes negros ou de outros segmentos discriminados. O recado de Zumbi convida a comunidade a uma séria reflexão. O que remete logo à necessidade de se conhecer nas exatas proporções os problemas enfrentados, nestes nossos pagos, pelos descendentes africanos.

Poderemos voltar a falar disso posteriormente. Mas, antes, que tal ligar os aparelhos de reflexão para anotar este impecável conceito de Anatole France a respeito do assunto? Assim falou o mestre: “Na maioria das vezes é tão difícil distinguir num povo as raças que o compõem como seguir no curso de um rio os riachos que nele se jogaram. E que é uma raça? Há realmente raças humanas? Vejo que há homens brancos, homens vermelhos, homens amarelos e homens negros. Mas não se trata de raças, senão das variedades de uma mesma raça, de uma mesma espécie, que formam entre eles uniões fecundas e se misturam constantemente.”

Coisas para se comer rezando


Cesar Vanucci

“Que pena que isto não seja pecado!”
(Exclamação de uma princesa italiana,
citada por Stendhal, ao saborear uma taça de sorvete)


Como todo cara normal, de bem com a vida, sou fissurado em sorvete, pipoca e chocolate. Estou até a fim de requerer patente de um processo que bolei para saborear, “conjuntamente juntas”, essas iguarias. Não receio nem um tiquinho possa a divulgação de tão sacrílega prática gastronômica atrair admoestações e censuras de abalizados endocrinologistas ou empertigados donos de passarelas. Garanto, em reta e lisa verdade, tratar-se de receita subtraída do cardápio domingueiro do Olimpo. Coisa pra se comer, genuflexo, rezando.

Qualquer vivente interessado em se apoderar dessa dádiva dos deuses deve observar o procedimento indicado. Pegue, primeiro, algumas bolas de sorvete cremoso, despejando-as numa terrina. Ao depois, lance uma calda achocolatada sobre o sorvete. Ninguém irá reparar se, nessa fase da preparação da receita, fraquejando diante da tentação de mergulhar o dedo indicador na calda, levá-lo disfarçadamente à boca. Numa tigela de bom tamanho coloque, em seguida, a pipoca. De sal e caramelada, doses harmoniosamente iguais. O recomendável, na sequência, é carregar tudo para canto isolado da casa. Lugarzinho provido de aparelho de som, onde possam ser ouvidas, como fundo musical, composições (de preferência orquestradas) de Villa Lobos, Ary Barroso e Tom Jobim.

Composto o repousante cenário, com todos os apetrechos descritos ao alcance das mãos, o jeito, agora, é curtir, com a máxima intensidade, o mágico instante. fazê-lo na base da degustação lenta, esvaziando com a colher e com a mão, alternadamente, o conteúdo dos dois recipientes.  O privilegiado momento assegura a certeza de que o Yuri Gagarin tinha razão: a terra é mesmo azul. E dentro dela não há lugar, jeito maneira, para guerras, fanatice fundamentalista, Donald Trump, corrupção, preço exorbitante de remédio, tráfico de drogas, violência urbana, atentados à cultura, preconceitos de toda ordem e as mil e uma outras mazelas de nosso maltratado cotidiano.

Estou convencido de que essa compulsiva predileção por sorvete, pipoca e chocolate, em meu caso específico, é mal incurável de nascença. Tem a ver com o DNA. Admito, também, que foi atiçada pacas, na infância e adolescência, por inexplicável veto formal – nascido de implicância descabida – aplicado nos cinemas ao ato inocente de se comer pipoca ou se tomar sorvete durante as projeções. O espectador flagrado em delito era convidado, com aspereza, pelo lanterninha, a retirar-se do recinto. O rígido código das proibições previa a possibilidade de se barrar vexatoriamente o acesso do infrator a futuras sessões, pela extrema gravidade do delito praticado.

Como os frequentadores de cinema de hoje estão em condições de atestar, a mudança foi radical. Para melhor. O freguês está autorizado a levar pro escurinho do cinema pacotes descomunais de pipoca, adquiridos em balcões contíguos aos guichês onde se vendem os ingressos. Pode se empanturrar também com sorvete e chocolate, no andamento do filme, se isso for de seu especial agrado. Aos encarregados pela manutenção da ordem pouco se lhes dá, igualmente, nos dias de hoje, que casaizinhos enamorados repitam, com ardência que muitas vezes suplanta as cenas da tela, os efervescentes colóquios amorosos da trama projetada. Algo bem diferente daqueles tempos passados, onde beijo roubado ou consentido, detectado pelo zeloso lanterninha, era anotado no livro de ocorrências sobre atos desrespeitosos às posturas morais vigentes como um pecado mortal, sem remissão.

Voltando ao sorvete. Vez em quando saio por aí, louvado nalguma dica, à cata de um novo tipo de produto surgido na praça. Num desses feéricos e coloridos templos da vida moderna, de intermináveis e atrativas ofertas, chamados shoppings, onde todos exercitamos fervorosamente nossa insaciável devoção consumista, travo conhecimento com invenções de moda inusitadas, nesse particular. Na onda de babaquice que nos assola, o sorvete já não é mais só sabor. Vira também dissabor. Tudo por causa dos apelidos que resolveram aplicar-lhe em diferentes pontos de venda. Num deles sorvete é mac qualquer coisa. Noutro, é sorbete. Noutro ainda, gelato. Com preços variáveis entre R$ 2,50 a R$ 15,00 a bola, os produtos, forçoso reconhecer, são deliciosos. Difícil de digerir são os apelidos. Frescurice vocabular em alto grau. Melhor dizendo, tendo em vista do que se trata, no mais baixo grau de temperatura.



UMA TOCANTE HOMENAGEM FILIAL

No percurso de passamento do pai querido, olhar apaixonado da filha Maria Inês Chaves de Andrade, secretária da Amulmig.

08.11 - Data de falecimento

A história tem vida própria, eu sei. E soube disto no exato momento em que o entendimento em mim se sedimentou porque sou só erosão. Aprendera a ter fé. Pois, muito antes de saber do Pai soube de chamá-lo assim, porque criança sabe muito antes de mais nada e ninguém que Ele está ali. Então, de repente, o Pai chama o pai e o abrupto é a gente dizer para a criança interior da gente que eles, afinal, não são os mesmos. Logo para ela que aprendera que  Ele era imortal. Quem? Pai não morre nunca, ensinou-lhe o pai, é eterno. Sorte a minha, pensava a menina pensamento de criança, sem entender direito embora Direito fosse entender depois, porque quando ela cresceu e virou mulher, ele já era mesmo imortal e ela esqueceu de os distinguir.  Ser filha de Deus nunca foi fácil, como agora Ele quer que eu entenda, definitivamente, que ele não é Ele. Então, entendi que dói muito quando deus morre. Agora, tudo que aprendi com ele sobre Ele reverberou em mim, em tom grave, tão agudo seja o instante em que a fé purga de tanta convicção. Deus e meu deus se convergiram para que a integridade dialetizasse e imagem e semelhança perfizessem um ser humano ante quem me prostro reverente. Prof. Doutor Aloízio Gonzaga de Andrade Araújo, a  história  tem vida própria, pai, a que o Pai diz que é seu epílogo aqui por agora e a gente nem sugeriu instante. Mas, é que esta criança interior que é minha, esta que levada nunca se deixa levada pelo que não quer, tem uma fé inarredável na divindade do ser humano porque passei toda uma vida, convivendo com a sua humanidade, pai, e continuarei acreditando em si na perpetuidade dessa sua essência tanta a pressinta recendente em toda sua família humana de Pai Nosso.  Muito obrigada, então, papai, por toda dádiva de tê-lo sempre presente. Dia do meu aniversário/2019.

9.11 - Primeiro dia seguinte aos seguintes dias sem primado

Enluto


Estar de luto...  A falta dele é substantivo que verbaliza demanda de mim, tão primeira pessoa seja nesta hora, não havendo ninguém que me acompanhe sofrida, mesmo que me aperceba doutros sofrimentos em meu entorno por conta dele também.

Eu luto e meu luto. Minha alma é breu e luz, possa vestir preto enquanto busque a Deus, adeus não tenha aprendido a dar sem Ele – vá com Deus, fique ainda, seja a única companhia possível porque toda solidariedade, de repente, é nada se tudo é ausência e só.
Por isso, solidão, tão sólida seja a partida, esfarelando-se a integridade da menina até então. Toda solidez foi desmoralizada ante a grandeza da lacuna dele que me precipitou ao solo. Sofrimento solo é isso. Experiência singular de precipício, escalavrada a alma, lavrada mesmo às escâncaras tão exposta às intempéries e destemperos fique.
Ela perdeu o pai e o Pai a acolhe para que a mulher chegue inteira para o enfrentamento da dor da menina. Inesinha de tanta fé está febril porque só nela reconhece o amálgama dos destinos na tessitura dos desígnios de Deus.


Possa escutar-me, ouço-me no limite de toda solidariedade que me disponha a acolher, receba todos os beijos, e abraços, e afetos que me deem. Mas o silêncio remanesce histérico e de braços abertos me crucifico em cada um como tenha sido em você. E só o Cristo em mim reconhece o propósito da história dos homens.

Meu sujeito na primeira pessoa que sou conjuga em mim sentimento e solidão e eu luto.
Ensimesma-se toda pessoa e sei que luto, também: minha mãe, luto; seus amigos, luto; todos os filhos, luto e seus irmãos com os meus, luto.
O imperativo se imputa imperador - impera a dor acima de tudo porque luto eu e a mim me impondo lutar tão inarredável seja o enlutar - o eu de cada um e o luto em si lutado.
Como estou, meu amado?!
Pois, em luto...

sexta-feira, 22 de novembro de 2019


Histórias de Marildinha

Cesar Vanucci

“Acontece, às vezes, de parte ou toda
resposta já virem embutidas na pergunta.”
(Domingos Justino Pinto, educador)

A adolescente Marildinha – já contei proezas dela aqui, noutra ocasião – atravessa aquele estágio invejável da vida por alguém definido como primavera da beleza. Mesmo havendo quem a chame de “aborrecente Marildinha”, ela esbanja juvenil graciosidade no jeito e trejeitos. Dona de inquiridores olhos esmeraldinos, realçados pela tez amulatada, essa “garota espoleta” (expressão de uso corrente em idos tempos) demonstra no comportamento social voraz curiosidade sobre as coisas que rolam no complicado mundo dos adultos.

Marildinha ganhou, por essa conta, no São Benedito, onde mora, fama de “perguntadeira contumaz” nas rodas frequentadas, sobretudo escolares. Na sala de aula, suas perguntas indiscretas e observações desconcertantes costumam deixar embaraçados instrutores já calejados no batente do magistério.

Uma professora, sem esconder admiração pela aluna, garante que Marildinha é diferenciada. Caminha em ritmo acelerado nas aquisições dos conhecimentos que conduzem à conscientização dos deveres e direitos cidadãos. Vaticina, com convicção, que o futuro acena para ela, infalivelmente, posição de liderança comunitária. “Marildinha ainda vai dar muito o que falar”, pontua.

Essa mesma professora tomou o cuidado de coletar “amostras” sugestivas da persistência da aluna em disparar indagações intrigantes a propósito de situações e problemas do cotidiano. As perguntas e questões por ela pautadas traduzem, naturalmente, dúvidas nascidas da inquietude intelectual da garota. – “Cigarro faz mal à saúde da gente?” Pergunta Marildinha à mestra. – “Claro que faz” – a resposta ouvida. Marildinha retorna: – “Faz mais mal que maconha?” – “Quase tanto quanto”, esclarece a professora, aduzindo: “Em cada maço de cigarros está anotada uma advertência das autoridades da Saúde sobre os danos provocados pelo fumo. O fumante pode contrair uma porção de doenças: câncer, trombose, gangrena, impotência, enfisema, infarto, bronquite, angina, tá tudo escrito lá”. A pergunta da volta põe fim ao bate-papo: – “Uai! Mas, se é mesmo assim, se o cigarro é essa droga toda, por que deixam ele ser vendido, então, em tudo quanto é biboca, hein? Muito esquisito, tudo isso!”

Na drogaria do bairro, comprando simples barras de cereais “da promoção”, e no ponto de venda de cupom para estacionamento rotativo, a opinião que deixa cair é na base da bronca: - “Essa coisa de exigir CPF do freguês é estranha pacas. O que tá por trás disso?”

Não deixa por menos, quando na portaria do parque público um funcionário solicita de seus familiares a apresentação dos CPFs mode que poder liberar o acesso de todos: - “Aqui, também? Mas será o Benedito?” O funcionário, sem entender bulhufas, retruca: “Quem é o Benedito?” Marildinha retoma a palavra: - “Xii, deixa prá lá, esquece... Ocê tem culpa alguma por essa nóia burocrática...”

O tio materno e padrinho de batismo de Marildinha, Ascânio, de apelido Bulico, funcionário público aposentado, dono de mercearia, é uma espécie de conselheiro mor da família. Suas opiniões pesam bastante nas decisões da parentada. Marildinha tem por ele afeição, pode-se dizer filial. Absorve razoavelmente o que ele fala e recomenda. Mas, indoutrodia, ficou um tanto encafifada com uma informação que ele passou sobre o caso Marielle. A vereadora carioca não teria sido alvo de atentado coisa nenhuma. Ela e o assessor morreram num acidente automobilístico. Excesso de velocidade. O auê criado em torno da morte a tiros, a participação de milicianos, as versões “fantasiosas” da mídia, tudo não passa de armação pra confundir as pessoas. Foi com muito custo que Marildinha conteve o impulso de contradizer a estapafúrdia tese.

Todavia, neste lance mais recente da avalancha de óleo, vinda do mar, que vem emporcalhando as praias, prejudicando centenas de municípios nordestinos, ela achou chegada a hora de expressar discordância frontal às explicações falaciosas do padrinho. Oportuno esclarecer, a esta altura, que o tempo de folga de Bulico - praticamente o dia todo - é diligentemente reservado à leitura e repasses de postagens das redes sociais. Sem o mais leve pudor ético e senso crítico, repetindo mecanicamente aquilo que é feito por um mundão de indivíduos desocupados com estreita visão das coisas, o tio costuma empurrar levianamente para os outros as mais escalafobéticas informações.

Fitando firme Bulico nos olhos, Marildinha soltou o verbo: - “Escuta, dindo, eu tava crente, até hoje, que era verdade o que o senhor andou esparramando. O óleo tinha sido jogado por ambientalistas de araque e mais o pessoal do Lula, os filhos dele donos do Friboi, de frotas de aviões e navios e de várias emissoras de TV. Mas, gorinha mesmo, deu na televisão que o culpado de tudo é um navio grego...”

A garota “espoleta” fez uma pausa, moveu o sobrecenho em sinal de dúvida, voltando à carga: - “Mas pera lá! Essa história também não tá bem contada. Um único navio será capaz de aprontar lambança deste tamanhão?”

Marildinha perguntadeira é fogo na jaca!


São regras morais talibanistas!

Cesar Vanucci

“Ficar completamente nu durante o ato sexual invalida o casamento.”
(Aiatolá Rasjah Hassán Jalil, do Egito)

O pasmo suscitado da leitura de certas notícias chegadas de plagas distantes pode levar o leitor à suposição de estar sendo alvo de uma bem-humorada armação de repórteres imaginosos, sequiosos por quebrarem a aridez e contundência de sua rotina como tradicionais informantes de tragédias. Despacho de algum tempo atrás, procedente do Cairo, Egito, falando de decisão tomada por religiosos fundamentalistas, faz parte perfeitamente desse rol de histórias incríveis que parecem inventadas. Se não vejamos. De acordo com decreto religioso (fatwa) baixado por acatado xeque da Universidade de Al-Azhar, a mais célebre de tendência sunita no mundo islâmico, o casamento pode ser invalidado na hipótese de os cônjuges cometerem o “sacrilégio” de se encararem despidos no curso do ato sexual.

Outros renomados doutores na interpretação dos textos sagrados entenderam também de expender considerações a respeito do assunto. Caso de outro xeque, dirigente do “Comitê de fatwas” da mesma Universidade. “Mais brando” nas avaliações, ele assevera, judiciosamente, que os cônjuges podem, sim – como não? -, olhar cada qual para o corpo do outro, quando em trajes de índios da Amazônia... Só que com uma ligeira ressalva: para que a sacralidade conjugal não seja profanada, terão que se esforçar ao extremo, ambos os dois, mode que evitar visão pecaminosa das chamadas partes pudendas do parceiro. A piedosa recomendação é complementada com orientação ao marido e mulher para que se cubram, pudica e prudentemente, com manta ou lençol, durante a junção carnal. O despacho comentado não esclarece se a sentença dos aiatolás se aplica, com vistas ao cabeça do casal, apenas à primeira esposa, ou a toda a fileira de consortes da tradição conjugal sunita.

Outro item relevante na momentosa questão levantada, que também estaria carecendo de instrução mais precisa por parte dos doutos doutrinadores, diz respeito a determinados conceitos, pacificamente aceitos pela psicologia contemporânea, sobre o que venham a ser, na realidade, as chamadas partes erógenas na anatomia humana. Pela teoria vigorante admite-se que o erotismo, fonte de “concupiscência” na cachola  atormentada dos aiatolás responsáveis pelas regras de pureza e recato traçadas para leais devotos, pode desabrochar, inopinadamente, com todos seus desdobramentos malévolos, em regiões corporais imprevisíveis. O dedão do pé, por exemplo. Os olhos, considerados janelas da alma, nem se fala! Podem se transformar, de repente, não mais que de repente, diria o poeta, nas ações descontroladas de criaturas que não estão nem aí para as práticas da autêntica devoção, em dardejantes mensageiros de lascivos desejos e inconfessáveis paixões. E o que não dizer, então, dos “pecados inomináveis” que empedernidos e devassos hedonistas serão capazes de produzir, sorrateiramente, com a simples gesticulação das mãos? Algum cara, obviamente preocupado com a necessidade de salvaguardar os efeitos “salutarmente” moralizadores dos éditos fundamentalistas anunciados, já deve ter, com certeza, alertado os zelosos aiatolás para que baixem normas adicionais de proteção aos fieis ameaçados pelas impuras tentações mundanas. O ideal, talvez, para que tudo funcione a pleno contento, é a adoção de vestes que cubram o corpo inteiro dos viventes no leito. Homens e mulheres se comprometeriam, no momento próprio, a envergar caprichadas indumentárias, naquele estilo bolado pelos criativos figurinistas talibãs. Talibãs do Afeganistão, do Egito, do Paquistão, Irã, Arábia Saudita e de outros lugares onde o fundamentalismo religioso bote banca...

Fica-se a imaginar, também, como louvável “tentativa” de se obter eficácia total naquilo que se almeja atingir com as “moralizadoras fatwas”, a possibilidade da promulgação de ato complementar prevendo a redução da prática do banho a dosagens mínimas. Algo que se ajusta (ao que se fofoca por aí) aos hábitos culturais em alguns refinados ambientes europeus. E, nesse caso, com a expressa determinação de não se dispensar camisola protetiva sob o jato do chuveiro. Por derradeiro, neca de se desprezar, ainda, a conveniência do uso de venda espessa nos olhos naqueles cruciais momentos em que o fervoroso crente se entregue, prosaicamente, ao gesto fisiológico de aliviar a bexiga.

Fundamentalismo religioso, gente boa, é fogo!

quinta-feira, 14 de novembro de 2019


A decisão do Supremo

Cesar Vanucci

“Nenhum juiz é contrário à repressão da corrupção com rigor.”
(Ministro Celso de Mello)

É assim que as coisas funcionam na democracia, um regime que estampa, inequivocamente, defeitos e falhas nascidos de circunstâncias e contradições próprias da vida, mas que é, sem mais a mais tênue sombra de dúvida, o único consentâneo com a dignidade humana. O Supremo falou, está falado. A decisão que se tomou, no tocante à prisão em segunda instância, contemplou sensatamente a rigorosa primazia do preceito constitucional sobre quaisquer outras formulações e sofísticos argumentos de natureza jurídica, concebidos – justo supor - dentro da mais lisa das intenções.

O que a Carta Magna proclama, no artigo 5º, não dá margem a tergiversações. “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, registra o texto. É de clareza cristalina o entendimento. A culpabilidade em processos conduzidos pela Justiça só se configura em sentenciamento definitivo proferido após esgotadas todas as possibilidades recursais concedidas no Estado de direito aos cidadãos. Noutras palavras, só depois de ocorrer aquilo que, no linguajar jurídico é conhecido por “trânsito em julgado”.

O preceito constitucional não comporta casuísmos, reinterpretações ditadas por conveniências políticas ou sociais, ou de qualquer outra natureza, mesmo que acionadas pelo respeitável propósito de impedir possam praticantes de atos delituosos desfrutar de impunidade. A medida aprovada – seja frisado com ênfase – não significa impunidade, prescrição de pena, interrupção de processo, admissão sumária de descabida inocência, afrouxamento dos mecanismos legais de enfrentamento de crimes, favorecimentos indevidos, por isso repudiáveis, a acusados de infringirem as leis, condescendência com corrupção. Como bem explicou o Ministro Celso de Mello, nenhum juiz da Alta Corte é contrário à repressão da corrupção com vigor. É imperioso, no entanto, seja respeitado o esquema legal definido na Constituição. “A repressão ao crime não pode efetivar-se com transgressão às garantias fundamentais”, frisa o magistrado. Acrescenta, com firmeza: “A proteção das liberdades representa encargo constitucional de que o Judiciário não pode demitir-se, mesmo que o clamor popular manifeste-se contra.”

A lúcida ponderação contribui para melhor compreensão da decisão em que o Supremo submete toda e qualquer tramitação processual ao abrigo da regra constitucional. Fica evidente que o ato, de legitimidade irrecusável, não é passível de fomentar, nos círculos democráticos, reações que possam lembrar ligeiramente manifestações de torcida organizada, em saída de estádio, face a placar adverso ao clube de sua predileção.

Onde nos parece haver o Supremo cometido gesto falho, em toda a história, é na delonga que marcou o estudo da questão sob exame. Isso deu causa a que o foco jurídico constitucional fosse deslocado para polêmicas ruidosas, marcadas, de parte a parte, por exacerbadas paixões, quando o que esteve em jogo, o tempo todo, nada mais foi, senão e apenasmente, a correta aplicação de um princípio constitucional.

A soltura de Lula, Azeredo e outros réus condenados em segunda instância não significa jeito maneira tenham eles sido absolvidos dos graves delitos que lhes são imputados. Significa, de acordo com o ditame constitucional, que os réus dispõem ainda de prazos recursais, previstos em lei, para se defenderem das acusações.

Uma outra conclusão se impõe dentro desta linha de considerações. Chegada a hora de o Judiciário, em seu afã de aprimoramento do trabalho que lhe toca institucionalmente executar, promover estudos que levem à implementação de mecanismos mais ágeis de atuação capazes de sobreporem-se à morosidade processual tantas vezes detectada em sua edificante missão.


Sonoro não aos despautérios

Cesar Vanucci

“Não se agride o espírito democrático impunemente”.
(Paulo Pinheiro Chagas, saudoso escritor e homem público)

Os despautérios cometidos por elementos do núcleo central do Governo, alvejando valores muito caros à Democracia e Cultura brasileiras, vêm jorrando, nestes nossos dias, com a mesma desnorteante desenvoltura e impetuosidade das misteriosas manchas de óleo surgidas nas faixas litorâneas em agressão violenta ao meio ambiente, às atividades turísticas e economia de centenas de municípios nordestinos. Ambas as situações são, obviamente, de feição a causar transtornos, perplexidade e preocupação à coletividade.  

Detendo-nos no primeiro fator causal do detectado desassossego comunitário, vemo-nos impelidos a lançar no ar pergunta atravessada como espinho na garganta de toda gente. Até quando persistirão esses repetitivos e inconsequentes abusos retóricos, de nauseabundo teor antirrepublicano?  A Nação anda clamando por um basta nesta história pra lá de incômoda! O pronto e decidido coro de vozes irrompido recentemente, no seio da opinião pública, há que ser interpretado como benfazeja reação ao tropel de impertinências assacadas contra o sentimento nacional.

A tresloucada opinião de um parlamentar radical, volta e meia emaranhado em bravatices de escancarado bolor totalitário, “ameaçando” o país com um novo AI-5, desencadeou compreensível clamor nacional. O fragor do repúdio fez esquecidas, por algum tempo, divergências, desencontros e até entrechoques de ideias, às vezes agudos, inerentes ao cotidiano político. Cidadãos de diferentes tendências e crenças, deixando de lado antagonismos periféricos, fizeram questão absoluta de bradar, alto e bom som, seu inconformismo e repugnância a qualquer manobra subversiva que atente contra as instituições. Sem discrepâncias ao expressarem visceral repulsa à provocação do despreparado parlamentar, lideranças de todos os segmentos e matizes deixaram evidenciada, com todos os pontos e vírgulas, firme disposição de confrontarem quaisquer vociferações e gestos bolorentos dos que utilizam a imprecação do furor para atingir a pureza e serenidade dos magnos valores culturais e democráticos.

O recado que as forças vivas da nação estão passando, aos responsáveis por atos e linguajares conflitivos com a consciência cívica, documenta discordância frontal a tudo quanto, em gestos ou ditos, possa representar ameaça ao regime democrático. Regime esse que, nada obstante perceptíveis defeitos, acha-se consagrado na memória e sentimento das ruas como único compatível com a dignidade humana. Regime que, aliás, a propósito, deu chance a alguns dos que, desastrada e equivocadamente, perseveram na inglória tarefa de miná-lo em sua essência, a serem guindados às importantíssimas funções hoje exercidas.

Fique bastante explícito, para os extremados adeptos de facções alojadas nas lateralidades ideológicas incendiárias, que os brasileiros rechaçam, com veemência, “atos institucionais” de qualquer numeração. Rechaçam obstruções de qualquer ordem à liberdade de ir e vir, bem como à livre dicção de ideias e cerceamento da voz da imprensa. Rechaçam também prisões clandestinas e torturas aviltantes, louvações, como figuras icônicas, de ditadores e torturadores. Consideram inaceitáveis o desrespeito e achincalhe de instituições representativas da sociedade livre, grosseiramente configuradas como óbices a remover em perverso esquema de erosão democrática.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019





O


O “Blog do Vanucci” recomenda, com ênfase, o acesso ao canal do Youtube para conhecimento da entrevista que Orestes Debossan Junior concedeu a Cesar Vanucci no programa Percepção. A entrevista compreende três partes, a primeira das quais estampada nesta edição. As revelações são bem sugestivas.


Cadê os projetos de desenvolvimento?

Cesar Vanucci

“Os mais pobres ficaram mais pobres
 e os mais ricos ficaram mais ricos”.
(Maria Lúcia Vieira, gerente da PNAD, do IBGE)

Pesquisa recente do IBGE eleva a índice ainda mais desconfortável o desalento que povoa a alma nacional. Deixa estridentemente evidenciada a falta de capacidade das lideranças, nestes precisos instantes da vida brasileira, na condução de ações consentâneas com a vocação de grandeza do país.

A estagnação econômica é realidade palpável e dolorosa. O desemprego e o subemprego chegam a patamares desnorteantes. Na arena política, dominada pelas tricas e futricas de sempre, pelas querelas miúdas, nascidas da visão estrábica de líderes, em elevado quantitativo, despojados de sensibilidade social, arrojo empreendedor e sentimento nacional, predomina um vazio atordoante de ideias. Hora alguma, em nenhum setor de referência ligado às ações encetadas pelos poderes decisórios, ouve-se uma palavra apenas, um murmúrio tímido que seja, a propósito de um magno projeto nacional de desenvolvimento econômico e social consonante com as aspirações ardentes da sociedade.

As reformas essenciais ficam no bla-bla-bla. Encaixam, em debates pífios e estéreis, prevalecentemente desdobrados em sites na internet, argumentos inconsistentes, que não tocam o fulcro das questões. A alardeada intenção de promovê-las é abalada pela vociferação inócua e ridícula de questiúnculas ideológicas desconstrutivas, que só se aprestam para acirrar ânimos e gerar a desarmonia. Os temas vitais, que reclamam diálogo amplo e propositivo, são negligenciados. Os procedimentos observados no jogo político, processado com base na troca de favores, do “dá cá, toma lá”, das manobras maquiavélicas, são sem tirar nem pôr os mesmos utilizados no passado. Isso suscita a lembrança de que essas posturas eram veementemente questionadas, dando causa a peremptórias promessas de que seriam banidas da cena pública. Mas as promessas estão sendo, como amplamente percebido por todo mundo, chutadas descerimoniosamente pra escanteio.

Nos “anos dourados” do injustiçado e hoje idolatrado Juscelino Kubitschek de Oliveira, para ficar no exemplo mais frisante da crônica do nosso desenvolvimento econômico e social, os projetos de fazer deste país de prodigiosas riquezas uma potência jorravam com impetuosidade que nos estimulava alimentar esperanças, sonhos, utopias na contemplação do futuro. Num período de 5 anos, que pareceram 50, o Brasil ergueu num nada territorial uma majestosa capital. Implantou industrialização de ponta. Construiu rodovias, usinas elétricas. Favoreceu um fervedouro de obras. Alavancou o progresso pra valer. Estimulou a criatividade e o empreendedorismo. As conquistas civilizatórias, em curtíssimo espaço de tempo, graças a lideranças detentoras de fecundidade de ideias e a projetos elaborados com engenho e competência, impactaram positivamente a economia.  Espalharam benefícios sociais à mancheia, repercutindo esplendidamente em todos os segmentos. Os avanços detectados no projeto brasileiro de desenvolvimento fizeram brotar cintilantes manifestações na seara da cultura, da arte, do esporte e assim por diante.

Que baita diferença, Santo Deus, entre o Brasil daquele radioso tempo e o Brasil dos dias acinzentado de hoje! Onde estão os homens providos de grandes ideias e poder realizador? Onde se meteram, a ponto de não serem identificados ao primeiro olhar, os fazedores de progresso “na linha jusceliniana”?

É nesse cenário acabrunhante, aguçado pela comparação trazida à reflexão dos leitores neste momento, que o IBGE, instituição altamente confiável, possuidora de quadros técnicos de invejável qualificação, comparece a público para revelações que ratificam a aflitiva sensação de que as coisas andam realmente funcionando mal neste país rico, bonito pela própria natureza, de potencialidades inesgotáveis. A metade da população – 104 milhões de compatriotas - vive com apenas 413 reais por mês. A desigualdade de renda bateu recorde em 2018. As injustiças, na escala dos rendimentos, atingem clamorosamente gêneros e raças. Para cada R$ 100 recebidos por um homem, uma mulher ganha, em média, R$ 79. Os mesmos 100 reais pagos a uma pessoa branca caem para 56 quando o cidadão é negro. A renda domiciliar per capita dos 5% que ganham menos, caiu 3,8% em um ano. Em todo o país, 10,4 milhões de criaturas (5% da população) sobrevivem com 51 reais em média por pessoa, conforme os dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD).

As evidências de que as desigualdades vêm se agravando ficam contundentemente estampadas em outros dados, como os que se seguem, extraídos das apurações técnicas do IBGE. A renda média per capita é ainda menor – apenas 269 reais –, se considerados na avaliação global os 30% mais pobres, ou seja, o equivalente a 60,4 milhões de pessoas. No outro extremo da avaliação de renda, o 1% melhormente aquinhoado na distribuição da riqueza – somente 2,1 milhão de pessoas – ostenta no quadro renda média mensal per capita de 16,297. Noutras palavras, a fatia mais abastada da população ganha perto de 40 vezes mais que a metade da base da pirâmide populacional.
O patamar auge da pesquisa do IBGE atingido em 2018 levou a gerente da PNAD, Maria Lúcia Vieira, a dizer que no nosso Brasil “os mais pobres ficaram mais pobres e os mais ricos ficaram mais ricos”.

Parando, por ora, por aqui. Tudo isso machuca. Como dói!


Luta em vão contra tolices

Cesar Vanucci

"Com a tolice os próprios deuses lutam em vão."
 (Friedrich Schiller, filósofo e historiador)

Integrante do reduzido, posto que leal, culto e assíduo leitorado destes mal datilografados escritos abastece-nos de informação que serve, alentadoramente, para enriquecer as considerações que, de quando em quando, trazemos a este acolhedor espaço com o propósito de reagir às agressões sofridas pela cultura brasileira.

Segundo ele, os restaurantes que mais faturam na praça, vale dizer, que mais fregueses atraem, são os de denominação – às vezes, tão saborosa quanto os pratos do cardápio – com som, jeito e cara de Brasil. O leitor explica ainda que na avaliação pessoal procedida deixou de levar em conta, como estabelecimentos classificados na "lista estrangeiros", as casas típicas cujos nomes fantasia se mostrem vinculados, por óbvios motivos, à natureza essencial do negócio. E tira animadora conclusão para quem se disponha a defender, com espírito cívico, o apreço na lida cotidiana ao idioma do país: o povo sabe assumir, instintivamente, a proteção dos valores culturais da nação. Imaginamos seja mesmo assim que as coisas rolem nos redutos populares. E nos pomos a pensar quão proveitosa poderia vir a ser em revelações uma pesquisa aprofundada das preferências comunitárias, nessa linha de averiguações seguida no caso reportado dos restaurantes.

As desfigurações e o achincalhe linguísticos, bem como outras habituais modalidades de atentado cultural, têm origem no pauperismo intelectual subjacente a ambientes sofisticados onde a falsa erudição reina e onde muitos se entregam, embriagadoramente, ao jogo fantasioso de pertencer às chamadas "elites emergentes". Nesse território de pedantismo elevado ao cubo é de bom tom o emprego de estrangeirismos no papo trivial. Não se trata aí do uso pertinente de vocábulos ainda não traduzidos, indispensáveis ao entendimento de um processo tecnológico relevante. Nem de citações, perfeitamente compreensíveis, em idioma alheio, capazes de definirem com melhor precisão uma circunstância típica ligada a realidade cultural de outros lugares. Nada disso. O que merece condenação é o emprego de estrangeirismos forçados, roçando o desrespeito. A expressão decorada fica engatilhada no canto da língua ou armazenada na gaveta da memória, aguardando hora e vez de ser lançada, com pernosticismo, em manifestações orais e escritas. Correspondências, convites, discursos, entrevistas, painéis de rua, folhetos e volantes contendo ofertas de ocasião: a situação é de puro surrealismo. Concorre para a poluição sonora e visual, sendo vivenciada na indigência cívica e intelectual de uns e outros.

Acode-nos à lembrança, neste preciso instante, um fato assaz divertido. Uma comerciante da praça recebeu carta de fornecedor salpicada, como é de praxe em certos ambientes, de frescurinhas vocabulares. Do impresso, bem cuidado do ponto de vista gráfico, cores harmoniosamente distribuídas, caracteres sugestivos, o escambau, constou proposta à destinatária para cooperar com o missivista no sentido de que, juntos, pudessem "alcançar nossa gestalt". A dama agraciada com a desconcertante proposta, pessoa temente a Deus, desafeiçoada à terminologia “alienígena” solta por aí, só se tranquilizou mesmo quando a filha, estudante de Psicologia, rindo à bandeiras despregadas, explicou o significado da desconcertante e desconhecida expressão. Foi quando, então, ficou sabendo que gestalt, palavra alemã, sem tradução no vernáculo, de conteúdo substancioso, identifica uma técnica utilizada em Psicologia para transmitir ideia aproximada de totalidade, abrangência, por aí. A comerciante inteirou-se, também, que o termo trafega com crescente desembaraço pelos descaminhos das incontinências verbais. É adotado, com entusiasmo iconoclasta, para o uso impróprio costumeiro, pela turma que considera o máximo, em matéria de saber, a capacidade para introduzir de enfiada num diálogo de cinco minutos as palavras "book", "inside", "feeling", "feedback" e outras do gênero. Ou que considere uma suprema bem-aventurança receber em casa, com o nome grafado de próprio punho pelo anfitrião, um "emergente" qualquer, honroso convite para um "brunch" ou "happy hour"...

Carradas de razão assistia a Schiller, quando asseverava que "com a tolice os próprios deuses lutam em vão". Ou ao poeta Coelho Neto, quando proclamava que “Civismo é (...) zelar pela pureza do idioma e dos costumes herdados.”

A SAGA LANDELL MOURA

O instinto belicoso do bicho-homem

                                                                                                     *Cesar Vanucci Faço um premente a...