sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Coisas para se comer rezando


Cesar Vanucci

“Que pena que isto não seja pecado!”
(Exclamação de uma princesa italiana,
citada por Stendhal, ao saborear uma taça de sorvete)


Como todo cara normal, de bem com a vida, sou fissurado em sorvete, pipoca e chocolate. Estou até a fim de requerer patente de um processo que bolei para saborear, “conjuntamente juntas”, essas iguarias. Não receio nem um tiquinho possa a divulgação de tão sacrílega prática gastronômica atrair admoestações e censuras de abalizados endocrinologistas ou empertigados donos de passarelas. Garanto, em reta e lisa verdade, tratar-se de receita subtraída do cardápio domingueiro do Olimpo. Coisa pra se comer, genuflexo, rezando.

Qualquer vivente interessado em se apoderar dessa dádiva dos deuses deve observar o procedimento indicado. Pegue, primeiro, algumas bolas de sorvete cremoso, despejando-as numa terrina. Ao depois, lance uma calda achocolatada sobre o sorvete. Ninguém irá reparar se, nessa fase da preparação da receita, fraquejando diante da tentação de mergulhar o dedo indicador na calda, levá-lo disfarçadamente à boca. Numa tigela de bom tamanho coloque, em seguida, a pipoca. De sal e caramelada, doses harmoniosamente iguais. O recomendável, na sequência, é carregar tudo para canto isolado da casa. Lugarzinho provido de aparelho de som, onde possam ser ouvidas, como fundo musical, composições (de preferência orquestradas) de Villa Lobos, Ary Barroso e Tom Jobim.

Composto o repousante cenário, com todos os apetrechos descritos ao alcance das mãos, o jeito, agora, é curtir, com a máxima intensidade, o mágico instante. fazê-lo na base da degustação lenta, esvaziando com a colher e com a mão, alternadamente, o conteúdo dos dois recipientes.  O privilegiado momento assegura a certeza de que o Yuri Gagarin tinha razão: a terra é mesmo azul. E dentro dela não há lugar, jeito maneira, para guerras, fanatice fundamentalista, Donald Trump, corrupção, preço exorbitante de remédio, tráfico de drogas, violência urbana, atentados à cultura, preconceitos de toda ordem e as mil e uma outras mazelas de nosso maltratado cotidiano.

Estou convencido de que essa compulsiva predileção por sorvete, pipoca e chocolate, em meu caso específico, é mal incurável de nascença. Tem a ver com o DNA. Admito, também, que foi atiçada pacas, na infância e adolescência, por inexplicável veto formal – nascido de implicância descabida – aplicado nos cinemas ao ato inocente de se comer pipoca ou se tomar sorvete durante as projeções. O espectador flagrado em delito era convidado, com aspereza, pelo lanterninha, a retirar-se do recinto. O rígido código das proibições previa a possibilidade de se barrar vexatoriamente o acesso do infrator a futuras sessões, pela extrema gravidade do delito praticado.

Como os frequentadores de cinema de hoje estão em condições de atestar, a mudança foi radical. Para melhor. O freguês está autorizado a levar pro escurinho do cinema pacotes descomunais de pipoca, adquiridos em balcões contíguos aos guichês onde se vendem os ingressos. Pode se empanturrar também com sorvete e chocolate, no andamento do filme, se isso for de seu especial agrado. Aos encarregados pela manutenção da ordem pouco se lhes dá, igualmente, nos dias de hoje, que casaizinhos enamorados repitam, com ardência que muitas vezes suplanta as cenas da tela, os efervescentes colóquios amorosos da trama projetada. Algo bem diferente daqueles tempos passados, onde beijo roubado ou consentido, detectado pelo zeloso lanterninha, era anotado no livro de ocorrências sobre atos desrespeitosos às posturas morais vigentes como um pecado mortal, sem remissão.

Voltando ao sorvete. Vez em quando saio por aí, louvado nalguma dica, à cata de um novo tipo de produto surgido na praça. Num desses feéricos e coloridos templos da vida moderna, de intermináveis e atrativas ofertas, chamados shoppings, onde todos exercitamos fervorosamente nossa insaciável devoção consumista, travo conhecimento com invenções de moda inusitadas, nesse particular. Na onda de babaquice que nos assola, o sorvete já não é mais só sabor. Vira também dissabor. Tudo por causa dos apelidos que resolveram aplicar-lhe em diferentes pontos de venda. Num deles sorvete é mac qualquer coisa. Noutro, é sorbete. Noutro ainda, gelato. Com preços variáveis entre R$ 2,50 a R$ 15,00 a bola, os produtos, forçoso reconhecer, são deliciosos. Difícil de digerir são os apelidos. Frescurice vocabular em alto grau. Melhor dizendo, tendo em vista do que se trata, no mais baixo grau de temperatura.

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