sexta-feira, 26 de maio de 2017

Todas essas pessoas...

Cesar Vanucci

“O espírito humano é que nem o Paraquedas, só funciona aberto.”
(Louis Pauwells)

Essas pessoas que na contemplação do mar só encontram palavras, como anota Chesterton, para o enjoo...

Essas pessoas que absorvem imperturbavelmente, sem questionamentos, a ideia de que o mundo funciona mesmo assim: “manda quem pode, obedece quem tem juízo...”

Essas pessoas que não encontram dificuldade alguma em admitir que “amigo meu não tem defeito, inimigo se não tiver eu boto”...

Essas pessoas que se comprazem sempre em erguer-se da cama um bocadinho mais cedo, no afã de dispor de mais tempo pra nada fazer no restante do dia...

Essas pessoas que, hermeticamente fechadas em si mesmas, consideram sinal de “fim de mundo” uma desagradável (ou mesmo traumática) abordagem de pivete no meio da rua e que não ligam a mínima ao noticiário da noite relatando o drama dos refugiados que perderam a vida em travessias marítimas...

Essas pessoas que encaram a ciência, a psicologia e a sociologia como impenetráveis florestas de tabus, escandalizando-se com as interpretações da vida formuladas pelos aludidos setores, que costumam, quando em vez, lançar estrepitosamente por terra rançosos paradigmas culturais, obsedantemente cultivados...

Essas pessoas que diante, por exemplo, do imponente maciço florestal amazônico só conseguem conceber, utilizando mais do que depressa o computador cerebral para cálculos aritméticos, o quão fabulosas são as “vantagens pecuniárias” que poderiam derivar da exploração da madeira...

Essas pessoas que, fitando o esplendor e as cintilações do firmamento, encontram insuperáveis dificuldades pra entender o raciocínio e as conclusões de um pensador como Teilhard de Chardin, quando proclama que só o fantástico tem probabilidade de ser real na escala cósmica e que as coisas, no universo, não são apenas tão fantásticas quanto a gente imagina, mas muito mais fantásticas do que jamais se possa imaginar...

Essas pessoas que não se apoquentam, tiquinho que seja, com a revelação de que os 80 caras mais ricos do mundo acumulam  fortunas de valor superior a 2/3 da renda dos habitantes do planeta...

Essas pessoas que não se comovem em saber que, apesar da superprodução de alimentos, milhões de criaturas em diferentes lugares confrontam a perspectiva da fome por conta da distribuição incorreta dos produtos e partilha socialmente injusta dos bens criados para o bem-estar comunitário...

Essas pessoas que, diante da constatação de a metade da população brasileira ser composta de negros, gente de cor, como é de hábito dizer, não se mostram surpresas, nadica de nada, com a rarefeita presença de membros dessa faixa racial nos ambientes mundanos frequentados, nos locais em que trabalham, nas atividades profissionais que desenvolvem, nos estamentos sociais ocupados... 

E, por derradeiro, essas pessoas amargas, presas fáceis da intolerância e da paranoia, faltas de sensibilidade, afastadas por distâncias estelares dos valores que conferem dignidade a aventura humana, essas pessoas todas, falar verdade, carecem ser reconectadas com sua humanidade, de forma a não desperdiçar indefinidamente as chances de evolução espiritual que a Vida oferece!


Calamitoso epílogo

Cesar Vanucci

“Não se espantar com mais nada talvez seja o único meio...”
(Horácio, nas “Epístolas”, em 658 a.C, jamais imaginando que seu conceito 
pudesse se aplicar, mais de dois mil anos depois, à realidade política brasileira)

É fato incontroverso que o acúmulo das evidencias de mediocridade intelectual, incompetência gerencial e insensibilidade social reinantes nos redutos palacianos contribuiu para gerar a expectativa de que o governo Temer, encerrada a missão que o destino lhe reservou, não iria deixar lembrança positiva na memória das ruas. Mas o que agora está acontecendo extrapolou todas as perspectivas, mesmo as mais pessimistas, desenhadas nas pranchetas dos especialistas em estratégias políticas. Ninguém, ninguém mesmo, entre os mais experimentados analistas da praça, conhecendo a fundo as manhas e artimanhas, as tricas e futricas do solerte jogo político, teria sido capaz de vaticinar que o interinato presidencial descambasse, inesperadamente, para epílogo tão calamitoso.

Deu pra perceber de há muito que, em relação ao dirigente desse esquema governamental agonizante, a intuição popular jamais falhou. Assumindo as rédeas do poder em circunstâncias traumáticas, decorrentes do impedimento de sua companheira de chapa, Dilma Rousseff, personagem desprestigiada no conceito das ruas e despojada do respaldo político necessário para continuar, àquela altura, conduzindo administrativamente o País, Temer não conseguiu, em momento algum, conquistar a simpatia da sociedade para o trabalho, dito de reconstrução nacional, que se dispôs a levar a cabo. Seus índices de credibilidade e popularidade, medidos em sucessivas pesquisas, mantiveram-se sempre em níveis bastante insatisfatórios. Chegaram até a ficar abaixo dos que foram anotados nas consultas populares referentes à própria antecessora na época do seu defenestramento. As medidas por ele açodadamente anunciadas, com o suposto propósito de endireitar os negócios públicos, à falta de diálogos construtivos, de entendimentos saudáveis com correntes representativas do verdadeiro pensamento nacional, foram recebidas com enorme desconfiança, quando não com manifesto inconformismo. Tentando viabilizá-las, de certo modo na marra, valeu-se dos mesmíssimos manjadíssimos expedientes e posturas encharcados de pragmatismo e fisiologismo identificados pela opinião pública como altamente nocivos aos interesses coletivos. Arranjos partidários nebulosos, trocas de favores ao arrepio da ética, distribuição copiosa de cargos e concessões pródigas de verbas por conta de duvidosos apoios em votos: em sua atuação à frente do Governo nada de novo pôde ser vislumbrado no efervescente front político. Tudo continuou como dantes no quartel de abrantes. A enfática promessa de um Ministério composto de notáveis esboroou-se. O que se ofereceu, no lugar disso, foi a debochada designação de uma pá de figuras carimbadas em traquinagens já apuradas, ou em vias de sê-lo. A sensação amarga passada a uma plateia ávida por processos administrativos verdadeiramente transformadores foi a de se estar a assistir, outra vez mais, a filmes já exaustivamente reprisados.

Eis-nos, agora, portanto, diante de uma situação extremamente difícil. Situação que requer das lideranças mais lúcidas da Nação ações prontas e eficazes, nutridas de bom senso, muita serenidade, fervor republicano, respeito institucional e consciência democrática. As alternativas que despontam como saída para o caos em que fomos lançados por razões amplamente conhecidas e deploradas, são alinhadas na sequência.  Renúncia, descartada de pronto por Temer. Impedimento via Congresso, algo assemelhado com o processo que resultou no afastamento de Dilma Rousseff. Cassação da chapa presidencial vitoriosa no pleito de 2014, em vias de ser julgada pelo TSE. Esse último item das opções levantadas oferece ensancha oportunosa para uma reflexão amarga a mais sobre o comportamento ético, costumeiramente condenável, das elites brasileiras. O pedido de cassação da chapa foi formulado por um partido que hoje faz parte, com participação abundante em cargos bem remunerados, da chamada base governamental. E tamos conversados...

Na eleição indireta que se prenuncia, ou na hipótese menos provável de uma alteração constitucional que desemboque nas “diretas já”, vai ser preciso levar em conta uma exigência fundamental. A ocupação dos postos de comando do poder precisa ser confiada a cidadãos realmente comprometidos com o autêntico sentimento nacional. Pessoas com espírito de grandeza, em condições intelectuais, éticas, morais irrepreensíveis. Providas de capacidade de liderança, que saibam colocar os superiores interesses do Brasil acima de quaisquer outros interesses. Que saibam promover a retomada do crescimento econômico e o estudo aprofundado de reformas sociais genuínas que elevem os padrões do bem-estar comunitário. Cidadãos que se inspirem no exemplo de JK e que deem de si o melhor no sentido de imprimir aos negócios da Nação um ritmo de trabalho compatível com a vocação de grandeza deste País de potencialidades humanas e naturais incomparáveis.

sábado, 20 de maio de 2017




Atenção para a 
guerra cibernética


“Uma ameaça incerta e indefinível”.
(Júlio Rodrigues, especialista militar espanhol em cibernética)

Como já é do conhecimento dos leitores, os ponteiros do “Relógio do Juízo Final” foram recentemente acionados em meio minuto, ficando a apenas 2 minutos e 30 segundos das badaladas fatídicas. Instituído por cientistas consagrados mundialmente nas áreas das ciências exatas e sociais, entre eles um punhado de personagens agraciados com o Nobel, o relógio mencionado representa sinistra metáfora destes nossos turbulentos tempos. Apresta-se a medir o grau da temperatura dominante nas atividades internacionais, marcadas como sabido por erupções periódicas de insanidade.

O noticiário nosso de cada dia agregou recentemente aos fatores de risco intensamente anotados na agenda das preocupações gerais da humanidade mais um elemento provido de avassaladora força destrutiva. Já não bastava o terror das guerras, as guerras do terror; a asfixiante onda de fanatice fundamentalista; as endemias fora de controle; as indesejáveis tensões geradas pela injusta partilha do patrimônio das riquezas sociais nascidas do labor coletivo; as tragédias da fome alvejando milhões, com ênfase para a sempre esquecida África negra; o drama de expansão contínua dos refugiados; as agressões contundentes a Natureza? Não, não bastava. Na concepção de mundo do desvario humano, a cada conquista triunfante do saber, do trabalho, da criatividade deve sempre corresponder, como fatalidade inexorável, uma manifestação hostil, um registro sonoro de cunho belicoso.

Quando inventou a dinamite, Alfred Nobel respirou “aliviado”... “Não mais ocorrerão guerras”, vaticinou ingenuamente. Deu no que deu: as guerras se tornaram mais cruéis e devastadoras. O aeroplano saído das pranchetas do genial Santos Dumont foi saudado como marco fabuloso na história do transporte. Os “senhores da guerra” cuidaram, mais do que depressa, de “aperfeiçoar” a “máquina voadora”, transformando-a também num eficiente instrumento de extermínio da vida. O caso da energia nuclear, com sua fantástica potencialidade para criar inimagináveis condições de conforto e bem estar, ilustra magistralmente essa irrefreável tendência maléfica de se desfigurar propostas construtivas voltadas para o processo da evolução civilizatória.  Não fica nada difícil extrair do cotidiano outros exemplos de situações que configurem chocantes rupturas na marcha do desenvolvimento. É quando propósitos edificantes, derivados da inteligência e do engenho humanos, são impiedosamente confrontados por ações perversas fomentadas por ambições desmesuradas de mando.

Todo esse alinhavado de argumentos é para registrar que as escaramuças da apavorante “guerra cibernética” vêm se tornando, de certo modo frequentes. O chamado     “ciberataque” que infectou, indoutrodia, computadores do sistema de saúde do Reino Unido, bem como de órgãos públicos e privados em quase cem países, constitui mostra perturbadora do emprego com intuitos funestos de uma conquista eletrônica fantástica. Uma conquista vastamente disseminada por tudo quanto é canto deste mundo de Deus. Mundo onde o tinhoso habituou-se também a implantar seus enclaves.

Valendo-se de brechas vulneráveis na engrenagem operacional da internet, “hackers” não identificados, com o ostensivo objetivo de chantagear, apoderaram-se de arquivos valiosos e desativaram por algum tempo redes de comunicação eletrônica em diferentes partes do planeta. O fulminante ataque ficou conhecido por “zero day attack” (ataque do dia zero). Afetou com velocidade estonteante infindáveis redes de computadores com acoplamento de impressoras, redes corporativas onde predominem aparelhos conectados. Essa danosa modalidade de intervenção, no ver dos especialistas, é de acesso muito mais amplo do que possa supor nossa vã filosofia. Vários países com pretensões hegemônicas mostram-se aptos a usar o esquema em alta escala. Tem-se como certo que já andam fazendo isso, não é de hoje, por meio de suas agências de espionagem. Uma delas, estadunidense, a NSA, por sinal indicada como fonte matricial do programa (vazado de seus supostamente invulneráveis arquivos) norteador da ação deflagrada. Surgem indícios consistentes de que a lista dos “usuários” dessas invasões despropositadas está sendo acrescida de quadrilhas no âmbito do “crime organizado” e também de grupos terroristas.

Já imaginaram só as calamidades que poderão ser engendradas contra o interesse humano por esse tipo de gente? Dá arrepio conceber os malefícios decorrentes de uma guerra cibernética global. Nem num filme de ficção científica, desses que tiram o fôlego do espectador, seria possível retratar o caos que se instalaria com a eliminação, de repente, parcial ou total, dos registros gerais individuais alojados na “nuvem” da internet. A tal “nuvem”, com a competente ajuda de satélites, funciona como monumental e prodigiosa memória da presença do homem sobre a face deste confuso planeta azul.

Valha-nos Deus, Nossa Senhora! Bradarão muitos, com sobras de razões diante de hipótese tão aterradora.


  

Os prodígios da 
mente humana

Cesar Vanucci

“O fantástico, queira ou não o ser humano, 
está sempre presente em seu cotidiano.”
 (Henrique Rodrigues)

As extensas e intensas pesquisas de Henrique Rodrigues na área dos fenômenos transcendentes permitiram-lhe montar um acervo documental fabuloso, invejável. O saber que acumulou, na investigação e interpretação de acontecimentos insólitos, difíceis de serem compreendidos à luz do conhecimento convencional, assegurou-lhe lugar de destaque no cenário dos fatos que rolam nos inextricáveis domínios da parapsicologia e ciências correlatas.

Por conta de uma amizade fraternal de muitos anos, o saudoso professor, humanista de vasta erudição, deu-me a conhecer, em numerosos encontros, uma série de episódios extraordinários. Casos por ele próprio analisados, fotografados, filmados, no Brasil e no exterior.

Acodem-me à memória, à hora em que componho estas maldatilografadas, alguns registros por ele coletados a respeito de manifestações invulgares produzidas por certas pessoas dotadas de uma capacidade de memorização verdadeiramente prodigiosa. Tais personagens revelavam-se capazes de responder instantaneamente, na bucha, como se dizia em tempos de antigamente, a perguntas as mais desnorteantes relacionadas com cálculos aritméticos. Alguém propunha, por exemplo, a qualquer uma delas, uma equação matemática complexa. O resultado era dado certeiramente, num abrir e fechar de olhos, sem que houvesse a concessão de qualquer pausa ao operador para uma meditação mais aprofundada. Eles se saiam imperturbavelmente bem nos sucessivos e extenuantes testes a que eram submetidos. Algo incomum, inteiramente à deriva de explicação considerada lógica.

Interessante e oportuno recordar que há mais de uma década, num papo descontraído no Mercado de Uberaba, na praça em que fica localizada a sede da conceituada Universidade do Triângulo Mineiro, amigos apresentaram-me um jovem que detinha essa mesma singular capacidade para cálculos numéricos complexos. Não guardei-lhe o nome, mas ele, provavelmente, continua a exercitar seu dom, sem que talvez haja ainda ocorrido, por parte de especialistas científicos, interesse em analisar mais aprofundadamente o instigante caso.

Voltando às pesquisas de Henrique Rodrigues. Entre os casos investigados havia também o de um jovem inglês que detinha a assombrosa faculdade de memorizar, em nível requintado de pormenores, uma paisagem qualquer, ou mesmo uma cena urbana trepidante, transpondo as imagens captadas, com absoluta exatidão, para o papel. Ele se fixava, por rápidos instantes, no ponto ou em objetos postos sob o foco da atenção, e na sequência, com rigorosa e estonteante fidelidade, reproduzia todo o cenário assim contemplado. Num documentário elaborado com todas as cautelas recomendadas pelo rigor científico, o jovem traduziu, em traços vigorosos, nas circunstâncias descritas e em tempo recorde, tim-tim por tim-tim, os detalhes de uma imensa gravura referente a uma praça famosa de Londres. As janelas dos edifícios, as dependências iluminadas dos prédios, os postes, o arvoredo do logradouro, os letreiros das fachadas, os veículos retratados – tudo isso e tudo quanto mais se continha na gravura foram captados, com precisão atordoante, no desenho por ele elaborado. Era como se sua mente abrigasse o dom inusitado de poder fotografar o que os olhos viam e suas mãos o dom de poder “revelar”, quase que no mesmo momento, os objetos e cenas “fotografados” sob tão misteriosas circunstâncias.

Um outro conjunto fantástico de informações desconcertantes, pertencente ao acervo do professor Rodrigues, merece ser também  citado. Dizia respeito a um cidadão estadunidense que se notabilizou pela condição singular de conseguir imprimir nos filmes das câmeras fotográficas assestadas sobre a testa imagens de objetos e pessoas que, em estado de concentração absoluta, dizia estar “enxergando” com o olhar interior. Uma proeza estranha a mais não poder, evidenciada em testes à prova de estratagemas e burlas. Ignoro o destino dado a esse valioso material.









Murilo rocha *


PUBLICADO EM 12/05/17 - 03h00  O TEMPO

O depoimento do ex-presidente Lula anteontem para o juiz Sergio Moro, na 13ª Vara da Justiça Federal, em Curitiba, explicitou um vício de origem em todo o processo envolvendo o petista naquele foro. Lula é julgado por um adversário. O Ministério Público, responsável pela acusação, comporta-se como um simples coadjuvante. Investido de uma enorme popularidade e de um senso de justiçamento, Moro, apesar de dizer o contrário, se coloca – e é colocado por parte da imprensa sem nenhum constrangimento de ambas as partes – no papel de oponente, e não de árbitro. O embate entre o réu e os procuradores, do qual o juiz deveria tirar seu veredito, simplesmente foi substituído pela batalha entre réu e magistrado. A defesa e o próprio Lula, cientes dessa polarização, quiseram durante todo o depoimento escancarar essa anomalia jurídica. E conseguiram.
Na prática, todos perdem. Lula perde mais porque será condenado, independentemente se culpado ou inocente. Moro e toda a força-tarefa da Lava Jato já formaram convicção séculos antes da oitiva da última quarta-feira. Conversando, lendo e ouvindo especialistas do direito independentes, ou seja, fora do Fla-Flu promovido por defesa e acusação, parece haver uma percepção comum: não há provas no caso do triplex sobre o repasse do imóvel como propina paga pela construtora OAS para o ex-presidente. Mas pouco importa, o juiz Sergio Moro deixou-se envolver (ou se envolveu propositalmente) até o pescoço nesse combate e agora parece não haver mais volta. Caso não condene Lula nessa ação – ainda há mais quatro contra o ex-presidente nas quais diz-se haver provas –, o magistrado sofrerá um abalo em seu prestígio de super-herói contra a corrupção. Seu séquito o cobrará pela decisão, será chamado de “fraco” e perderá parte de seus seguidores. Por isso, no certame no qual é, ao mesmo tempo, contendedor e árbitro, Moro não sairá perdendo ou correrá o risco de ter seu prestígio abalado justamente por aqueles responsáveis por alçarem-no ao estrelato.

Quanto a Lula, joga com armas possíveis – seu carisma e habilidade política – sem também conseguir convencer de sua não participação ou ciência de todos os desmandos e esquemas de corrupção ocorridos durante seu governo e o da ex-presidente Dilma. Sua grande esperança reside justamente nos atropelos e arbitrariedades cometidos por procuradores e juízes no afã de condená-lo. Mesmo se sentenciado e preso, sendo impedido de concorrer à Presidência em 2018, emplacará dentro e fora do Brasil num futuro breve o enredo de vítima de uma grande perseguição política.

* Jornalista

sexta-feira, 12 de maio de 2017

XX Congresso Brasileiro de Ufologia



Por falar em buzinação


Cesar Vanucci

“Todo buzinador inveterado carrega dentro de si 
uma alma gentil ávida por mudança de sexo.”
(Professor Adamastor Abaeté)


Um incidente banal no cada dia mais frenético e estressante trânsito da Capital que, por pouco, não fosse providencial intervenção da turma do deixa disso, não desaguou em cena de pugilato, recordou-me a figura veneranda do professor Adamastor. O bafafá citado nasceu do uso exacerbado da buzina. Foi o que inspirou a reprodução do artigo abaixo, de duas décadas atrás.

Na tevê, são apontados os ruídos mais desagradáveis. Um deles: o estrondo de britadeira rasgando asfalto. Choro de bebê na calada da noite entra na lista. Riscar com as unhas a superfície verde das lousas antigamente conhecidas por “quadros-negros” é outro som indicado como capaz de quebrar o sossego público, no grau supliciante mais extremado.

Essa relação de barulhos incomodativos parece insuficiente. Não foram incluídas, pelo menos, três outras práticas atentatórias - quanto as que mais o sejam - aos bons costumes. Suscetíveis, por esse motivo, de atraírem sanções, na forma de degredo, a escolher entre o charme de Cabul e a hospitalidade de Bagdá. Primeira: as batidas belicosas do róqui bate-estaca. Segunda: o ruído arrepiante, de dar calafrio até em múmia alpina, de dedo molhado deslizando no espelho. Terceira: a enlouquecedora buzinação que motoristas desvairados, a pretexto nenhum, aprontam no alucinante tráfego urbano.

O buzinaço remete à figura do professor Adamastor, dono de insólita tese acerca dos riscos à saúde decorrentes do emprego descontrolado da buzina. Antes de falar da tese, contemos algo sobre o autor. Adamastor, natural de Catas Altas da Noruega, é sociólogo, com mestrado em Kuala Lumpur, onde residiu à época em que o pai exercia função diplomática. Acompanhando o genitor em sua peregrinação profissional, morou em dezenas de países. Aprendeu idiomas, entre eles o mandarim. Em momento de desencanto, ruptura de casamento (quinto de longa série) com uma atriz croata, alistou-se na Legião Estrangeira, indo servir no Saara tunisiano. Da convivência com culturas do oriente nasceu provavelmente sua inclinação para vivências ocultistas. Prestou serviços como escafandrista em Luxor. Foi pintor de quadros na Riviera. Atuou, ainda, como sertanista, no Roncador. Em Belô, onde residiu por alguns anos, ali por volta do sétimo casório, andou ministrando aulas de física quântica e esperanto. Cometeu livro de versos e se envolveu na preparação de um filme nunca rodado. Sumiu, ao depois, do mapa. Uns dizem que se recolheu a monastério na Capadócia. Outros garantem que anda por aqui mesmo, curtindo as bem-aventuranças ecológicas de uma próspera quinta recebida como herança, lá nas bandas de São José do Mantimento.

Chegamos, finalmente, à tese do polimorfo ensaísta. Juntando conceitos de gente respeitada em estudos de comportamento com pesquisas e intuições pessoais, o homem sustenta, com ardorosa convicção, a ideia de que a buzinação é consequência fatal de insopitável anseio, do desalmado buzinador, de que se possa operar, algum dia, uma radical mudança sexual em sua anatomia. Até mesmo, pegando ao pé da letra o significado médico do verbo, recorrendo aos préstimos profissionais daquele cirurgião do Paquistão que adquiriu sólida fama mundial em operações transexuais.

O professor entrega copiosa argumentação. Casos de buzinadores inveterados, por ele próprio, exaustivamente, acompanhados. Um deles: rapaz de família abastada, morador do Carmo-Sion. Dono de frota de carros, marido de socialites. De repente, não mais que de repente, chutou tudo pra corner. Mandou-se para Paris, depois de apoquentar, anos a fio, os ouvidos alheios e a tranquilidade das ruas com diabólicas partituras de buzina. Buzinava sem parar. Saindo e chegando. Pra chamar a atenção de alguém. Nos cruzamentos e sinais, exigindo passagem. Comemorando sempre não se sabe bem o quê. Lá onde reside ocupa, prazerosamente, o cargo de presidente do Sindicato dos Travestis da praça Pigale. Mais um caso: o de uma jovem do Calafate. Cumpria, também exemplarmente, por onde circulava, a sina inapelável da buzinadora frenética. O berro emitido era do estribilho do hino do clube de sua paixão. Largou amigos e familiares. Foi bater com os costados em Manila. Convolou núpcias com uma halterofilista filipina, de origem cigana. Participa, na atualidade, de disputas de sumô, enfrentando galhardamente avantajados especialistas japoneses.

A tese, damas e cavalheiros um tanto quanto chegados à buzinação imoderada, é da responsabilidade exclusiva do Adamastor. Sua, a frase prefacial destas maltraçadas.
.


Atenção para os 
ponteiros do “Relógio”


Cesar Vanucci

“Estamos mais próximos da meia noite”.
(Recente relatório dos cientistas responsáveis pelo “Bulletim of Atomic Scientists” revela que em 2017 cresceram os riscos de uma catástrofe global)

Os ponteiros do “Relógio do Juízo final” apontam, neste momento, que faltam apenas dois minutos e meio para a meia noite dos temores universais. O marcador foi movido 30 segundos para a frente indoutrodia em função do aumento das tensões que toldam o cenário internacional.

Batizado com a denominação científica de “relógio Doomsday”, esse “dispositivo” representa uma sombria metáfora. Foi criado em 1947 por um grupo de renomados cientistas ligados às pesquisas da energia nuclear. Eles se declararam muitíssimo preocupados com os rumos do planeta. O grupo foi acrescido, com o correr dos anos, de outros expoentes do mundo da ciência, ambientalistas e físicos categorizados, tomando a si a responsabilidade de ajustar periodicamente o marcador do “Relógio” às circunstâncias derivadas das posturas humanas globais. Do colegiado incumbido dessas avaliações periódicas fazem parte nada mais, nada menos, que 15 agraciados com o Nobel.

Nos últimos anos, os ponteiros do “Relógio do Juízo Final” permaneceram fixados em 3 minutos antes do horário fatídico. Mas em análise recente, o colegiado de cientistas chegou à aterrorizante conclusão de que os perigos de uma catástrofe generalizada são, em 2017, maiores do que em anos precedentes. Veio daí a decisão de mover em 30 segundos os marcadores desse “relógio simbólico”.

Quando da instituição desse processo, os cientistas tornaram claro que os objetivos da empreitada seriam alertar às lideranças dos países, em particular, e à sociedade humana, em geral, sobre os riscos que rondavam o planeta em razão dos avanços, como instrumento de destruição, da tecnologia nuclear. Na mencionada época (1948), o relógio marcava 7 minutos para a meia noite – ou seja para o final dos tempos. Já dois anos depois os ponteiros apontavam para as 23 horas e 57 minutos. Quando as experiências das grandes potências com arma de destruição em massa “evoluíram” no sentido da fabricação de bombas de hidrogênio – de intensidade mortífera infinitamente superior aos artefatos de fissão nuclear do tipo lançado sobre Nagasaki e Hiroshima –, o “Relógio do Juízo Final” foi adiantado em 5 minutos. Pela assustadora perspectiva ficaram, então, restando apenas dois minutos para o soar das “trombetas apocalípticas”. Temia-se muito pelo acirramento dos conflitos, até que em 1963, com a assinatura (sob muitos aspectos de “mentirinha”, ou se preferirem, de colossal empulhação) do tal “Tratado de interdição dos testes nucleares”, os marcadores recuaram. Fixaram-se nas 23 horas e 48 minutos.

A denominada “guerra fria”, elevando a temperatura do “termômetro” utilizado para medir as tensões, provocou o avanço dos ponteiros para as 23 horas e 57 minutos. Nos anos 90, houve outro recuo. Aconteceu com as mudanças na Rússia provocadas pela “Perestroika” e “Glasnost” e pela queda do famigerado “Muro da Vergonha”. O relógio passou a marcar 23 horas e 43 minutos. O marcador voltou a movimentar-se em 2012, para 23 horas e 53 minutos. Foi no momento em que Paquistão, Índia e Israel ingressaram, apesar da existência de um “Tratado de não proliferação de armas nucleares”, no assim denominado “Clube atômico”. No ano de 2007, os cientistas responsáveis pelas análises concernentes aos atos insanos praticados na convivência internacional decidiram incluir outros tipos de risco nas avaliações, dando ênfase às alterações climáticas decorrentes do aquecimento global.

Eis-nos, neste exato instante, de repente, diante de um novo ajuste dos ponteiros, de significação funesta. Há mais de 5 décadas que não nos encontrávamos em situação tão crítica. As explicações dos cientistas mostram aquilo que os observadores leigos dos eventos no cenário mundial constatam sem maiores dificuldades. As lideranças vêm falhando sistematicamente na solução dos problemas que ameaçam a sociedade. O relatório mais recente do “Bulletim of Atomic Scientists”, elaborado pelos guardiães do “Relógio”, atribui o aumento dos perigos globais às posturas e declarações de Donald Trump; à disseminação da xenofobia e radicalismos; às incertezas sobre os programas nucleares de vários países, com realce obviamente para a Coréia do Norte; ao aumento das ameaças à cibersegurança e à proliferação da “desinformação caótica” pela internet, naturalmente entre outros fatores. Segundo os especialistas, afigura-se de vital importância que os governantes usem do bom-senso para promover planos imediatos com vistas a desativar as “bombas relógios” espalhadas por aí. Ou que, na ausência de posições correspondentes aos seus deveres, os próprios cidadãos se organizem e assumam as rédeas das decisões vitais, de modo a concorrer para que os marcadores do relógio retrocedam a limites menos temerários.


sexta-feira, 5 de maio de 2017

Unidos, jamais vencidos

Cesar Vanucci

“Qualquer semelhança é mera coincidência”.
(Registro celebrizado em produções cinematográficas)

Programar o encontro foi nada mole. “Uma verdadeira odisseia”, comentou o responsável pela ideia. Demandou exaustivos e exasperantes esforços. Principal articulador da reunião, o político mineiro de cognome “Santinho do pau oco” até que foi acolhido com razoável simpatia por gregos e troianos. Ou seja políticos das diferentes correntes partidárias, muitos deles, pelo menos para as arquibancadas e gerais, adversários hostis. Coadjuvado competentemente pelo colega paulista cognominado “Malandro refinado”, deu-se conta de que sua aceitação nas funções sem grandes questionamentos decorreu da familiaridade demonstrada, ao longo da carreira, com as variadas modalidades de mensalão, tanto os regionais quanto os federais.

Botou todo ardor e empenho na tarefa de reunir a patota enredada nas trapalhadas da corrupção institucionalizada. Fez das tripas coração. Engoliu sapos, cobras e lagartos pra tudo sair nos conformes. Valeu a pena. A reconhecida habilidade dos articuladores do encontro para negociar contornou malquerenças supostamente insuperáveis. Alguns  convidados confessaram-se relutantes em sentar na mesa dos entendimentos com pessoas com as quais haviam trocado desaforos. Desavença difícil de ser aplainada foi a que envolveu os companheiros de cognome “Robin Hood tupiniquim” e “Bagre ensaboado”. O primeiro alvejou o segundo com xingamento de mãe. Este, em represália, prometeu “quebrar a fuça” do desafeto no momento em que o topasse no clube por ambos (e por toda a grei política) frequentado. Um argumento fulminante persuadiu todos a baixarem o facho e acomodar momentâneas malquerenças. “Numa hora como essa, sacumé?, com a classe política na berlinda, ameaçada até de sobrevivência, impõem-se gestos de renúncia para superação de divergências circunstanciais. Um poder mais alto se alevanta”. “Precisamos ser pragmáticos. Conter ações de varejo é fórmula vital para salvar os negócios por atacado”. Foi o que judiciosamente se asseverou.

Rodeado das precauções de estilo – distribuição de senhas, contrassenhas, emprego de aparelho detector de metais de maneira a evitar arapongagem eletrônica, compromissos formais em torno de inviolável sigilo mode evitar vazamentos midiáticos -, o encontro dos implicados nas maracutaias transcorreu em atmosfera surpreendentemente harmoniosa. Quem temeu por agravos espantou-se com o excesso de afagos. Prevaleceu, no final das contas, um forte sentimento de preservação classista. Os argumentos expendidos e as deliberações tomadas deram o tom do estado de espírito reinante. A relembrança de pilantragens pretéritas caídas no esquecimento - tipo casos PC Farias, Daniel Dantas, Anões do Orçamento – foi encorajante. As recomendações sobre os procedimentos adequados a observar nas atuais circunstâncias repercutiram bem.  O correto – explicou-se - é reagir às denúncias com declarações peremptórias de gênero manjado: “nada sabemos a respeito”; “todas as doações foram rigorosamente feitas dentro da legalidade e aprovadas pela Justiça Eleitoral”; “no curso do inquérito tudo ficará devidamente esclarecido”; “todos os aportes de recursos foram contabilizados e figuraram na prestação de contas aos órgãos fiscalizadores”; “desconhecemos o teor das acusações que nos são imputadas”; e por aí vai...

Contar “a favor da causa” com a tradicional morosidade da Justiça; com eventuais prescrições processuais; com enorme sobrecarga de trabalho nas apurações em função da inclusão nos interrogatórios de outras centenas de personagens apontados em delações – ajudou a gerar expectativa menos pessimista por parte dos ilustres próceres. Considerou-se também a hipótese de declarações públicas com reconhecimento dos ilícitos praticados. Recordou-se que isso já foi feito por respeitáveis parceiros. Alguns deles mantiveram o semblante de madeira de lei imperturbável diante das câmeras, foi o que se viu. Pode ser que dê certo.

Um momento no encontro marcado por singular emoção foi o da aprovação por unanimidade do “slogan” a ser usado nas ações defensivas do grupo, composto de apreciável contingente de conspícuos cognomes. Assessor de marquetagem presente assegurou que, apesar de surrado, o “slogan” escolhido revelou-se eficaz noutras campanhas: “Unidos, jamais seremos vencidos!”

Todo mundo saiu convicto do acerto nas confabulações havidas. Elas podem ajudar muito no grande esforço em que tanta gente se concentra em favor de um acordão. “Afinal, somos todos ocupantes de um mesmo barco”, ponderou, categórico, aplaudido pelos demais, o participante cognominado “Juca Remela”. Constou no final, que dois convivas, o “Pelicano” e o “Jaguatirica”, num canto da sala, chegaram a trocar ideias sobre a perspectiva de assumirem a coordenação das ações do grupo, vislumbrando algo capaz de contemplá-los, à vista dos presumíveis benefícios gerais, com os capilés de praxe assegurados pelos departamentos especializados em propinas das empreiteiras. Se viável a hipótese, uma coisa é certa: os “abonos” terão que ser concedidos em dinheiro vivo, nada de depósito em contas no exterior, acertou-se.

A história acima é pura ficção. Ou será que não?




“Apocalipse now”, nada de ficção

Cesar Vanucci

“As crueldades e as perfídias inerentes à guerra cobrem o ser humano de uma infâmia mortal.
(Anatole France)

Revi o “Apocalipse now” indoutrodia. A fita é relacionada por muitos cinéfilos entre os clássicos dos dramas de guerra. A atmosfera asfixiante de ambiente povoado por ferocidade bélica é muito bem retratada, adquirindo ênfase na magistral interpretação de Marlon Brando como o sinistro coronel Kurtzz. Recordei-me de pronto que não se trata apenas de personagem de ficção, ao contrário do que se possa imaginar. O coronel é uma figura de carne e osso.

O nome dele é Flint Cole. Militar aposentado do Exército, vivia até recentemente em São Francisco, Estados Unidos, carregando consigo as lembranças tenebrosas de uma guerra sem quartel em que esteve envolvido no Laos. Uma guerra clandestina não admitida oficialmente pelo governo dos Estados Unidos.

Esplêndido documentário levado ao ar tempos atrás pela GNT colocou-nos a par da inacreditável trama. Repórteres estadunidenses, mergulhando fundo em pesquisa que se arrastou por meses e varou continentes, conseguiram compor o assustador itinerário de vida do temido “senhor da guerra” das selvas laosianas. Condecorado como herói na 2ª Guerra Mundial, o coronel foi recrutado pela agência de espionagem CIA, na Tailândia. Deram-lhe a incumbência de organizar um exército mercenário, agregando nativos de uma etnia hostil às forças comunistas do Vietnã que mantinham sob seu jugo parte do território do Laos. Dirigentes daquela agência e membros do serviço diplomático americano deixaram claro para Cole que sua ultrassecreta missão, abrindo novas frentes de batalha, jamais seria oficialmente reconhecida. A posição dos que estavam contratando seus serviços profissionais seria a de negar enfaticamente, em qualquer circunstância, informações ligadas às atividades do coronel que eventualmente viessem a escapar aos controles rígidos da censura oficial.

Os desdobramentos do caso podem ser assim resumidos. A “guerra que não houve” tendo por palco o Laos transformou-se numa tremenda carnificina. Centenas de milhares de pessoas foram mortas. Consta que os aviões despejaram mais bombas nas áreas conflagradas do que na segunda guerra mundial inteira. Kurtzz, ou seja Cole, combatente sanguinário, à frente de grupos bem municiados, tomado de delírios de mando, alterou os rumos da maluca missão que lhe foi atribuída. Acabou montando um esquema de guerra todo pessoal. Num determinado momento, a situação fugiu inteiramente ao controle e às orientações de seus superiores. O exército particular do coronel praticou atrocidades sem conta. A decapitação de inimigos, a retirada de seus órgãos como troféus de guerra e até mesmo a prática do canibalismo compuseram o estoque de maldades que, anos a fio, cuidou de espalhar na zona convulsionada e que lhe valeu a lenda aterrorizante projetada mais tarde no cinema.

O documentário a que fazemos alusão é impressionante. Os depoimentos reunidos são de estarrecer um frade de pedra. Os repórteres chegam, no final da investigação, a confrontar o coronel, então residente em São Francisco. Já tinham ouvido, no Laos, na Tailândia, nos Estados Unidos, arrepiantes relatos de outros personagens do brutal drama encenado. As declarações de Cole confirmaram, em gênero, número e grau, os desatinos e barbaridades acontecidos nas selvas laosianas. Na entrevista, em que se conduziu com perfurante frieza, o cara ressalta que as guerras são mesmo assim: algo infernal. Todos nutrimos, verdade seja dita, a impressão de que é isso mesmo. Mas as palavras e o percurso guerreiro do coronel deixam-nos diante de inimaginável  dimensão de horror.

Contribuem para que se apreenda melhor aquilo que Padre Vieira sustenta nos “Sermões”: “É a guerra aquela calamidade composta de todas calamidades, em que não há mal algum que ou não se padeça, ou não se tema; nem bem que seja próprio e seguro.” 

quarta-feira, 3 de maio de 2017



Forças ocultas poderosas

Cesar Vanucci

“O que nós temos no Brasil não é um negócio
de cinco ou dez anos. Estamos falando de 30 anos.”
(Emilio Odebrecht)

Na esteira das turbulências odebrechianas, o lúcido e bem informado analista político Élio Gáspari consegue extrair do subsolo dos fatos outra revelação desnorteante. Serve para comprovar, uma vez mais, os tortuosos caminhos trilhados, não é de hoje, na emaranhada “parceria público-privada” estabelecida na vida nacional. Vou logo avisando: matéria pra enredo cinematográfico.

Na narrativa é lembrado que o ex-ministro, ex-embaixador, ex-senador Roberto Campos, também ex-seminarista, detentor de avultada cultura e invulgar inteligência, além de verve inigualável, foi vítima de assassinato em circunstâncias nebulosas no dia 28 de abril de 1981. Deixemos que o próprio Gáspari explique o que ocorreu na fatídica data: “Roberto Campos encontrou-se no apart-hotel, na Vila Nova Conceição, em São Paulo, com sua namorada Marisa Tupinambá. Conheciam-se desde 1969 quando ele tinha 52 anos, e ela 23. À época, Campos vivia sua única – e desastrosa – experiência de empresário privado, como banqueiro. Em 1975 ele foi nomeado embaixador em Londres e pendurou Marisa na folha da Embaixada em Paris. Ela xeretou o que não devia, foi demitida, e desceu em Londres. Lá Roberto Campos conseguiu-lhe um apartamento, que usava também para suas festinhas. Depois de muitas idas e vindas, a relação azedou e, em 1981, ela foi ao apart-hotel para negociar o fim do caso. Desentenderam-se, apareceu uma faca, e o embaixador teve o abdome e o tórax perfurados.”

O desdobramento da história oferece todos os ingredientes de um filme policial de suspense. Da parte de um mundão de gente, amigos, parentes e protetores de Campos, informa o jornalista, houve o categórico propósito de ocultar, sabe-se lá por quais razões, os pormenores significativos da tragédia que arrebatou do cenário político e econômico brasileiro um cidadão aclamado e admirado por muitos como corifeu do neoliberalismo. A grande mídia na época acolheu, sem questionamentos críticos, a versão oficial posta a circular. Campos – divulgou-se amplamente - fora esfaqueado durante tentativa de assalto nas imediações do edifício em que residia, localizado – diga-se de passagem – a bons quilômetros de distância do apart-hotel da Vila Nova Conceição. O Presidente João Figueiredo e o Governador Paulo Maluf, de São Paulo, tornaram pública a firme disposição governamental de apurar rigorosamente os acontecimentos. As autoridades policiais paulistas agiram prontamente. Detiveram os presumíveis assaltantes no prazo de 48 horas, conforme ordem expressa de Maluf. Seguindo aquele manjado procedimento do inspetor protagonizado pelo ator Claude Rains no soberbo “Casablanca” (na derradeira cena do aeroporto), prenderam “os suspeitos de sempre”. Uma legião de pessoas foi convocada a se explicar no cartório da Delegacia de Homicídios. Élio Gáspari não omite, no substancioso relato, um lance instigante. Ele, novamente, com a palavra: “Ao ouvir a versão do assalto num noticiário de televisão, o general Octávio Medeiros, chefe do SNI, perguntou ‘Pra cima de mim?’”

Algum tempo passado, “O Dia”, editado no Rio de Janeiro, notório pelas manchetes policiais bombásticas, escapulindo à férrea censura, deu a lume uma reportagem, com os exageros típicos de seu estilo noticioso, como acentua Gáspari, reduzindo a subnitrato de pó de mico a farsa montada em torno da morte de Roberto Campos, identificando inclusive a autora do atentado.

E o que tudo isso tem a ver, indagará por certo, a esta altura, o aturdido leitor, com a aludida aliança entre políticos e empreiteiros firmada em plagas brasileiras há algumas décadas, de acordo com o depoimento do poderoso chefão  Emilio Odebrecht? Elementar, caro Watson... A resposta, ou respostas, são dadas no mencionado artigo de Gáspari. No período em que a responsável pelo esfaqueamento de Roberto Campos morava em Londres adivinhem só qual era a organização que lhe pagava polpuda mesada? Exatamente, a Odebrecht. A Odebrecht Overseas. O artigo conta ainda que Marisa Tupinambá permaneceu escondida e calada por orientação “de um mandarim da indústria petroquímica”. Quando ela publicou, em 1984, o livro intitulado “Eu fui testemunha”, esse livro sumiu ... “Teria sido proibido pela Justiça ou apenas não teria sido reeditado, depois que o Sebastião Camargo, o fundador da Camargo Correa, comprou todos os exemplares disponíveis”, anota Gáspari.

Convenhamos, há como ignorar que forças ocultas, ou poderes paralelos deitaram raízes pra valer em nossas atividades políticas e administrativas? Bota força oculta nisso!
                                       

            Civismo nesse pessoal 

“Civismo é a atitude moral, o procedimento
 honesto do verdadeiro patriota.”
(Coelho Neto)

Ouço, num programa de entrevistas, um educador falando da adoção, como prática cívica, da interpretação do Hino Nacional em estabelecimentos de ensino em sua área de atuação. Confesso, em lisa e reta verdade, que o anúncio, apresentado ali com toque novidadeiro, me espanta. Ando mesmo por fora das coisas... Jamais me passou pela cabeça que tal prática cívica, tão saudável, pudesse ter sido retirada a qualquer tempo, por alguém, em qualquer lugar, da programação escolar.

Em meus tempos de grupo, escola risonha e franca na Comendador Quintino (praça do Grupo) em Uberaba, cantado com vibração pela meninada, o Hino abria diariamente as atividades das turmas do primário. No Liceu Triângulo Mineiro, matriz do complexo educacional criado por Mário Palmério que deu origem à Universidade de Uberaba, era entoado rotineiramente nas entradas dos turnos. O mesmo acontecia, com regularidade, em colégio (São Judas Tadeu) que ajudei a fundar, ainda em Uberaba. Mais tarde, década de 60, quando coordenei a estruturação das unidades de ensino médio no Sesiminas, o Hino também fazia parte indissociável dos afazeres escolares cotidianos.

Não me recordo de momento algum em que esse salutar hábito educativo haja sido questionado ou suprimido. Parece-me desnecessário sublinhar sua singular importância do ponto de vista cívico. Trata-se do próprio óbvio ululante. Nosso Hino é símbolo perene da nacionalidade. Só onde os traços de brasilidade se revelem esmaecidos ali poderá surgir a disposição de se ignorar seu real significado patriótico. Já cheguei, esporadicamente, a testemunhar injustificável “esquecimento” do Hino nalgum ato solene. Não deixei, evidentemente, de manifestar em ocasião que tal meu inconformismo.

Voltando ao começo destas maldigitadas: um educador registra que, pelo menos uma vez por semana, o Hino vai ser cantado em escolas que coordena. Menos mal. Mas se é assim mesmo, se o Hino começa agora a ser executado é porque, anteriormente, não vinha sendo. A constatação preocupa. Gera inevitáveis perguntas. Será que, por aí afora, de tempos a esta parte, o Hino Nacional não vem sendo executado nas cerimônias próprias em ambientes de formação educacional? Será que com a expressão musical mais sublime do sentimento nacional vem ocorrendo algo parecido com o que acontece, pra citar exemplo constrangedor, com a comemoração da Inconfidência Mineira? A pergunta tem razão de ser. Em certas áreas ditas educacionais, tem ocorrido de a rememoração dos feitos gloriosos da Inconfidência passar, às vezes, em “brancas nuvens”. Em contrapartida, nos mesmos cenários costuma-se observar uma despropositada valorização de bobagens alienígenas do tipo “festa do halloween”. Dentro dessa linha de perplexidades pode ser incluído também um outro registro desconcertante: em alguns núcleos educacionais e recreativos, as tradicionais festas juninas, que tão bem projetam nossas raízes culturais, são às vezes despojadas de suas genuínas características. A vodka substitui o quentão e o roque pauleira anima a festança no lugar da dança roceira.

Civismo nesse pessoal!




terça-feira, 2 de maio de 2017

A espantosa tragédia da Madre

 

Cesar Vanucci *

“Você sabe que praticamos torturas. Mas para você
não é difícil de suportar, porque a vida de freira já é uma tortura.”
(Frase ouvida por Madre Maurina durante um de seus “interrogatórios”)


Foi em 8 de março, dia internacional da mulher. Numa roda de amigos, constituída de pessoas comprometidas com ações culturais e sociais, escorria animado papo sobre o decisivo papel da mulher no processo civilizatório. Causou-me surpresa, à hora que me tocou intervir na conversa, o fato de que a quase totalidade dos presentes nada sabia da espantosa tragédia vivida por uma religiosa mineira, Madre Maurina Borges da Silveira, nos chamados “anos de chumbo”. Diante do interesse suscitado pelo que revelei, comprometi-me com o grupo a reproduzir neste espaço a história divulgada anos atrás.

=A Família de Perdizes

Deu-se em junho de 1956. O “Correio Católico”, diário vinculado a Arquidiocese de Uberaba, com 12 mil assinantes – o que lhe assegurava, certeiramente, a condição de um dos jornais mineiros com maior poder de influência junto ao público leitor –, divulgou reportagem a respeito de uma família de Perdizes, município do Triângulo Mineiro, que se notabilizava pela especial circunstância de abrigar em seu seio quatro irmãos (dois homens e duas mulheres) que haviam optado pela vida religiosa.


Um deles, Manoel, frade dominicano, veio a assumir o cargo de Superior na congregação. Outro, Vicente, integrante do clero regular, exerceu funções paroquiais na Província Eclesiástica de Uberaba. As duas mulheres ingressaram na ordem franciscana, consagrando-se a meritórios trabalhos com menores desamparados. Foi nessa ocasião que fiquei conhecendo pelo nome, editor-chefe que era do jornal, Madre Maurina Borges da Silveira. Seus pais, Antônio Borges da Silveira e Francelina Teodoro Borges, pequenos sitiantes, pessoas simples, rodeadas de estima e apreço no lugarejo em que viviam, criaram condições perfeitas para que a vocação religiosa dos filhos pudesse florescer. Nutriam com relação ao fato justificável sentimento de orgulho. A família era tida por todos, lembro-me bem, como um edificante modelo de virtudes no meio comunitário.

=Relato chocante
Em 1970, 14 anos passados, ouvi pela segunda vez, de forma inesperada e num relato extremamente chocante, menção ao nome de Maurina Borges da Silveira. Conto como foi. Visitava, naquela manhã de sábado, como fazia todas as vezes em que ia a Uberaba, o Arcebispo Dom Alexandre Gonçalves Amaral. Apoderado de santa indignação, o ilustre e saudoso Prelado, uma das inteligências mais fulgurantes do Episcopado, articulando-se com outros membros da Igreja na busca de uma solução para o caso, colocou-me a par dos hediondos pormenores de uma violência inimaginável, cometida por agentes do governo contra a referida religiosa, à época diretora de uma instituição assistencial em Ribeirão Preto, o “Lar Santana”. Contando então com 43 anos, a freira franciscana foi arbitrariamente detida por truculentos membros da tristemente célebre “Operação Bandeirante”, sob a falsa acusação de apoiar um grupo armado hostil à ditadura militar. O orfanato de Madre Maurina cedia na ocasião, uma sala, para reuniões periódicas, a estudantes ligados a Ação Católica. Alguns ou todos eles, não se sabe bem, opunham-se ao regime vigente, e manteriam segundo a polícia ligações com setores contrarrevolucionários.

 =Suplícios inenarráveis
Madre Maurina, pessoa inteiramente consagrada ao mister religioso, nada sabia a respeito das supostas ações políticas dos rapazes. Mas por conta da cessão da sala, por sinal colocada à disposição dos jovens antes mesmo de sua chegada à direção do orfanato, acabou sendo lançada, de hora para outra, no torvelinho avassalador de uma tragédia com características kafkianas. Foi detida, barbaramente espancada, torturada, seviciada, alvo de toda sorte de humilhações. Seus algozes forçaram-na, na base da pancada, do pau de arara e do choque elétrico, a assinar declarações em que se confessava amante de militantes políticos apontados, como era de hábito na época, como subversivos. De nada valeram as ponderações feitas em seu favor por religiosos e superiores eclesiásticos, as manifestações solidárias das pessoas que acompanhavam de perto, com admiração, a rotina de seu extraordinário trabalho apostólico, dando testemunho fidedigno de sua absorção por inteiro à bela missão assistencial a que se consagrou a partir do momento da opção pelos votos religiosos. Colocaram-na incomunicável, submetendo-a a suplícios inenarráveis.


                          Episódio decisivo    


“Eu tenho pena de deixar-te nua, na presença de todos.”
(Um dos torturadores de Madre Maurina)

A espantosa tragédia vivida por Madre Maurina Borges da Silveira, acusada falsamente de conluio com guerrilheiros para a derrubada da ditadura, é apontada por muitos como o episódio decisivo que conduziu o legendário Cardeal-Arcebispo Dom Evaristo Arns a desfraldar a bandeira da luta sustentada contra as atrocidades praticadas nos “anos de chumbo”.

Mantida incomunicável por largo período, a inocente criatura, uma vida inteira de devoção religiosa arraigada, foi vítima de toda sorte de sevicias em intermináveis “interrogatórios”. Seu drama comoveu o Episcopado, inspirando Dom Arns, apoiado por líderes de outras correntes, o Pastor James Wright entre eles, utilizando os escassos recursos de expressão disponíveis naquele período trevoso, a bater de frente com os responsáveis pelas barbaridades cometidas nos porões do regime. A essa época começou a tomar forma o histórico documento “Tortura, nunca mais”, que cataloga parte dos tenebrosos atentados daqueles tempos contra a dignidade humana.

=Excomunhão de agentes policiais
As atrocidades tomaram tal proporção que o desassombrado Arcebispo de Ribeirão Preto, Dom Felício Vasconcelos, atordoado face o desinteresse das autoridades em investigarem as denúncias acerca das ignomínias cometidas contra a freira, tomou a temerária decisão de ocupar os púlpitos para condenar as felonias dos agentes policiais e militares e decretar oficialmente a excomunhão de dois delegados envolvidos na ação criminosa. Renato Ribeiro Soares e Miguel Lamano, “valentes” integrantes da equipe do “célebre” Sergio Fleury, os delegados atingidos pela penalidade canônica.

=Carta da Madre ao Ministro
O que se lerá na sequência são trechos de carta, datada de 17 de dezembro de 1969, que Madre Maurina (“Jornal do Brasil”, edição de 16.11.2003), encaminhou ao então Ministro da Justiça, relatando parte do sofrimento que lhe infligiram.
“Invocando a Deus como testemunha da verdade de minhas palavras venho relatar as torturas a mim infligidas por agentes da Polícia de São Paulo (...) Confesso não ser fácil, mas o farei para que V. Exa. tome providências no sentido de evitar (...) que pessoas inocentes sofram injustamente. Fui conduzida ao Quartel Militar de Ribeirão Preto, às 14h do dia 25 de outubro (...).Comecei logo a falar sobre o que sabia do movimento de juventude existente em minha casa, pois ignorava o tão falado terrorismo. Foi através dos elementos que me interrogavam que aprendi o que era terrorismo. (...) Interrompiam-me a cada instante, com gritarias e ameaças, usando uma terminologia, a qual sinto-me envergonhada de repeti-la. "Você sabe que usamos de torturas, mas para você não é difícil suportar, porque a vida das freiras já é uma tortura". “É tão cínica, como pode se fazer de tão inocente, sua freira do diabo.” “Você não é filha de Deus. Fica sabendo que teremos o prazer de prender bispos e padres” (...).”Você não é mais virgem. Vamos fazer um exame ginecológico.” (...) Dr. Fleury perguntou-me: ''Você é amante do Mário Lorenzato? Responda afirmativo, é o suficiente, estará resolvido.” (...) Jamais poderia afirmar uma tal mentira. (...) Foi então que ligaram a máquina de choques e se divertiram às minhas custas. (...) Apareceu na sala, um sargento dando ordens para que todos se retirassem, dizendo: ''Sou eu que vou conversar com a irmã. (...) Fui conduzida para a cela, juntamente com duas moças. (...). Não as conhecia. Foi neste grupo que me incluíram como se eu fosse terrorista. (...) Como religiosa, acostumada a uma vida organizada, em ambiente de respeito, muito me custou suportar (...) de um lado os soldados repetindo (...) insultos de baixo calão (...) e, de outro, os ruídos da famosa sala de interrogatórios, de onde, continuamente, ouviam-se os gritos lancinantes dos torturados e os barulhos dos espancamentos. (...) Fui levada à presença de uma pessoa loura, de olhos azuis, estatura média (...) Achei que estivesse meio bêbado, sentia-se o repugnante cheiro de álcool. Senti pavor (...). Entre outras coisas, dizia: ''Irmã querida, posso te chamar de irmã, não é? Eu te quero muito. Vem pertinho de mim. (...) Dá-me uma colher de chá. Tenho pena de deixar-te nua na presença de todos. (...) Vamos, me dá uma colher de chá... Pensa que eu estou há dias longe da minha mulher!'' (...) Na cadeia de Cravinhos permaneci 25 dias incomunicável. Apesar da insistência de meus irmãos (...) para obterem notícias minhas, não permitiram que nos comunicássemos. Nem tampouco foi permitido a minha superiora provincial falar comigo. (...) Tive a impressão de estar abandonada (...) Outro tormento foi a falta de assistência religiosa.(...) Solicitei um sacerdote para levar-me a Eucaristia. Não o permitiram, dizendo: Isso faz parte do castigo!'' (...)



Dom Arns confirma as sevicias

 “Atormenta-me (...) a perspectiva de não poder
prosseguir na vida de apostolado que escolhi em meu país.”
(Carta de Madre Maurina do exílio, no México)

No relato da aterrorizante história da religiosa franciscana Madre Maurina Borges da Silveira, ela conta que o delegado Lamano aplicou-lhe pancadas no corpo. A certa altura, num dos interrogatórios, ele anunciou que iria tortura-la juntamente “com rapaz seu protegido”. O espancamento bárbaro atingiu os dois. Na carta, Maurina explica que o relatório feito, “como desencargo de consciência”, tem o objetivo de contribuir “para que outros não sofram os vexames e maus tratos a mim dispensados”. Arremata: como brasileira e cristã, gostaria imensamente fossem usados métodos eficientes na aplicação da justiça, inspirada (...) no respeito à dignidade da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus.
         
=Cruel indiferença
A carta ao Ministro Alfredo Buzaid, dando conta das violências e da acusação injusta de participação em ações contrárias ao regime, não mereceu qualquer atenção digna de nota do governo. O apelo angustiado esbarrou em glacial e cruel indiferença.

Dom Evaristo Arns, em depoimento ao “Jornal do Brasil” em 16.11.2003, confirmou as sevicias. Disse, a propósito: “Não negarei as evidências das sevicias sexuais, pois isso ficou demonstrado no depoimento dela e de outras presas que estavam com ela em Ribeirão Preto e também passaram por esses horrores.”

No mesmo depoimento, o Cardeal desmentiu enfaticamente boato maldoso, posto a circular, ao que tudo indica, pelos próprios algozes da freira, de que a mesma estaria grávida em consequência de “relacionamento promíscuo” com “companheiros de militância política”. A sórdida maquinação ia mais longe: por causa de “inconveniente gravidez”, Madre Maurina havia decidido fazer “aborto”. E a Igreja “teria intercedido”, junto ao governo, para que a religiosa figurasse numa lista de presos políticos encaminhados a exílio no México em troca da libertação de um cônsul japonês sequestrado.

=Rede de intrigas
O combativo Dom Evaristo desfez toda a rede de intrigas, de forma categórica: - “Está na hora de acabar com as mentiras e os boatos que rondam esse episódio. Penso que a inclusão do nome de Madre Maurina na lista de presos trocados pelo cônsul japonês se deve aos próprios militares. Eles queriam, naquele momento, demonstrar para a opinião pública o quanto a Igreja estava comprometida com a causa. Essa foi a forma de desmoralizar os religiosos, exibindo-os como terroristas, numa espécie de vingança. Ela era mulher e freira. Isso chamava a atenção mais que tudo. Era como estarem dizendo: “Olha, precisamos agir, pois até as freiras já estão metidas nisso.”

=Exílio forçado
Madre Maurina ficou ainda mais arrasada psicológica e fisicamente - se isso fosse ainda possível de ser concebido face ao martírio de que foi vítima - com o exílio forçado. Assinou declaração, reafirmando inocência “diante de Deus” com relação às acusações imputadas. Sustentou não conhecer ninguém da lista dos prisioneiros trocados pelo cônsul do Japão, nem tampouco nenhuma das organizações “subversivas ou comunistas, ou o que quer que seja”, envolvidas nos acontecimentos. Explicitou sua disposição pessoal em não sair do Brasil para qualquer outro país e, aqui, poder provar perante a Justiça a verdade.

=“Atormenta-me não poder rezar ajoelhada”
Já no exílio, dirigiu apelos dramáticos ao governo para que lhe permitisse o retorno, “a fim de ser normalmente processada e julgada (...) e demonstrar a minha inocência.” Palavras textuais de uma das cartas enviadas: “Não me atormenta a perspectiva de vir a ser, eventualmente, recolhida à prisão onde me encontrava. Atormenta-me, isto sim, a perspectiva de não poder prosseguir na vida de apostolado que escolhi em meu país, de não poder abraçar e beijar as minhas irmãs de vocação e a minha família, de não poder rezar ajoelhada sobre a terra que me viu nascer, onde caminhei pela primeira vez e que, abrigará, confio em Deus, meu corpo, quando então prestarei contas de minha vida ao Senhor Nosso Pai.”
      

O exílio e o retorno da Madre

 “Sua fé foi sempre muito grande.”
(Frei Manoel, dominicano, irmão da Madre)


Do México, recolhida ao Convento das Irmãs de São José de Lyon, onde permaneceu em exílio forçado até a anistia em 1979, a religiosa encaminhou inúmeras correspondências às autoridades, pedindo permissão para regressar a terra natal. Há indícios de que, em alguns setores, houve quem se desse conta, em dado instante, da necessidade de se proceder a um reexame do doloroso caso da freira alvejada pela boçalidade e paranoia.

=Indesejado exílio
Em julho de 1971, a 2ª Auditoria da Justiça Militar aconselhou o retorno da Madre. Esse posicionamento inédito, foi tomado num período ainda de violenta repressão. Pode ser interpretado como indicativo de que algumas pessoas no mundo oficial mostravam-se preocupadas, de certa maneira, com o tamanho do abacaxi que teria de ser, mais adiante, descascado na tentativa de se oferecer explicação para as ignomínias praticadas contra Maurina. A sentença, segundo o antigo “Jornal do Brasil”, levou em conta que “provas colhidas em Juízo” autorizavam “a presunção de que Maurina foi incluída na lista de presos trocados pelo cônsul do Japão, por insidiosa manobra de guerra psicológica, por parte dos militantes da subversão.” Na decisão, fazia-se a ressalva de que a religiosa “suplicou, até o último momento” antes do embarque, para que a deixassem ficar no país. De algum modo, o Ministro Buzaid sensibilizou-se com o argumento. Chegou até a elaborar exposição ao então Presidente Médici com minuta de decreto revogando o banimento da freira. O expediente ficou paralisado até junho de 76, alcançando, já aí, o governo Geisel. O sucessor de Buzaid na pasta da Justiça, Armando Falcão, deu andamento ao processo retido emitindo parecer conclusivo nos seguintes termos: “Minha opinião é contrária à concessão da permissão da vinda da interessada, por inoportuna e inconveniente.” Conforme ainda o JB, Geisel decidiu. Fechou com Falcão.

Madre Maurina continuou, à vista disso, a amargar o indesejado exílio. Nessa tormentosa fase, seu pai, Antônio Borges da Silveira, veio a falecer. Negaram-lhe também o direito de comparecer ao sepultamento.

=A morte de Maurina
De volta ao Brasil, graças a anistia, a religiosa retomou suas atividades na congregação franciscana com o mesmo inquebrantável espírito de fé que marcou toda sua trajetória de vida, dedicando-se ao trabalho apostólico de sempre. Em 2011, no dia 5 de março, aos 87 anos de idade, cercada do carinho das colegas de hábito, em Araraquara, São Paulo, Maurina deixou este mundo. Embora as vicissitudes enfrentadas, aqui registradas parcialmente, a morte desta freira valorosa, mineira de Perdizes, condenada ao martírio num momento trevoso da história, passou inexplicavelmente desapercebida aos olhares da mídia e dos próprios órgãos de defesa dos direitos humanos.

Tanto quanto pude constatar, o reverente pronunciamento do Deputado Adelmo Carneiro Leão, sobre sua vida e obra, na Assembleia Legislativa de Minas, estranhavelmente sem repercussão midiática, foi o único registro significativo feito em Minas Gerais a respeito do caso. Na internet, colhi também alguns dados que serviram de fonte para este trabalho. No mais, o que prevaleceu foi inexplicável silêncio. Não sei dizer, mas ponho-me a fazer elucubrações a propósito. Essa ausência de registro, pelo menos por parte das organizações de direitos humanos, talvez decorreu de o fato da religiosa não haver, ao contrário do que a acusavam, se inclinado por qualquer tipo de militância política. Circunstância, cá pra nós, que não deveria ser de molde também a justificar a escassa divulgação.

=O perdão aos algozes
Frade Manoel, dominicano, pouco antes da partida de Maurina, não escondendo imensa ternura e orgulho em relação à irmã, comentou o sofrimento inaudito que seu martírio impôs. Contou, ainda, que numa das sessões de tortura, ela clamou por Deus, dizendo aos torturadores que Ele estava ali presente. Deu pra perceber que alguns deles sentiram-se abalados com a invocação, dando sinais de temor.

Apesar dos suplícios porque passou, Maurina perdoou-os a todos. “Sua fé foi sempre muito grande”, é o sacerdote ainda que afirma, acrescentando que duas moças, torturadas juntamente com Maurina, vieram a se converter ao catolicismo inspiradas nos exemplos de fervor transmitidos pela religiosa naquele período de reclusão.

Hipocrisia e dedodurismo


“... pelo menos 15 crianças eram filhas de mães solteiras e ricas.”
(Revelação de Madre Maurina a um jornalista)

Reservei para os leitores, no fecho deste relato sobre o martírio imposto a Madre Maurina Borges da Silveira por bestiais agentes da lei no período da ditadura, uma revelação muitíssimo intrigante. O que vai ser contado compõe um retrato impecável da hipocrisia e farisaísmo imperantes em certos ambientes mundanos. Ambientes esses sempre receptivos, em momentos de terror político, às práticas do dedodurismo encapuzado e do denuncismo irresponsável. A própria freira relatou o caso ao jornalista Luiz Eblak, num papo estendido por várias horas.

Tomei conhecimento da entrevista aludida consultando a “Wikipédia”, logo após ser informado do falecimento da religiosa. Falecimento ocorrido em 5 de março de 2011, cercado de injustificável silêncio midiático, como já anotei.

=Revelação espantosa
O repórter indaga de Madre Maurina: - “De onde acha que vieram tantos boatos sobre a senhora, como os episódios de seu envolvimento com guerrilheiros e a violência sexual?” A resposta da freira provoca espanto. Deixa subtendidos os malefícios irreparáveis à dignidade humana que, em momentos de desmandos autoritários, a má fé, a intolerância, o espírito de vingança, a inveja são capazes de engendrar.

“Tem uma coisa – registra a religiosa – que eu nunca disse a ninguém. É sobre os ricos de Ribeirão Preto. No “Lar Santana”, orfanato que eu dirigia, tinha muita criança filha de mãe solteira e rica, o que era escândalo social para a época (1969). Então, as crianças ficavam lá, mas o lugar era para os pobres. Eram cerca de cem crianças e pelo menos 15 eram filhas de mães solteiras e ricas. Elas estavam tomando o lugar de outras, pobres, que precisavam de fato ficar no Orfanato “Lar Santana”. As famílias davam cheques para nós e tudo o mais, mas o correto era que as crianças vivessem em suas casas. O que eu fiz? Devolvi as 15 crianças. Fui à casa de cada uma delas e as devolvi. E eram mansões, casas enormes. Eu disse para as famílias: “O Orfanato é lugar de criança necessitada que precise de um recanto para viver, que não tenha pai nem mãe. Acho que isso acabou influenciando de algum jeito o que me ocorreu depois. Não sei quem eram as famílias, mas isso deve ter tido ligação com a minha prisão.” 

=“Não sabia de nada”
A uma outra pergunta do repórter sobre se a freira sabia das atividades políticas, consideradas subversivas pelas autoridades, que os integrantes do Movimento Estudantil Jovem desenvolviam na sala em que se reuniam no Orfanato sob sua direção, Madre Maurina responde: - “Não sabia. Não sabia de nada. Só sabia do “Movimento de Estudantes Jovens”, mas nada mais. Nem desconfiava. Um dia, o pessoal do MEJ me pediu para fazer uma palavra sobre o amor. Então, nem dá pra imaginar que gente de um grupo guerrilheiro se interessasse por palestra de uma freira sobre amor.”  

=Está faltando um documentário
A “Editora Vozes” lançou, há alguns anos, um livro, da jornalista Matilde Lemos, intitulado “Sombras da Repressão – O Outono de Maurina Borges”. A história da Madre é focalizada com base em entrevistas conduzidas pela autora. Um outro autor, Jacob Gorender, também reporta-se ao caso Maurina no livro “Combate nas Trevas”.

Quem sabe se, mais adiante, alguém não se animará a produzir documentário para cinema ou televisão a respeito da tragédia de Maurina? Até mesmo como uma forma de traduzir a repulsa da esmagadora maioria dos cidadãos de crença humanística que confiam nos valores da democracia e no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana e que abominam toda forma de totalitarismo e de rejeição, sustentada pelo arbítrio, a esses sagrados valores e direitos.

* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)



A SAGA LANDELL MOURA

Uma mulher rodeada de palavras

                             *Cesar Vanucci “Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania de ter fé na vida” (verso da canção “M...