A espantosa tragédia da Madre
Cesar Vanucci *
“Você
sabe que praticamos torturas. Mas para você
não
é difícil de suportar, porque a vida de freira já é uma tortura.”
(Frase ouvida por Madre Maurina durante
um de seus “interrogatórios”)
Foi em 8 de março, dia internacional da
mulher. Numa roda de amigos, constituída de pessoas comprometidas com ações
culturais e sociais, escorria animado papo sobre o decisivo papel da mulher no
processo civilizatório. Causou-me surpresa, à hora que me tocou intervir na
conversa, o fato de que a quase totalidade dos presentes nada sabia da
espantosa tragédia vivida por uma religiosa mineira, Madre Maurina Borges da Silveira, nos chamados “anos de chumbo”. Diante do interesse suscitado pelo que
revelei, comprometi-me com o grupo a reproduzir neste espaço a história
divulgada anos atrás.
=A Família de Perdizes
Deu-se em
junho de 1956. O “Correio Católico”, diário vinculado a Arquidiocese de
Uberaba, com 12 mil assinantes – o que lhe assegurava, certeiramente, a
condição de um dos jornais mineiros com maior poder de influência junto ao
público leitor –, divulgou reportagem a respeito de uma família de Perdizes,
município do Triângulo Mineiro, que se notabilizava pela especial circunstância
de abrigar em seu seio quatro irmãos (dois homens e duas mulheres) que haviam
optado pela vida religiosa.
Um deles, Manoel, frade dominicano, veio
a assumir o cargo de Superior na congregação. Outro, Vicente, integrante do
clero regular, exerceu funções paroquiais na Província Eclesiástica de Uberaba.
As duas mulheres ingressaram na ordem franciscana, consagrando-se a meritórios
trabalhos com menores desamparados. Foi nessa ocasião que fiquei conhecendo
pelo nome, editor-chefe que era do jornal, Madre Maurina Borges da Silveira.
Seus pais, Antônio Borges da Silveira e Francelina Teodoro Borges, pequenos
sitiantes, pessoas simples, rodeadas de estima e apreço no lugarejo em que
viviam, criaram condições perfeitas para que a vocação religiosa dos filhos
pudesse florescer. Nutriam com relação ao fato justificável sentimento de
orgulho. A família era tida por todos, lembro-me bem, como um edificante modelo
de virtudes no meio comunitário.
=Relato chocante
Em 1970, 14 anos passados, ouvi pela
segunda vez, de forma inesperada e num relato extremamente chocante, menção ao
nome de Maurina Borges da Silveira. Conto como foi. Visitava, naquela manhã de
sábado, como fazia todas as vezes em que ia a Uberaba, o Arcebispo Dom
Alexandre Gonçalves Amaral. Apoderado de santa indignação, o ilustre e saudoso
Prelado, uma das inteligências mais fulgurantes do Episcopado, articulando-se
com outros membros da Igreja na busca de uma solução para o caso, colocou-me a
par dos hediondos pormenores de uma violência inimaginável, cometida por agentes
do governo contra a referida religiosa, à época diretora de uma instituição
assistencial em Ribeirão Preto, o “Lar Santana”. Contando então com 43 anos, a
freira franciscana foi arbitrariamente detida por truculentos membros da
tristemente célebre “Operação Bandeirante”, sob a falsa acusação de apoiar um
grupo armado hostil à ditadura militar. O orfanato de Madre Maurina cedia na
ocasião, uma sala, para reuniões periódicas, a estudantes ligados a Ação
Católica. Alguns ou todos eles, não se sabe bem, opunham-se ao regime vigente,
e manteriam segundo a polícia ligações com setores contrarrevolucionários.
=Suplícios
inenarráveis
Madre Maurina, pessoa inteiramente
consagrada ao mister religioso, nada sabia a respeito das supostas ações
políticas dos rapazes. Mas por conta da cessão da sala, por sinal colocada à
disposição dos jovens antes mesmo de sua chegada à direção do orfanato, acabou
sendo lançada, de hora para outra, no torvelinho avassalador de uma tragédia
com características kafkianas. Foi detida, barbaramente espancada, torturada,
seviciada, alvo de toda sorte de humilhações. Seus algozes forçaram-na, na base
da pancada, do pau de arara e do choque elétrico, a assinar declarações em que
se confessava amante de militantes políticos apontados, como era de hábito na
época, como subversivos. De nada valeram as ponderações feitas em seu favor por
religiosos e superiores eclesiásticos, as manifestações solidárias das pessoas
que acompanhavam de perto, com admiração, a rotina de seu extraordinário
trabalho apostólico, dando testemunho fidedigno de sua absorção por inteiro à
bela missão assistencial a que se consagrou a partir do momento da opção pelos
votos religiosos. Colocaram-na incomunicável, submetendo-a a suplícios
inenarráveis.
Episódio decisivo
“Eu tenho pena de deixar-te nua, na presença de
todos.”
(Um dos torturadores de Madre Maurina)
A espantosa tragédia vivida por Madre
Maurina Borges da Silveira, acusada falsamente de conluio com guerrilheiros
para a derrubada da ditadura, é apontada por muitos como o episódio decisivo
que conduziu o legendário Cardeal-Arcebispo Dom Evaristo Arns a desfraldar a
bandeira da luta sustentada contra as atrocidades praticadas nos “anos de
chumbo”.
Mantida incomunicável por largo período,
a inocente criatura, uma vida inteira de devoção religiosa arraigada, foi
vítima de toda sorte de sevicias em intermináveis “interrogatórios”. Seu drama
comoveu o Episcopado, inspirando Dom Arns, apoiado por líderes de outras
correntes, o Pastor James Wright entre eles, utilizando os escassos recursos de
expressão disponíveis naquele período trevoso, a bater de frente com os
responsáveis pelas barbaridades cometidas nos porões do regime. A essa época
começou a tomar forma o histórico documento “Tortura, nunca mais”, que cataloga
parte dos tenebrosos atentados daqueles tempos contra a dignidade humana.
=Excomunhão de agentes policiais
As atrocidades tomaram tal proporção que
o desassombrado Arcebispo de Ribeirão Preto, Dom Felício Vasconcelos, atordoado
face o desinteresse das autoridades em investigarem as denúncias acerca das
ignomínias cometidas contra a freira, tomou a temerária decisão de ocupar os
púlpitos para condenar as felonias dos agentes policiais e militares e decretar
oficialmente a excomunhão de dois delegados envolvidos na ação criminosa.
Renato Ribeiro Soares e Miguel Lamano, “valentes” integrantes da equipe do “célebre”
Sergio Fleury, os delegados atingidos pela penalidade canônica.
=Carta da Madre ao Ministro
O que se lerá na sequência são trechos
de carta, datada de 17 de dezembro de 1969, que Madre Maurina (“Jornal do
Brasil”, edição de 16.11.2003), encaminhou ao então Ministro da Justiça,
relatando parte do sofrimento que lhe infligiram.
“Invocando a Deus como testemunha da verdade de minhas
palavras venho relatar as torturas a mim infligidas por agentes da Polícia de
São Paulo (...) Confesso não ser fácil, mas o farei para que V. Exa. tome
providências no sentido de evitar (...) que pessoas inocentes sofram
injustamente. Fui conduzida ao Quartel Militar de Ribeirão Preto, às 14h do dia
25 de outubro (...).Comecei logo a falar sobre o que sabia do movimento de
juventude existente em minha casa, pois ignorava o tão falado terrorismo. Foi
através dos elementos que me interrogavam que aprendi o que era terrorismo. (...)
Interrompiam-me a cada instante, com gritarias e ameaças, usando uma
terminologia, a qual sinto-me envergonhada de repeti-la. "Você sabe que
usamos de torturas, mas para você não é difícil suportar, porque a vida das
freiras já é uma tortura". “É tão cínica, como pode se fazer de tão
inocente, sua freira do diabo.” “Você não é filha de Deus. Fica sabendo que
teremos o prazer de prender bispos e padres” (...).”Você não é mais virgem.
Vamos fazer um exame ginecológico.” (...) Dr. Fleury perguntou-me: ''Você é
amante do Mário Lorenzato? Responda afirmativo, é o suficiente, estará
resolvido.” (...) Jamais poderia afirmar uma tal mentira. (...) Foi então que
ligaram a máquina de choques e se divertiram às minhas custas. (...) Apareceu
na sala, um sargento dando ordens para que todos se retirassem, dizendo: ''Sou
eu que vou conversar com a irmã. (...) Fui conduzida para a cela, juntamente
com duas moças. (...). Não as conhecia. Foi neste grupo que me incluíram como
se eu fosse terrorista. (...) Como religiosa, acostumada a uma vida organizada,
em ambiente de respeito, muito me custou suportar (...) de um lado os soldados
repetindo (...) insultos de baixo calão (...) e, de outro, os ruídos da famosa
sala de interrogatórios, de onde, continuamente, ouviam-se os gritos
lancinantes dos torturados e os barulhos dos espancamentos. (...) Fui levada à
presença de uma pessoa loura, de olhos azuis, estatura média (...) Achei que
estivesse meio bêbado, sentia-se o repugnante cheiro de álcool. Senti pavor (...).
Entre outras coisas, dizia: ''Irmã querida, posso te chamar de irmã, não é? Eu
te quero muito. Vem pertinho de mim. (...) Dá-me uma colher de chá. Tenho pena
de deixar-te nua na presença de todos. (...) Vamos, me dá uma colher de chá...
Pensa que eu estou há dias longe da minha mulher!'' (...) Na cadeia de
Cravinhos permaneci 25 dias incomunicável. Apesar da insistência de meus irmãos
(...) para obterem notícias minhas, não permitiram que nos comunicássemos. Nem
tampouco foi permitido a minha superiora provincial falar comigo. (...) Tive a
impressão de estar abandonada (...) Outro tormento foi a falta de assistência
religiosa.(...) Solicitei um sacerdote para levar-me a Eucaristia. Não o
permitiram, dizendo: Isso faz parte do castigo!'' (...)
Dom Arns confirma as sevicias
“Atormenta-me
(...) a perspectiva de não poder
prosseguir na vida de apostolado que
escolhi em meu país.”
(Carta de Madre Maurina do exílio, no México)
No relato da aterrorizante história da
religiosa franciscana Madre Maurina Borges da Silveira, ela conta que o
delegado Lamano aplicou-lhe pancadas no corpo. A certa altura, num dos
interrogatórios, ele anunciou que iria tortura-la juntamente “com rapaz seu
protegido”. O espancamento bárbaro atingiu os dois. Na carta, Maurina explica
que o relatório feito, “como desencargo de consciência”, tem o objetivo de
contribuir “para que outros não sofram os vexames e maus tratos a mim
dispensados”. Arremata: como brasileira e cristã, gostaria imensamente fossem
usados métodos eficientes na aplicação da justiça, inspirada (...) no respeito
à dignidade da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus.
=Cruel indiferença
A carta ao Ministro Alfredo Buzaid,
dando conta das violências e da acusação injusta de participação em ações
contrárias ao regime, não mereceu qualquer atenção digna de nota do governo. O
apelo angustiado esbarrou em glacial e cruel indiferença.
Dom Evaristo Arns, em depoimento ao
“Jornal do Brasil” em 16.11.2003, confirmou as sevicias. Disse, a propósito:
“Não negarei as evidências das sevicias sexuais, pois isso ficou demonstrado no
depoimento dela e de outras presas que estavam com ela em Ribeirão Preto e
também passaram por esses horrores.”
No mesmo depoimento, o Cardeal desmentiu
enfaticamente boato maldoso, posto a circular, ao que tudo indica, pelos
próprios algozes da freira, de que a mesma estaria grávida em consequência de
“relacionamento promíscuo” com “companheiros de militância política”. A sórdida
maquinação ia mais longe: por causa de “inconveniente gravidez”, Madre Maurina
havia decidido fazer “aborto”. E a Igreja “teria intercedido”, junto ao
governo, para que a religiosa figurasse numa lista de presos políticos
encaminhados a exílio no México em troca da libertação de um cônsul japonês
sequestrado.
=Rede de intrigas
O combativo Dom Evaristo desfez toda a
rede de intrigas, de forma categórica: - “Está na hora de acabar com as
mentiras e os boatos que rondam esse episódio. Penso que a inclusão do nome de
Madre Maurina na lista de presos trocados pelo cônsul japonês se deve aos
próprios militares. Eles queriam, naquele momento, demonstrar para a opinião
pública o quanto a Igreja estava comprometida com a causa. Essa foi a forma de
desmoralizar os religiosos, exibindo-os como terroristas, numa espécie de
vingança. Ela era mulher e freira. Isso chamava a atenção mais que tudo. Era
como estarem dizendo: “Olha, precisamos agir, pois até as freiras já estão
metidas nisso.”
=Exílio forçado
Madre Maurina ficou ainda mais arrasada
psicológica e fisicamente - se isso fosse ainda possível de ser concebido face
ao martírio de que foi vítima - com o exílio forçado. Assinou declaração,
reafirmando inocência “diante de Deus” com relação às acusações imputadas.
Sustentou não conhecer ninguém da lista dos prisioneiros trocados pelo cônsul
do Japão, nem tampouco nenhuma das organizações “subversivas ou comunistas, ou
o que quer que seja”, envolvidas nos acontecimentos. Explicitou sua disposição
pessoal em não sair do Brasil para qualquer outro país e, aqui, poder provar
perante a Justiça a verdade.
=“Atormenta-me não poder rezar ajoelhada”
Já no exílio, dirigiu apelos dramáticos
ao governo para que lhe permitisse o retorno, “a fim de ser normalmente
processada e julgada (...) e demonstrar a minha inocência.” Palavras textuais
de uma das cartas enviadas: “Não me atormenta a perspectiva de vir a ser,
eventualmente, recolhida à prisão onde me encontrava. Atormenta-me, isto sim, a
perspectiva de não poder prosseguir na vida de apostolado que escolhi em meu
país, de não poder abraçar e beijar as minhas irmãs de vocação e a minha
família, de não poder rezar ajoelhada sobre a terra que me viu nascer, onde
caminhei pela primeira vez e que, abrigará, confio em Deus, meu corpo, quando
então prestarei contas de minha vida ao Senhor Nosso Pai.”
O exílio e o retorno da Madre
“Sua
fé foi sempre muito grande.”
(Frei Manoel, dominicano, irmão da
Madre)
Do México, recolhida ao Convento das
Irmãs de São José de Lyon, onde permaneceu em exílio forçado até a anistia em
1979, a religiosa encaminhou inúmeras correspondências às autoridades, pedindo
permissão para regressar a terra natal. Há indícios de que, em alguns setores,
houve quem se desse conta, em dado instante, da necessidade de se proceder a um
reexame do doloroso caso da freira alvejada pela boçalidade e paranoia.
=Indesejado exílio
Em julho de 1971, a 2ª Auditoria da
Justiça Militar aconselhou o retorno da Madre. Esse posicionamento inédito, foi
tomado num período ainda de violenta repressão. Pode ser interpretado como
indicativo de que algumas pessoas no mundo oficial mostravam-se preocupadas, de
certa maneira, com o tamanho do abacaxi que teria de ser, mais adiante,
descascado na tentativa de se oferecer explicação para as ignomínias praticadas
contra Maurina. A sentença, segundo o antigo “Jornal do Brasil”, levou em conta
que “provas colhidas em Juízo” autorizavam “a presunção de que Maurina foi
incluída na lista de presos trocados pelo cônsul do Japão, por insidiosa
manobra de guerra psicológica, por parte dos militantes da subversão.” Na
decisão, fazia-se a ressalva de que a religiosa “suplicou, até o último
momento” antes do embarque, para que a deixassem ficar no país. De algum modo,
o Ministro Buzaid sensibilizou-se com o argumento. Chegou até a elaborar
exposição ao então Presidente Médici com minuta de decreto revogando o
banimento da freira. O expediente ficou paralisado até junho de 76, alcançando,
já aí, o governo Geisel. O sucessor de Buzaid na pasta da Justiça, Armando
Falcão, deu andamento ao processo retido emitindo parecer conclusivo nos
seguintes termos: “Minha opinião é contrária à concessão da permissão da vinda
da interessada, por inoportuna e inconveniente.” Conforme ainda o JB, Geisel
decidiu. Fechou com Falcão.
Madre Maurina continuou, à vista disso,
a amargar o indesejado exílio. Nessa tormentosa fase, seu pai, Antônio Borges
da Silveira, veio a falecer. Negaram-lhe também o direito de comparecer ao
sepultamento.
=A morte de Maurina
De volta ao Brasil, graças a anistia, a
religiosa retomou suas atividades na congregação franciscana com o mesmo
inquebrantável espírito de fé que marcou toda sua trajetória de vida,
dedicando-se ao trabalho apostólico de sempre. Em 2011, no dia 5 de março, aos
87 anos de idade, cercada do carinho das colegas de hábito, em Araraquara, São
Paulo, Maurina deixou este mundo. Embora as vicissitudes enfrentadas, aqui registradas
parcialmente, a morte desta freira valorosa, mineira de Perdizes, condenada ao
martírio num momento trevoso da história, passou inexplicavelmente
desapercebida aos olhares da mídia e dos próprios órgãos de defesa dos direitos
humanos.
Tanto quanto pude constatar, o reverente
pronunciamento do Deputado Adelmo Carneiro Leão, sobre sua vida e obra, na Assembleia
Legislativa de Minas, estranhavelmente sem repercussão midiática, foi o único
registro significativo feito em Minas Gerais a respeito do caso. Na internet,
colhi também alguns dados que serviram de fonte para este trabalho. No mais, o
que prevaleceu foi inexplicável silêncio. Não sei dizer, mas ponho-me a fazer
elucubrações a propósito. Essa ausência de registro, pelo menos por parte das
organizações de direitos humanos, talvez decorreu de o fato da religiosa não
haver, ao contrário do que a acusavam, se inclinado por qualquer tipo de
militância política. Circunstância, cá pra nós, que não deveria ser de molde
também a justificar a escassa divulgação.
=O perdão aos algozes
Frade Manoel, dominicano, pouco antes da
partida de Maurina, não escondendo imensa ternura e orgulho em relação à irmã,
comentou o sofrimento inaudito que seu martírio impôs. Contou, ainda, que numa
das sessões de tortura, ela clamou por Deus, dizendo aos torturadores que Ele
estava ali presente. Deu pra perceber que alguns deles sentiram-se abalados com
a invocação, dando sinais de temor.
Apesar dos suplícios porque passou,
Maurina perdoou-os a todos. “Sua fé foi sempre muito grande”, é o sacerdote
ainda que afirma, acrescentando que duas moças, torturadas juntamente com
Maurina, vieram a se converter ao catolicismo inspiradas nos exemplos de fervor
transmitidos pela religiosa naquele período de reclusão.
Hipocrisia e dedodurismo
“...
pelo menos 15 crianças eram filhas de mães solteiras e ricas.”
(Revelação de Madre Maurina a um
jornalista)
Reservei para os leitores, no fecho deste
relato sobre o martírio imposto a Madre Maurina Borges da Silveira por bestiais
agentes da lei no período da ditadura, uma revelação muitíssimo intrigante. O
que vai ser contado compõe um retrato impecável da hipocrisia e farisaísmo imperantes
em certos ambientes mundanos. Ambientes esses sempre receptivos, em momentos de
terror político, às práticas do dedodurismo encapuzado e do denuncismo
irresponsável. A própria freira relatou o caso ao jornalista Luiz Eblak, num
papo estendido por várias horas.
Tomei conhecimento da entrevista aludida
consultando a “Wikipédia”, logo após ser informado do falecimento da religiosa.
Falecimento ocorrido em 5 de março de 2011, cercado de injustificável silêncio
midiático, como já anotei.
=Revelação espantosa
O repórter indaga de Madre Maurina: -
“De onde acha que vieram tantos boatos sobre a senhora, como os episódios de
seu envolvimento com guerrilheiros e a violência sexual?” A resposta da freira provoca
espanto. Deixa subtendidos os malefícios irreparáveis à dignidade humana que,
em momentos de desmandos autoritários, a má fé, a intolerância, o espírito de
vingança, a inveja são capazes de engendrar.
“Tem uma coisa – registra a religiosa –
que eu nunca disse a ninguém. É sobre os ricos de Ribeirão Preto. No “Lar
Santana”, orfanato que eu dirigia, tinha muita criança filha de mãe solteira e
rica, o que era escândalo social para a época (1969). Então, as crianças
ficavam lá, mas o lugar era para os pobres. Eram cerca de cem crianças e pelo
menos 15 eram filhas de mães solteiras e ricas. Elas estavam tomando o lugar de
outras, pobres, que precisavam de fato ficar no Orfanato “Lar Santana”. As
famílias davam cheques para nós e tudo o mais, mas o correto era que as
crianças vivessem em suas casas. O que eu fiz? Devolvi as 15 crianças. Fui à
casa de cada uma delas e as devolvi. E eram mansões, casas enormes. Eu disse
para as famílias: “O Orfanato é lugar de criança necessitada que precise de um
recanto para viver, que não tenha pai nem mãe. Acho que isso acabou
influenciando de algum jeito o que me ocorreu depois. Não sei quem eram as
famílias, mas isso deve ter tido ligação com a minha prisão.”
=“Não sabia de nada”
A uma outra pergunta do repórter sobre
se a freira sabia das atividades políticas, consideradas subversivas pelas
autoridades, que os integrantes do Movimento Estudantil Jovem desenvolviam na
sala em que se reuniam no Orfanato sob sua direção, Madre Maurina responde: -
“Não sabia. Não sabia de nada. Só sabia do “Movimento de Estudantes Jovens”,
mas nada mais. Nem desconfiava. Um dia, o pessoal do MEJ me pediu para fazer
uma palavra sobre o amor. Então, nem dá pra imaginar que gente de um grupo
guerrilheiro se interessasse por palestra de uma freira sobre amor.”
=Está faltando um documentário
A “Editora Vozes” lançou, há alguns
anos, um livro, da jornalista Matilde Lemos, intitulado “Sombras da Repressão –
O Outono de Maurina Borges”. A história da Madre é focalizada com base em
entrevistas conduzidas pela autora. Um outro autor, Jacob Gorender, também reporta-se
ao caso Maurina no livro “Combate nas Trevas”.
Quem sabe se, mais adiante, alguém não
se animará a produzir documentário para cinema ou televisão a respeito da
tragédia de Maurina? Até mesmo como uma forma de traduzir a repulsa da
esmagadora maioria dos cidadãos de crença humanística que confiam nos valores
da democracia e no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana e que
abominam toda forma de totalitarismo e de rejeição, sustentada pelo arbítrio, a
esses sagrados valores e direitos.
* Jornalista
(cantonius1@yahoo.com.br)