sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O que aconteceu 
era de fácil previsão

Cesar Vanucci

“A Justiça é a verdade em ação.”
(Joseph Joubert, pensador francês)

Tempos estranhos, deveras estranhos. A confusão é geral, comentaria Machado de Assis. Ilustres Ministros do Supremo embaralham ainda mais, no capricho, o entendimento das coisas. Confessam-se “perplexos” diante de recente decisão da enxovalhada Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Cabe recapitulação dos fatos. Os parlamentares cariocas, contaminados pelo fisiologismo dominante na praça, resolveram, numa ação fulminante, de intensa repercussão, revogar o ato judicial que ordenou a prisão preventiva, bem como o afastamento do mandato do presidente da Casa e de outros dois deputados acusados de beneficiários num esquema de “propinas milionárias”. Manda a verdade reconhecer a forte inconsistência desse alardeado espanto. Uai! Pois não foi o próprio STF, em histórica deliberação tomada na sessão plenária de 11 de outubro passado, que andou criando a oportunosa ensancha – ardentemente almejada por expressiva parcela da comunidade política – permitindo a detentores de mandatos eletivos, comprometidos em maracutaias estrondosas, livrarem a cara em casos de indiciamento, hein? O que simplesmente pintou no pedaço estava claramente previsto. Trata-se do óbvio ululante, diria Nelson Rodrigues.

A decisão em causa produziu, como todo mundo sabia que iria acabar acontecendo, vertiginoso “efeito cascata”, que não vai parar por aí. A “jurisprudência firmada” renderá ainda outros episódios danados de desconcertantes, não há descrer.

A Alta Corte, relembremos, definiu que caberia ao Senado Federal dar uma palavra final a respeito das medidas punitivas impostas pelo Ministro Edson Fachini ao Senador mineiro Aécio Neves. Os pares do Senador, valendo-se da prerrogativa que se lhes foi atribuída, optaram então por tornar sem efeito as sanções determinadas pelo relator da “Lava Jato”. Emergiu assim o “fundamento jurídico”, por sinal já suscitado em mais de uma ocasião, que o corporativismo político tanto esperava mode que poder blindar-se em eventuais casos de diligências coercitivas ordenadas pela Justiça no curso de investigações que tenham parlamentares de todas as esferas como alvo.

Tudo quanto exposto leva a uma conclusão. Parece chegada, a esta altura do campeonato, a hora de o Supremo Tribunal Federal promover no âmbito doméstico uma aprofundada reflexão sobre a verdadeira natureza e sentido de seu papel na atual conjuntura brasileira. A sociedade reconhece que o órgão é integrado por luminares do saber jurídico. Conserva acesa a esperança em sua atuação. Os sagrados ditames da missão de que se acham investidos recomendam aos dignos togados permaneçam distanciados das refregas políticas. Aconselham procurem se resguardar quanto as circunstâncias suscetíveis de gerar paixões com toque partidário. A opinião pública não esconde desaponto e desconforto quando percebe que algum magistrado de alta preeminência se deixa seduzir pelas efêmeras cintilações da notoriedade instantânea, proporcionada pelos holofotes midiáticos, e se aventura, falando às vezes pelos cotovelos, a opinar sobre tudo quanto se lhe é perguntado. Às vezes, até mesmo, antecipando posicionamentos alusivos a questões que possa vir a julgar. A majestade da função é aí inclementemente alvejada e receios naturalmente afloram às preocupações gerais quanto à condição isenta necessária para garantir do magistrado que faça cumprir com fidelidade a justiça.

Justiça essa que, na essência, outro valor não representa senão a verdade em ação, como propunha, já em seu tempo, o pensador francês Joseph Joubert.


ALTM, ano 55

Cesar Vanucci

“Contista, jornalista, conferencista, crítico literário, 
Edson Gonçalves Prata é um autêntico homem de letras.”
(José Mendonça, primeiro presidente da 
Academia de Letras do Triângulo Mineiro)


Meu fraternal amigo João Eurípedes Sabino, presidente da Academia de Letras do Triângulo Mineiro (ALTM), pede-me uma palavra sobre os 55 anos da valorosa instituição. No afã de atendê-lo, ligo o vídeo cassete da memória, fixando-me em imagens em que apareço como protagonista e testemunha ocular relativas ao começo da história.

O nome do sempre lembrado Edson Gonçalves Prata, é o primeiro a aflorar nas ternas recordações. Ele foi o principal artífice na construção da grande obra cultural da ALTM na fase prefacial a que me reporto.

Naquele tempo, o diário “Correio Católico” (12 mil assinantes, recorde na atividade jornalística no interior) circulava com um suplemento literário aos sábados em formato tabloide. Eu era o editor geral do jornal. Entre os ilustres colaboradores do suplemento lá estava o Edson, advogado e professor conceituado, alto funcionário do Banco do Brasil, estudioso da obra de Machado de Assis. Seus artigos sobre o autor de Dom Casmurro eram apreciadíssimos. Muita gente os colecionava. Ressalte-se que o caderno literário nº 2, fevereiro de 1964, lançado pela Academia, enfeixa alguns desses trabalhos.

Numa das visitas frequentes que fazia ao jornal, Edson participou-me, solicitando colaboração e sugestões, que estava a se ocupar, já algum tempo, da coleta de dados e informações necessários para a elaboração da proposta de constituição de uma Academia literária com abrangência regional. Engajei-me, de pronto, na empreitada. Numerosas reuniões preparatórias foram feitas, a partir dessa troca de ideias, na redação do “Correio Católico” e no escritório de Edson, instalado ao lado de sua residência, a poucos metros de distância da sede atual da Academia, imediações da Casa da Criança. Quando a proposta ganhou formato nas linhas gerais, contatos foram feitos com os grandes personagens que vieram compor e engrandecer o quadro dos sócios fundadores. O notável pensador Juvenal Arduini foi o primeiro consultado. Padre Antônio Thomaz Fialho, doutor Augusto Afonso Neto, Padre Tomaz de Aquino Prata foram, na sequência, os intelectuais de projeção procurados. Todos aderiram com entusiasmo à ideia. Por sugestão do Edson, infatigável no afã de tornar realidade palpitante seu ardente sonho, o nome de José Mendonça foi apontado como ideal, pelos incontáveis méritos de inteligência, cultura, liderança, para comandar o processo de estruturação da Academia. A sugestão foi levada ao conhecimento do inesquecível Arcebispo Alexandre Gonçalves Amaral. Ele considerou a escolha excelente. O grande romancista Mário Palmério também ofereceu decisivo apoio à iniciativa.

Para a residência de José Mendonça, onde também funcionava seu escritório de advocacia, foram então deslocadas as reuniões preparatórias com vistas ao lançamento oficial da Academia. O quadro de fundadores, o estatuto, a forma de atuação, a formação da primeira diretoria, os convites a escritores, poetas e jornalistas de Uberaba, de Uberlândia e de outros lugares para que viessem a integrar os quadros acadêmicos, tudo isso foi sendo laboriosamente delineado numa sucessão de proveitosos encontros até o momento decisivo da implantação solene da Academia.

Apraz-me registrar, nessa sequência de lembranças, que o título da futura revista oficial da ALTM, “Convergência”, foi por mim sugerido numa das primeiras reuniões. O modelo dos cadernos literários da Academia, editados nos primeiros anos da instituição, foram também concebidos também nessas reuniões preliminares.

Esse esforço preparatório germinou, floresceu, rendeu frutos compensadores. Marcou o ponto de partida do avultado trabalho, de singular fecundidade, que ao longo de décadas, desencadeado na gestão de José Mendonça, desdobrou-se nas gestões de Augusto Afonso Neto, Edson Gonçalves Prata, Guido Bilharinho, Maurílio Cunha Campos de Moraes e Castro, Jacy de Assis, José Soares Bilharinho, Mário Salvador, Terezinha Hueb Menezes, José Humberto Henriques, Jorge Nabut, Ilcéa Borba, de modo a que pudesse vir a ser entregue, na administração João Eurípedes Sabino, inaugurada sob os melhores auspícios, uma obra consolidada, repositório precioso e perene de saberes acumulados, de riquíssimas experiências, verdadeiramente representativa, como se preconizou bem lá atrás, da inteligência e da cultura da gente do Triângulo Mineiro. Uma obra com positiva ressonância no cenário cultural mineiro e brasileiro. E, por derradeiro: caçula, entre os fundadores da Academia, faço parte hoje da dupla remanescente do quadro de intelectuais que a compuseram em seus primórdios. O outro sócio fundador, de cujo convívio todos os Acadêmicos prazerosamente participamos, é o grande sacerdote e pensador Thomaz de Aquino Prata.



sexta-feira, 17 de novembro de 2017

O homem da mala

Cesar Vanucci

“Tempos confusos, esses nossos, em que uma 
mala volumosa desperta olhares de desconfiança...”
(Antônio Luiz da Costa, educador)

Os aborrecimentos começaram já no carro, a caminho da Rodoviária. A patroa ficou de cara amarrada com a observação que fez sobre o excesso de bagagem. Para quê mala desse tamanhão, mais parecendo baú, difícil de ser carregada, até mesmo por estivadores? Afinal de contas, o casal não estava indo de muda para a Europa. Seu destino era Itaúna, tão pertinho, visita de poucos dias à parentada. Na hora de retirar a malona do porta-malas, no estacionamento da estação, mais amolação. Precisou, com o motorista, dar uma demão pro carregador. Este, por sua vez, espantado com a carga, saiu com uma observação que só fez crescer-lhe a irritação: - “Puxa, doutor! Que peso! Carregamento de ouro?” Franziu a cara, por pouco não cantando a pedra noventa para o enxerido. A patroa, descontraída como sempre, achou de fazer coro com a impertinência. “Não é ouro não moço, mas coisa bastante valiosa, né benzinho?” foi o que disse, catando com o olhar o assentimento dele, maridão. Evitando espichar conversa, fez que não ouviu. Foi quando deu com a presença, nas imediações, de uma dupla de PMs, a acompanhar a cena com interesse que considerou inusitado. Ficou com a incômoda sensação de que os dois se fixaram demasiadamente no malão. Um deles acionou o rádio portátil, o que fez nascer em seu bestunto a hipótese de estar passando para alguém informe sobre a bagagem. A qual, naquele preciso momento, com o auxílio dos dois tripulantes do ônibus, já estava sendo alojada pelo intrometido do carregador no bagageiro do coletivo.

Embora feito em voz baixa, não lhe escapou o comentário zombeteiro, acolhido com risinhos maliciosos, de um passageiro que aguardava na plataforma a liberação para embarque. “Uma mala tão grande ou é mensalão, ou dízimo.” Nervos à flor da pele, supondo-se alucinatoriamente sob o foco de todas atenções, conteve a duras penas o impulso entalado na garganta de dizer poucas e boas para aquela cambada. Foi todo desconforto viagem afora. Trancou-se em copas. Evitou diálogo com a patroa, a grande responsável pela “invenção” da famigerada carga. Fingiu concentrar a atenção nos jornais que trazia. Folheou-os, de forma displicente, sem o menor desejo de penetrar-lhes o conteúdo. Alguns bons quilômetros rodados, o passageiro próximo pediu-lhe, “por obséquio”, o empréstimo do primeiro caderno de um jornal. Atendeu ao pedido, sem abrir-se para prosa. O cara danou a comentar, em voz alta, suas impressões sobre o que estava a ler. “Minha nossa, mas que absurdo!” “É por essas e por outras que este país não vai pra frente.” Deu para perceber que o vizinho de assento, em clima de desabafo, buscava extrair manifestação de sua parte. Guentou firme. Permaneceu mudo e quedo que nem penedo. Em suas ruminações, atolado de suspeições, achou que o dito cujo estava era mais querendo provocá-lo. Desconfiava ser ele o autor da zombaria na Rodoviária. “Esse tipo desqualificado tá a fim de insinuar que a mala transporta coisas ilícitas, como a televisão vive mostrando, tou vendo.” Acertou com seus botões: “Não lhe darei o prazer de uma palavra.”

Dominado por tão borbulhantes e desagradáveis pensamentos, viu o ônibus adentrar o pátio da Rodoviária do destino. Desceu e postou-se à espera da bagagem. No instante em que o gigantesco volume lhe foi passado, o tal do passageiro, com um aceno que poderia ser tranquilamente aceito como um gesto cortês, mas que na cachola transtornada do personagem desta nossa história ressoou como injúria, resolveu registrar: - “Que mala, essa sua, hein companheiro?” Foi o que bastou. A gota d’água. Tomado de “santa indignação”, arrancou o correão que envolvia a mala, escancarou-a nervosamente, espalhando desordenadamente pelo chão, diante de uma plateia atônita, o seu infindável e valioso conteúdo. Carne de sol de Montes Claros, goiabada cascão de Ponte Nova, queijo do Serro, linguiça de Itamarandiba, polvilho de São Pedro dos Ferros, doce de leite de Santana do Jacaré, pinga de Jacinto, rocambole legítimo de Lagoa Dourada. E, aos berros, fazendo questão de conquistar toda audiência ao redor: - “Ocês aí, seu bando de fuxiqueiros. Olha pras mercadorias. Sou o homem da mala, mas sou gente direita, seus degenerados”.


Teto salarial e a 
reforma previdenciária

Cesar Vanucci

“A discussão em torno de qualquer reforma previdenciária 
tem que começar pela abertura da caixa preta dos esquemas que permitem 
a extrapolação do teto salarial instituído pela Constituição.”
(Antônio Luiz da Costa, educador)

O artigo 37, inciso XI, da Carta Magna, fixa um teto salarial para os agentes públicos. Diz na essência, com todas as letras, pontos e vírgulas, exatamente isso:  o teto do subsídio mensal, em espécie, para o funcionalismo, é a remuneração atribuída aos Ministros do Supremo Tribunal Federal.  Poderia também dizer que o valor salarial máximo permitido, na área pública, não pode ultrapassar o vencimento estabelecido para o Presidente da República.

Pois bem, senhoras e senhores, por mais estarrecimento que a revelação provoque no espírito das pessoas, esse dispositivo não passa de letra morta para um apreciável contingente de conspícuos cidadãos. Com agravante que tem força de bofetada na cara da sociedade: boa parte dos mesmos carrega, entre suas incumbências institucionais, a solene responsabilidade de garantir o cumprimento das leis vigentes. Sem exclusão, obviamente, do item constitucional mencionado.

Numa estimativa sujeita a correções, provavelmente para mais, uns 50 mil afortunados viventes (esferas federal, estaduais e municipais) estariam a desfrutar, do Oiapoque ao Chuí, do privilégio de ver consignadas, todo finalzinho de mês, em seus holerites, parcelas superiores aos 33,7 mil reais assegurados pela lei. E o que é mais contundente: vez por outra, como resultado de apurações do chamado “jornalismo investigativo”, chegam à tona indicações de que a extrapolação de rendimentos no serviço público alcançou patamares alucinantes. Indoutrodia, descobriu-se que alguns honrados magistrados do Estado do Mato Grosso estavam sendo recompensados, pelo seu diuturno labor profissional, com estipêndios superiores a... 500 mil reais.

A surreal postulação da Ministra Luislinda Valois, exacerbada na defesa dos “direitos sociais”, denotando descomunal “preocupação” quanto à dignidade que deve resguardar a política salarial, de modo a evitar venha ela (política salarial) se equiparar ao “regime da escravidão” (ora, veja, epa!), interpreta magistralmente o sentimento de muita gente fina. Uma legião de criaturas bem posicionadas concorda, em gênero, número e grau, sem exteriorizações estridentes ao jeito da ministra, com as “judiciosas” observações por ela formuladas.

Em seu exasperante monólogo com a sociedade, porta-vozes governamentais, insistindo na necessidade de urgente reforma previdenciária, aludem à existência de avantajado rombo na Previdência Social.  O rombo é contestado com veemência por respeitáveis juristas e auditores, que condenam também enfaticamente a ausência de um debate mais aprofundado em torno da reforma previdenciária que realmente interessa à Nação. Uma reforma que só poderia nascer com base em entendimento amplo, geral e irrestrito entre todos os setores interessados e que seja capaz de definir, a médio e longo prazos, um regime único em matéria de concessão de benefícios, pensões, aposentadorias a todos os assalariados do serviço público.

A proposta de reforma previdenciária que o mais impopular governo da história republicana mostra-se tendente a enfiar goela abaixo da população, sem debates e cooptando, mediante barganhas aviltantes, votos parlamentares, alveja inclementemente interesses das camadas assalariadas de menor poder aquisitivo. Nada se fala, nos argumentos alinhados sobre “déficits orçamentários”, nos intocados, ilegítimos, ilegais salários pagos a agentes públicos contemplados com rendimentos acima, muito acima, do teto legal.

O silêncio sepulcral a respeito da remuneração concedida a milhares de marajás faz com que soe falsa e hipócrita a alegação constante (repita-se, bastante contestada) de um baita rombo nas contas previdenciárias. Rombo esse que, em caso de confirmação, teria que ser realmente estancado. O bom senso sugere que se faça uma radiografia completa, com informes circunstanciados, de todos os sistemas vigorantes diferenciados em matéria de política salarial. A opinião pública considera muitíssimo oportuno que a discussão, em termos justos e adequados das políticas salarial e previdenciária, comece pela abertura da “caixa preta” desses múltiplos esquemas que criam condições para extrapolações do teto salarial.



sexta-feira, 10 de novembro de 2017

As agruras de um 
“orador oficial”

Cesar Vanucci

“Quem fala muito dá bom dia a cavalo.”
(Adágio popular)


Chegou na Associação de Pais e Mestres no finzinho da reunião e foi logo recebendo da Presidente inesperada incumbência: saudar visitantes ilustres do exterior. Professores e estudantes da Pensilvânia, campeões de “wakeboarding”. “Enfatize o feito esportivo. Vamos entregar-lhes um troféu. Temos interesse em fortalecer o intercâmbio com eles.” Foi o que disse a presidente, sem lhe conceder tempo para argumentar, antes de deixar, às carreiras, a sala. Toda festiva, os braços abertos em sinal de fraterna acolhida, caprichando no timbre de voz para os “rauduidus” de praxe, ela conduziu a comitiva até o auditório. “Eles apreciam pontualidade e eu também”, asseverou.

- E essa agora? Questionou-se com os seus botões, pensamento embaralhado, o nosso indigitado orador. Lamentou haver comparecido à reunião. “Não estaria agora a pagar esse baita mico. E que diacho de coisa é esse tal de “wake sei lá o quê?!” Sentiu-se perdido em meio a solitárias e silenciosas indagações. Lançou um olhar súplice ao redor. Percebeu logo que ninguém ali estava a fim de compartilhar suas aflições. A mesa da sessão começava a ser composta. O público numeroso cuidava, em ruidosa movimentação, de se apoderar dos assentos não ocupados no auditório. Suas ruminações mentais não calavam. Tentava, embalde, consolar-se com a ideia de que, diante da inevitabilidade da incômoda situação, o melhor a fazer era relaxar. Classificava, tardiamente, de supina besteira a concordância dada, dias antes, para a inclusão de seu nome, como “primeiro orador oficial”, na chapa da Associação. O hino de abertura da sessão acabara de ser entoado. A hora do pronunciamento se acercava e ele ainda sem saber como se arranjar na fala para os gringos. Pior, consciente da condição de analfabeto de pai e mãe com relação ao tal esporte de nome complicado. Que tal se invocasse ajuda da Medalha Milagrosa? Descartou a opção por lhe parecer oportunista, consideradas as circunstâncias de nunca lhe haver passado pela cachola a intenção de integrar o grupo de devotos fervorosos da santa. Na busca de auxílio providencial, agarrou-se à ideia de invocar São Judas Tadeu. Adepto do santo não podia, em boa e leal verdade, dizer que era. Mas, de qualquer maneira, pesava a favor o fato de haver acompanhado a patroa em celebrações no santuário erigido em louvor de São Judas pela veneração popular. Mesmo após a invocação sentiu a estrutura óssea balançar, no momento crucial da chamada à tribuna. O coração saltitante, esmerou-se em pronunciar pausadamente as palavras. Rodeou toco o quanto pôde, com filigranas retóricas. Não se atreveu, estrategicamente, uma vez sequer, a citar a modalidade esportiva em foco. Com algum domínio da situação, deixou-se arrastar pela empolgação. Proclamou então que os homenageados, educadores de escol e coisa e loisa, cumpriam exemplarmente histórica missão, aplicando os recursos de um esporte tão apaixonante e valoroso no burilamento da têmpera e caráter dos jovens. Lastimou que tão enriquecedora prática não recebesse entre nós o incentivo devido. Arrancou, para surpresa, uma ovação. Os desportistas campeões abraçaram-no efusivamente, impressionados com tão incisivo apoio à sua causa esportiva.

Um grupo de estudantes, seu filho entre eles, trouxe-lhe, na hora dos cumprimentos, inusitada proposta. Já que se confessara simpático à prática do “wakeboargding”, a moçada resolvera elegê-lo, ali mesmo, patrono do nascente time do educandário. Tocava-lhe, à vista disso, a suprema honra de abrir, com substanciosa doação, o livro de ouro instituído para a aquisição do material de treinamento. Meteu o chamegão no livro, sem tugir nem mugir, o sorriso amarelo, com a cara de quem estivesse conquistando o troféu de “cavalgadura do ano”.

Ainda por se refazer das imprevisíveis emoções do dia, sentiu a língua coçar de tanta vontade de perguntar ao filho, na volta pra casa, o que vinha a ser mesmo esse tal de “wake... sei lá bem o quê...”. Faltou coragem...



Flagrantes deste 
instante político

Cesar Vanucci

“A vida política é carregada de imponderáveis.”
(Antônio Luiz da Costa, professor)

O imponderável não pode deixar de ser levado em conta nas avaliações políticas.

- Lula. A avalancha de acusações, rendendo ininterruptas manchetes, parece não haver afetado pra valer pelo menos até aqui a popularidade de Lula. O ex-presidente vem mantendo com folga, já por considerável espaço de tempo, em todas as consultas de preferência de voto, a dianteira entre os outros presumíveis candidatos, não importa quais sejam os cenários objeto de avaliação. Os fervorosos prosélitos do dirigente petista mostram-se exultantes com as pesquisas. Consideram “favas contadas” sua vitória nas urnas, na hipótese de que venha realmente a concorrer. Concebem, na pior hipótese de previsão eleitoral, que a força política lulista seja capaz de conduzir à rampa do Planalto pretendente por ele apoiado, caso se torne inviável sua participação na pugna.  A quem se espante com os resultados dessas sucessivas pesquisas, convém lembrar que, dono de indiscutível carisma, Lula recebeu positiva avaliação pela razoavelmente bem sucedida política de inclusão social levada a efeito em suas gestões.
A visão otimista da legião petista encontra também alento noutra revelação vinda das pesquisas de opinião. Embora os eleitores deixem consignada forte rejeição às legendas de um modo geral, o PT consegue alcançar, ainda assim, índice de apoio de 17 por cento, enquanto os oponentes próximos não atingem sequer 2 por cento. De qualquer forma, fica difícil pacas arriscar palpite com relação ao que poderá vir acontecer na campanha sucessória de 2018. Mesmo que se reconheça plausível alguma alegação dos petistas de carteirinha, no que tange à inconsistência de um que outro item nas volumosas acusações levantadas contra Lula, impõe-se reconhecer que a carga das delações e indícios sobre sua participação, diretamente ou por criticável omissão, nos eventos delituosos trazidos a furo é consideravelmente pesada. Muitas as situações comprometedoras descortinadas a deporem contra a tese, sustentada por alguns, de que ele esteja totalmente isento de culpa no cartório. Mas, por outro lado, com esse “acordão de cavalheiros” escancaradamente à mostra, graças a incrementadas movimentações nos círculos do poder, movimentações essas já não circunscritas apenas aos bastidores, pode acontecer que sobre também para o ex-presidente alguma “cota de benefício” no processo em gestação. Esperar pra ver!

-   Geddel. Intrigante, sem dúvida, a súbita “promoção” a “chefe de organização criminosa” do ex-ministro e ex-deputado Geddel Vieira Lima. Na presunção geral – e não apenas na de um senador tido e havido como comparsa do ousado baiano em rendosas mutretices –, o dito cujo se notabiliza pela competência demonstrada no desempenho dos postos de realce assumidos no esquema mafioso, mas é inocultável a evidência de que, na verdade, seus atos respondam a vozes de comando de graduação superior. A mais recente de suas proezas, transformando luxuoso apartamento em “caverna de Ali Babá” para guarda de um tesouro em notas de 100, a serem repartidas entre 40 (ou, quem sabe lá, mais) cupinchas, não lhe assegura, por si só, jeito maneira, direito a galgar a posição que lhe foi de “mão beijada” atribuída. Ferinas avaliações sugerem que a “designação” de Geddel como “chefe de quadrilha” seria de molde a amparar, sutilmente, mais na frente, interpretação jurídica que o impeça de aderir à “delação premiada”. Em condição que tal, ele certeiramente se tornaria, pela familiaridade com as entranhas das maracutaias, um novo “homem-bomba”. Que nem, pra dar exemplo, o ex-ministro Antônio Palocci. Aguardar os desdobramentos pra conferir! 

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Convite sessão solene da Academia de Letras João Guimarães Rosa/PMMG




As ruas percebem 
a trama

Cesar Vanucci

“É preciso estancar essa sangria!”
(Como, aliás, proclamou o senador Romero Jucá, treze inquéritos na cacunda)

O teor do alarido popular é inconfundível. As ruas suspeitam de uma escabrosa trama. Apoderadas de aturdimento e frustração com relação ao que rola diante de seus olhares, as pessoas sentem na boca “um gosto de cabo de guarda-chuva”, como era costume dizer-se em tempos de antanho. Tão numerosos quanto reclames de liquidação de mercadoria de magazine na televisão, acumulam-se, dia após dia, os indícios de uma azuretada articulação pra livrar a cara da moçada envolvida em nauseantes bandalheiras.

Já não são mais apenas as tradicionais confabulações de bastidores. O pudor foi jogado às traças por muita “gente boa, acima de qualquer suspeita”... Conspira-se às claras. Opiniões estapafúrdias e tendenciosas ganham letra de forma. Doutas interpretações jurídicas, danadas de flexíveis, acompanhadas de gaguejantes decisões, declarações, depoimentos, discursos e entrevistas com frases ambíguas expõem as caprichadas articulações em curso com o fito de transmutar provas perturbadoras em alegações inconsistentes. A pequena multidão empenhada na alteração radical dos rumos das coisas não pode ser subestimada. É composta de personagens com indiscutível poder de influência em variados setores. Está chamando a si a inglória incumbência de dourar suficientemente a pílula, de modo a que possa ser deglutida, sem choro nem vela, garganta abaixo da desnorteada sociedade. Nada de ilusões: o pessoal é competente. Saberá, como dois mais dois são quatro, a tempo e a hora, dirimir controvérsias, ajeitar impasses. Matreirice e pragmatice há de sobra. Mesmo o aspecto que se desenha mais complexo no processo orquestrado - o de como fazer para contemplar a todos os interesses e conveniências em jogo num pacto geral – acabará fatalmente contornado.

É sabido que, no começo do começo de tudo, muita gente concebia ficasse o levantamento das malfeitorias praticadas circunscrito a uma ala específica de transgressores. Dando nomes aos bois: a “banda podre” do petismo. Nasceu assim, vale relembrar, a “convicção”, marotamente disseminada, de que o afastamento puro e simples da cena política das principais lideranças da agremiação em foco equacionaria, cabal e definitivamente, a tormentosa questão da corrupção institucionalizada. Os desdobramentos da história demonstraram que o buraco era infinitamente maior do que supunha a patota empenhada em enquadrar apenasmente agentes públicos e empresários inescrupulosos da primeira leva de acusados. À medida que as investigações avançavam, o elenco dos beneficiários no degradante esquema de propinas passou a ser “reforçado” por novos “categorizados” atores. Não poucos deles, por sinal, farisaicamente acomodados a princípio na posição de destemerosos mocinhos a combaterem galhardamente desalmados vilões. Os vilões eram os adversários políticos, tanto quanto eles próprios, escancarou-se depois, enredados nas maracutaias sem fim. As revelações trazidas a furo documentaram que, na verdade, quase nenhuma sigla partidária ficou de fora do balaio de imundícies. Foi assim que, de repente, a opinião pública deu-se conta de que o grau de participação na conspirata contra o patrimônio público de membros do time de denunciantes e acusadores era de monta igual, ou até mesmo superior, a dos integrantes das primeiras levas denunciadas.

Um dos acusados, falando obviamente por todos, bradou aos quatro ventos: “É preciso estancar essa sangria!” Soou como um chamado à mobilização. A preocupação pela “blindagem geral” atraiu interesse em quase todas as legendas. Conveniências fisiológicas interpartidárias geraram conversações seguidas de transações, no atacado e no varejo, destinadas a neutralizar imprevisíveis reações.

E, agora, José? Como fazer pra arranjar uma fórmula “harmoniosa”, mode que poder assegurar a todos os “impolutos cidadãos” flagrados com a mão na botija do dinheiro público, não importando filiação partidária, nada a ver com as alardeadas “diferenças ideológicas” – já que todos, no conceito popular, são considerados “farinha do mesmo saco” –, a almejada chance de escaparem incólumes, ou chamuscados o menos possível nessa baita encrenca que arranjaram pra todos nós? Enquanto “privilegiadas cabeças pensantes” se consagram a bolar o acordão, as ruas, alvejadas em cheio pelas consequências do desgoverno e da corrupção, murmuram seu desgosto e amargura. Aguardam o acerto de contas com os que traíram sua confiança. Urnas democráticas à vista!

Retratos deste 
momento brasileiro

Cesar Vanucci

“A portaria volta a um ponto que a legislação superou há anos.”
(Raquel Dodge, Procuradora Geral da República, a respeito da portaria do Ministério do Trabalho)

l A opinião pública brasileira toma conhecimento, simplesmente estarrecida, de mais um ato governamental desastroso. A famigerada portaria 1129/2017. Gerada no âmbito do Ministério do Trabalho, o documento cria entraves de efeitos cruéis na ação fiscalizadora da própria pasta. Livra a cara (pasmo dos pasmos!) de falsos empresários engajados em degradantes processos de exploração da mão de obra. Indivíduos inescrupulosos que se atrevem, nostálgicos do regime laboral vigente no século XIX, a sustentar estruturas de trabalho escravo nos setores de atividade que regem. A absurdidade da decisão oficial repercutiu com estrondo. Deu causa imediata a uma onda, que se vai avolumando, de inflamados protestos. As reações ouvidas vão desde a Procuradoria Geral da República até um agrupamento de fiscais do Ministério do Trabalho. Estes últimos, consentaneamente com a indignação, anunciaram greve caso não ocorra a revogação do texto. O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso ergueu a voz numa crítica contundente à medida. Suas as palavras abaixo: “Considero um retrocesso inaceitável a Portaria do Ministério do Trabalho.” (...) “Com ela, se desfiguram os avanços democráticos conseguidos desde 1995, quando uma comissão do próprio Ministério se pôs a fiscalizar ativamente as situações de super exploração da força de trabalho equivalentes à escravidão.”
Na contramão do entendimento social correto a respeito do assunto, a Abrainc, Associação Brasileira de Incorporadores Imobiliários ousou aplaudir a portaria ministerial. Ora, veja, pois!

l Um outro deplorável registro de abuso de autoridade aconteceu, dias atrás. A responsabilidade pelo atentado cometido contra a reputação de um cidadão isento de culpa no cartório coube, desta feita, a um Delegado de Polícia de São Paulo. O dito cujo teria sido, a esta altura, pelo deslize funcional, enquadrado com pena de repreensão pelos superiores. Marcos Cláudio, a vítima, é filho biológico de Mariza Letícia, ex-primeira dama do país, falecida recentemente. Foi legalmente adotado pelo ex-presidente da República Luiz Ignácio Lula da Silva. Embalado por uma denúncia anônima, o titular da Delegacia, acompanhado de auxiliares, cercado de aparato midiático, invadiu a residência do cidadão mencionado, em Paulínea (SP), botando pra quebrar. Vasculhou a casa de cabo a rabo, com o intento de apreender grande quantidade de drogas. As drogas estariam sendo ali armazenadas, de acordo com os termos da denúncia sem autor. Ao final da espalhafatosa diligência, desconcertados, os apressados êmulos do Inspetor Clouseau se deram conta de que tinham sido ludibriados pelos ignotos informantes. Tudo não passara de um rebate falso. Uma fofoca de cunho maldoso. Mas, àquela altura, o mal já estava consumado. Os meios de comunicação e as redes sociais já haviam se esmerado em dar vazão à “saneadora operação”.

l Na mais recente pesquisa de opinião do Ibope, encomendada pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), Michel Temer surge com um índice de avaliação negativa nunca dantes atingido por qualquer presidente brasileiro, em matéria de popularidade e credibilidade. Feita na segunda quinzena de setembro, abarcando contingente de pessoas espalhado por 126 municípios, a consulta apurou que, na opinião popular, a gestão Temer é considerada ruim ou péssima por 77 por cento. Apenas 3 por cento classificam seu governo como bom ou ótimo. Enquanto isso, 16 por cento admitem ser regular seu desempenho. No ver dos consultados, uma maioria de 59 por cento considera o governo Temer pior do que o de sua antecessora Dilma Rousseff. Tem mais: 92 por cento dos entrevistados não depositam confiança no supremo mandatário da Nação. Admitem também (72 por cento), que o período administrativo restante será ruim ou péssimo.

l Os indefesos consumidores continuam sendo alvejados por rajadas altistas. As companhias aéreas não se acanharam de elevar o preço das passagens, tão logo entrou em vigor a “taxa por bagagem”, obtida mediante o ardiloso argumento de que ela reduziria as tarifas. Nos postos de gasolina, os valores nas bombas são alterados quase que semanalmente. Enquanto isso, os incorrigíveis planos de saúde não se constrangem nadica de nada, debaixo da mais deslavada complacência do órgão regulador, em cobrar dos usuários reajustes superiores às taxas inflacionárias. E isso sem falar do atentado permanente aos direitos humanos e ao estatuto dos Idosos representado pela extorsivas elevações nas mensalidades, em até 100 por cento, por “motivo” de idade...


 
 115 MEMÓRIAS - UMA CRÔNICA 
Luís Giffoni  *
PARA DRUMMOND

No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho.
Assim Carlos Drummond de Andrade inicia seu famoso poema, escandaloso para a época da publicação, tanto que o poeta se divertiu ao compilar e publicar 194 páginas de descomposturas indignadas contra os dez versos de No Meio do Caminho.
Drummond é uma quase unanimidade nacional como nosso poeta maior. Autor de obras como Rosa do Povo, Claro Enigma, Sentimento do Mundo e Boitempo, além da prosa em Contos de Aprendiz e Fala, Amendoeira, o mineiro de Itabira capturou o mundo, vasto mundo em palavras e versos, com e sem rima, que, décadas afora, não envelhecem e continuam falando como dois olhos que acordam os homens.
Para quem deseja degustar Drummond, há uma Antologia Poética, por ele organizada, que oferece uma boa introdução a seu trabalho. Ele tinha apenas duas mãos e o sentimento do mundo. Ajudado pelas lembranças de Minas Gerais, casas entre bananeiras, pomar amor cantar, a fotografia na parede, enquanto deixava culpas no caminho e a luta vã com palavras, reuniu as ferramentas para consagrá-lo. Há muita memória em sua obra.
Hoje me lembrei de Drummond. Amanhã ele faria 115 anos. Pois de tudo fica um pouco. De Drummond, fica muito. Fica toda a poesia que nos encanta. Fica tanta memória. Mesmo que ele não gostasse dela.
Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
(…) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.


* Cronista, romancista, contista, ensaísta, tradutor, autor de 25 livros

A SAGA LANDELL MOURA

Eleições, primeiro turno.

*Cesar Vanucci “A eficiência da Justiça Eleitoral permitiu que o brasileiro fosse dormir no domingo já sabedor dos nomes dos eleitos.” (...