sexta-feira, 30 de março de 2018


Os porquês das coisas…

Cesar Vanucci

“Uma pergunta sem resposta marca exatamente
o limite da capacidade do conhecimento humano”.
(Milan Kundera, escritor)

A casa de vó Carlota, acolhedor albergue familiar, ficava localizada na confluência da Carlos Rodrigues da Cunha com a rua do Carmo “tortuosa e poeirenta onde a mãe Preta contava as histórias mais bonitas jamais ouvidas”, conforme descrito nos versos do poeta uberabense Paulo Rosa. Da varanda, transformada amiúde em “salão de leitura” por esfuziante garotada, descortinava-se imponente cenário ecológico plantado quase que no centro da cidade. No quintal da residência dava-se para avistar os canteiros de hortaliças e uma frondosa mangueira carregada da legítima “sabina”. Tudo cuidado com zelo por Carlota e as filhas Nenê e Luzia.

Na propriedade ao lado, do doutor Secundino Loes e dona Cinzinha, havia magnífico pomar. Mais adiante, estendendo-se por vasto terreno, ladeando uma vertente do córrego das Lages, com seus saltitantes lambaris, ainda não represado em nome de questionável progresso, estava localizado o soberbo sítio do coronel Ozório de Oliveira e dona Sinhá. Jabuticabeiras a perder de vista disputavam o espaço com outras árvores frutíferas. Tudo isso, mas tudo mesmo, se reduziu, nos tempos de hoje, na modernosa versão de urbanismo dominante, a um esmaecido retrato de parede, com moldura descascada.

Retorno deste mergulho aos tempos da infância risonha com a imagem do improvisado “salão de leitura” da varanda de vó Carlota. Praticávamos ali, um bando de guris, incentivados por Tonica, minha mãe, tia Luzia, mestre-escola de três gerações, e a poeta tia Lica, exercícios de leitura e a elaboração de composições indicadas na escola como deveres “pra casa”.

Uma obra muito procurada pelos leitores mirins era a enciclopédia “Tesouros da Juventude”. Compunha-se, se a memória velha de guerra não está a ponto de me trair, de 20 tomos. O capítulo do “Tesouro” de minha predileção era o “Livro dos Porquês”. Costumava arrancar dali interessantes respostas às pueris e, às vezes, intrigantes indagações nascidas da curiosidade e inquietude infantis.

Com tanta coisa sem pé nem cabeça pipocando mundo afora na hora presente, suponho, num voo de imaginação, que poderia representar empreitada de enorme valia e oportunidade despontar alguém no pedaço, com qualificações na área do conhecimento das coisas da vida, suficientemente apto a organizar um novo compêndio de respostas para a caudal de perguntas, sem explicações plausíveis, oriundas da aflição e perplexidade das ruas.

Deu no jornal. Mulheres ganham, em média, 25 por cento menos que os homens. Nalgumas funções, o índice da estridente desigualdade é ainda maior: 52 por cento. Pergunta-se: por quê?

Deu no jornal. A legalização do jogo no Brasil, prevendo a reabertura de cassinos e outras modalidades de aposta, em discussão no Congresso Nacional, foi rejeitada numa comissão técnica do Senado. Tomando em consideração que o Brasil é o único país integrante da lista das 20 maiores potências econômicas a não “permitir” essa rendosa atividade legalizada; tomando em consideração ainda, o expressivo volume de modalidades de apostas - institucionalizadas pela Caixa Econômica ou clandestinas (mas matreiramente toleradas) -, detectadas do Oiapoque ao Chuí; levando-se em conta, também, que milhares de brasileiros, aficionados no jogo, atravessam sem parar as fronteiras para “fezinhas” em cassinos estrategicamente localizados, noutras paragens, para receber fraternalmente esse cobiçado afluxo de clientes; considerando, igualmente, que os cassinos constituem formidável polo de atração turística, assegurando à sua volta oportunidades infindáveis de trabalho nos setores da hotelaria, espetáculos artísticos, gastronomia etecetera e que as estatísticas nos colocam ao par, pra compreensível espanto, que uma única cidade norte-americana, Las Vegas, devido às atrações oferecidas nessa esfera de entretenimento, acolhe mais turistas do que o Brasil inteiro, com suas incomparáveis riquezas naturais, pergunta-se, por quê a rejeição?

Deu no jornal. Ilustre Ministro da Suprema Corte lastima, com veemência, pedindo providências com referência ao assunto, vazamento de informações num processo em tramitação sigilosa na Justiça. Primeiramente, não há como ignorar que esse tipo de vazamento tem sido ininterrupto. Pode-se dizer, segundamente, que o vazamento é produzido, com absoluta certeza, por segmentos interessados em manter acesos, no trabalho que empreendem, os holofotes da mídia. Quantas vezes já não nos deparamos com a circunstância de as câmeras de televisão chegarem aos locais em que se desenrolam saneadoras operações de investigação antes mesmo que ali aportem as próprias autoridades incumbidas de executá-las? Está na cara que não é tão difícil assim identificar as fontes dos vazamentos indesejáveis, processados ao arrepio da lei. Tal constatação permite seja lançada no ar a pergunta: por quê, então, essas coisas todas continuam acontecendo?

Mais porquês pela frente.

Mais um bocado 
de indagações intrigantes

Cesar Vanucci

“É impossível saber o porquê de tudo. Mas pra muita coisa existem respostas que não podem deixar de ser dadas.”
(Antônio Luiz da Costa, educador)

Como dito anteriormente, neste mundo do bom Deus em que o tinhoso costuma plantar barraco, semeando confusão e discórdia pra valer, as inexplicabilidades abundam. Perguntas brotadas da aflição e aturdimento das ruas sobrepairam suspensas no ar, na ausência de respostas convincentes. Mal comparando, as perguntas, em circunstâncias que tais, soam com o fragor de tempestade, a um só passo que as respostas têm o embalo de mero chuvisco causador de constipação. Recorrendo a mais uma metáfora: o volume das perguntas sugere rio caudaloso. O das respostas dadas, pequeno riacho.

A tremenda insuficiência de informações, de esclarecimentos ardentemente almejados decorre, em grande parte – é o óbvio ululante – da proverbial ignorância humana com relação ao colosso de coisas que permeia a conturbada aventura da vida na pátria terrena. Mas decorre, também, em menor escala naturalmente, de outros variados e significativos fatores. Há respostas sonegadas por conveniências políticas, econômicas, culturais, sociais. Conveniências, assinale-se de passagem, não poucas vezes espúrias. Há (e como há!) o sibilino comportamento de pessoas, grupos, corporações, de diferentes matizes, morbidamente empenhados em falsear a realidade dos fatos. E, a partir daí, compor versões deturpadas para fins de divulgação. Há um mundão de gente, posando de “sabichões”, de “proprietários da verdade”, navegando nas mesmas fétidas águas da adulteração dos registros cotidianos ou históricos, que finge entender dos assuntos, arvorando-se, sem pudor algum, a emitir explicações na base do “lero-lero”. Desprovidas de fundamento, logicamente.

Estas considerações nos estimulam a alinhar, outra vez mais, novos “porquês” sobre situações que intrigam e amofinam o cidadão do povo.

A Embraer é uma empresa brasileira internacionalmente aclamada como polo de tecnologia avançadíssima, na área da aeronavegação. De tempos a esta parte, personagens ligados ao governo central vêm sustentando, de forma obsessiva e, igualmente, suspeitosa, a necessidade de desnacionalizá-la. Revela-se muito forte, também, a disposição dos mesmíssimos personagens em proceder, de idêntica forma, no tocante à Eletrobras, outra referência importantíssima na estrutura desenvolvimentista nacional. Indaga-se: por quê todo esse incontrolável afã em torno de empreitadas sabidamente rechaçadas pela consciência cívica das ruas e pelo sentimento nacional?

A Justiça tem proferido, com frequência, decisões contrárias ao ganancioso sistema de saúde privada, no que diz respeito à indecente duplicação do valor das mensalidades dos usuários, quando estes se abeiram dos sessenta anos de idade. As decisões deixam claramente documentado que, assim agindo, os planos de saúde agridem acintosamente os direitos humanos e o estatuto dos idosos. Derrotadas nas Instâncias inferiores, as empresas vêm interpondo recurso atrás de recurso procrastinatórios, arremessando a análise decisiva para outra esfera. Indagação que se recusa a calar: Será que já não chegou a hora de os poderes mais elevados da Justiça definirem, vez por todas, com um saneador veredito, tão tormentosa questão? Por quê não o fazem?

O influente complexo midiático, televisivo e impresso, que tanto se ufana em proclamar sua reta intenção e isenção nas abordagens da avalancha de maracutaias que assola o país, costuma manter-se reticente, quando não inteiramente mudo e quedo que nem penedo, numa situação muito bem caracterizada. É quando irrompem denúncias, que se vão fazendo constantes, tanto quanto já aconteceu com outras siglas partidárias comprometidas nos desvios e propinas, implicando eminentes próceres tucanos da Paulicéia. Por quê isso acontece?

O Presidente da República e a Presidente do Supremo Tribunal Federal omitiram, nas respectivas agendas de compromissos oficiais, o registro de encontro reservado que mantiveram, com ligação, presume-se, aos palpitantes acontecimentos políticos da atualidade. O episódio, como não poderia deixar de ser, foi recebido como muita estranheza, se não com perplexidade. O regramento institucional republicano e democrático desaconselha procedimento com essa conotação singular. Por quê isso aconteceu?

A VOLTA DA MANTEIGA
Roberto Fagundes *


 A manteiga e o azeite de oliva, quem diria, estão sendo vistos como ícones da retomada do crescimento econômico brasileiro. Observada a partir da segunda metade do ano passado, a volta gradual desses produtos às mesas da classe C – estima-se que 1,4 milhão de pessoas voltaram a consumi-los – assinala que ela começa a recuperar seu poder de compra. Símbolos da bonança verificada entre 2008 e 2013, período em que mais de 3 milhões de pessoas da classe D migraram para ela, esses produtos, entre vários outros, estavam entre os primeiros a serem cortados das listas de compras da chamada nova classe média quando a prosperidade esboroou-se em 2014. Começou aí um movimento inverso, não dos mesmos 3 milhões de pessoas que haviam ascendido à classe C, mas de cerca de 4,1 milhões, estima-se que voltaram para a classe D ou até mesmo caíram para a classe E.

Agora, parte significativa desses consumidores potenciais começa a retornar. E há realmente sinais de que a recuperação está em curso, de acordo com levantamento feito por uma empresa de consultoria econômica, que detectou um crescimento de 3,1% no consumo da classe C em 2017, contra 1,5% no resultado geral, com destaque para, além de manteiga e azeite, produtos de limpeza, com 10,1% de crescimento, higiene e beleza, (5,5%), bebidas (3,9%) e alimentos (1,3%). Em comparação, a variação global do consumo desses produtos foi, respectivamente, de 8,3%, 4,5%, 2,3% e – curiosamente, no item alimentos –, uma queda de 0,4%. Paralelamente, verificou-se redução no índice de endividamento das famílias, que em 2015 era de 22,8% da renda mensal e, em dezembro do ano passado, de acordo com o Banco Central, havia baixado para 19,9%. Isso, segundo a pesquisa, deve movimentar este ano algo em torno de R$ 124 bilhões na economia. Um reforço e tanto que, espera-se, terá como reflexo, ao final deste ano, uma expansão de 4,7% no comércio varejista.

O fator que está na origem destes resultados é a recuperação de renda, especialmente pela classe C. Há nisso um aspecto curioso: a retomada do consumo neste segmento certamente não provém de redução dos índices de desemprego, pois o Brasil continua com 12,2% de sua população economicamente ativa sem carteira assinada, algo próximo de 13 milhões de pessoas. E não provém, igualmente, de perspectivas de que os postos de trabalho perdidos sejam recuperados. Mesmo que isso aconteça, com certeza não voltarão aos níveis do pré-crise. Há, para justificar essa afirmação tão peremptória, um fato incontestável: o contínuo desenvolvimento e disponibilização de soluções tecnológicas para todos os setores de atividades, mas especialmente para a indústria, que vem provocando a extinção de muitas profissões. E a coisa não vai parar por aí. Estão a caminho, como um exemplo entre muitos, os veículos que dispensam condutores – o que significa que motoristas, em futuro não muito remoto, terão que procurar outra ocupação. Nem sempre a encontrarão, e isto é uma tendência inexorável, como provam os 25,3 milhões de brasileiros que, segundo a Organização Mundial do Trabalho, encontram-se na informalidade ou em formas vulneráveis de ocupação, número que deve subir para 25,8 milhões ao final de 2018 e para 26,2 milhões em 2019 e que não entram nos índices de desemprego do IBGE.

Assim, a recuperação de renda que agora se observa não será sustentável, ainda que as previsões de crescimento da economia para os próximos anos mostrem-se positivas, se não houver geração de empregos em número suficiente para absorver esta legião de desempregados. Algo, convenhamos, extremamente improvável num cenário em que a população brasileira cresce à razão de 0,77% ao ano e os empregos tendem a minguar cada vez mais. Por isto resta como solução estimular uma única alternativa: o empreendedorismo. Não será fácil, pois a cultura da maioria dos brasileiros quanto ao trabalho ainda está historicamente vinculada ao salário mensal, à carteira assinada. Mas o regresso da maior parte daqueles 3 milhões de pessoas à classe C em 2017 deveu-se exatamente ao empreendedorismo. São donos de pequenos negócios, de pequenos estabelecimentos de varejo, serviços e fábricas que estão percebendo a volta de seus clientes e puderam, com isto, reaver suas próprias capacidades de consumo. Não há, acredito, outro caminho, e ainda bem que ele existe. Se não for assim, adeus manteiga e azeite.

* Engenheiro, presidente da Federação de CVB-MG, 
presidente do Conselho do Instituto Sustentar e vice-presidente da Federaminas

sexta-feira, 9 de março de 2018


Ai de ti, Rio! (3)

Cesar Vanucci

“A guerra que estamos declarando contra o banditismo no Brasil será, sim, um fator determinante nas próximas eleições.”
(Ministro Carlos Marun, anunciando a candidatura Temer à reeleição)

Já está visto que o Rio de Janeiro foi largado à matroca por atordoante inépcia da administração pública. O (des)governo local rendeu-se, de bom tempo a esta parte, a um tentacular esquema de banditismo organizado. As operações mafiosas, processadas em múltiplos escalões, disseminaram-se pelas mais diversificadas áreas, lesando implacavelmente o erário e o interesse social. O descalabro chegou a tal ponto que a intervenção federal, decretada na esfera da Segurança, acabou sendo aplaudida por parte expressiva da sociedade.

Sem embargo dessa reação, compreensível – como já dito – à luz da indignação e canseira da comunidade face aos problemas e impasses cruciais ocasionados pela avalancha dos desatinos, numerosas e respeitáveis vozes se ergueram em contraposição à decisão do governo central. Não há duvidar sejam, por força dos argumentos alinhavados, vozes realmente representativas de lúcidas camadas do sentimento nacional.

De acordo com os questionamentos vindos a lume, a intervenção na Segurança carioca foi estabanada. Destituída de planejamento criterioso. Brotou do improviso, engendrada dentro de contexto com indisfarçáveis sinais de vulgar populismo. Sua implicação com arrematado oportunismo eleitoreiro é bastante pronunciada. Nem bem o anúncio da intervenção conseguia alcançar integralmente o domínio público e já solícitos porta-vozes do Jaburu se aprestavam a trombetear, triunfalmente, certos objetivos penumbrosos da manobra articulada em Palácio. Deixaram explícito, sem titubeios, nem tênue resquício de pudor, que após a intervenção, o ínclito Presidente Michel Temer seria forçosamente compelido a dizer desprendidamente ao povo brasileiro que, para o bem geral da Nação, “eu fico”... Noutras palavras, a nos valermos de emblemáticas declarações do Ministro Carlos Marun, titular da Secretaria de Governo, integrante destacado da chamada “tropa de choque” do célebre deputado Eduardo Cunha, “depois do que aconteceu na Câmara (aprovação do decreto de intervenção), faz-se necessária e indispensável a candidatura do Presidente Michel Temer na próxima eleição.”

Em entrevista à “Veja”, o Ministro acentuou que “o governo é medido pelo êxito de suas ações”. Com a boquirrotice que lhe é peculiar, garantiu que o sucesso “dessa guerra que estamos declarando contra o banditismo no Brasil será, sim, um fator determinante nas próximas eleições”. E que, à conta de tão irrefutáveis elementos de convicção, se tornará imperioso o lançamento do honrado nome do supremo mandatário à reeleição. Isso mesmo, gente boa...

Esses propósitos inesperados, repentinos, nascidos de cavilosas articulações e de manjado casuísmo, são de molde a convocar a atenção da opinião pública para certas facetas frisantes do comportamento governamental. Recordam, antes de mais nada, que o índice de popularidade de Temer anda tropegamente  ao rés do chão. É, com flamejante certeza, o mais baixo de todo o período pós-redemocratização. Por óbvias razões.

Ao assumir, após a queda de Dilma, entre outras enfáticas promessas, Temer assegurou que acabaria com a corrupção, estancaria o desemprego, retomaria o desenvolvimento econômico. A redução dos juros extorsivos impostos à cadeia produtiva constituía ponto de honra. O País iria contar, finalmente, com um “ministério só de notáveis”. O número de pastas ministeriais seria reduzido. O jogo do “toma lá dá cá” no relacionamento político partidário e com o Parlamento seria página virada na história. Os brasileiros não mais se constrangeriam com as notas de classificação atribuídas ao País pelas fajutas agências de risco. Deixo para o leitor a tarefa de conferir o rosário de promessas alardeadas.

Temer enveredou-se, dado instante, pela seara das “reformas”. Trancou-se, onipotente, num monólogo reformista que não produziu nenhum resultado concreto. Escusou-se ao diálogo amplo, geral e irrestrito na magna questão da Previdência Social. Deixou evidenciado, nesse capítulo tão importante, o desinteresse oficial em torno da discussão dos verdadeiros privilégios existentes na atualidade brasileira, representados pelos variados sistemas de remuneração e aposentadoria reservados às castas do marajanato tecnocrático e burocrático. Lançou tímidas ideias de alguma reforma, com o intuito de não fazer reforma alguma. Silêncio de tumba etrusca baixou subitamente sobre as “urgentes reformas”.

Encurtando razões. Todo mundo, em sã consciência, aprecie ou não o jeito de atuar de Michel Temer, almeja a esta altura do campeonato que a empreitada programada para as plagas guanabarinas logre êxito total. Mas não há como descartar de todo a indesejável hipótese de que ela, a controvertida intervenção, levando-se em conta os cumulativos fatores adversos amiúde detectados na gestão dos negócios afetos ao alto comando governamental, possa produzir dorida frustração na expectativa popular.


Eis aqui um cara sortudo

Cesar Vanucci

"Todos os participantes foram selecionados pelo sistema de computador."
(Mensagem relativa a "premiações" anunciadas via Internet)

Eu estaria feito na vida se, nas inocentes apostas que arrisco em dias de mega sena acumulada, fosse "favorecido" pela mesma "estrondosa sorte" com que tenho sido, insistentemente, "cumulado", via Internet, nas horas em que me animo a ligar o computador para recolhimento de mensagens. Almas generosas, compadecidas seguramente do hercúleo esforço cotidiano exigido deste pobre escriba na luta pela sobrevivência, entendem de "aquinhoar-me", volta e meia - só nos últimos tempos somaram uma dezena -, com "premiações espontâneas", de valores variáveis. Manjem só: de 750 mil dólares a 50 milhões de euros.

Segundo os prestativos porta-vozes das "beneméritas" organizações alienígenas, todas de denominação pomposa, que invadem o meu refúgio eletrônico com "tentadoras ofertas", o neto predileto de vó Carlota é alguém, entre 50 afortunados viventes do orbe terráqueo inteiro, "selecionado" para por a mão em substanciosa bufunfa instituída como "prêmio" de incentivo a "usuários da Internet e para promover mercadorias utilizadas no processamento de informações eletrônicas." Dá até pra assimilar a sedutora ideia de que eis aqui um cara verdadeiramente sortudo...

Essa inesperada avalancha de "acertos lotéricos", que levou em conta, como se faz ver nos recados eletrônicos, merecimentos do "beneficiário" que a modéstia prudentemente aconselha sejam por ora silenciados, irrompe de procedência a mais variada. As "boas novas" chegam dos "States", Escandinávia e Espanha. Ao deparar-me com a primeira delas senti percorrer-me o corpo um inebriante frêmito. Uma sensação, por certo, bastante parecida com a euforia que se apoderou da cândida alma daquele parlamentar – lembram-se do episódio de anos atrás? - integrante do luzidio time dos “anões do orçamento”, ao acertar na mosca, em sucessivos sorteios lotéricos, dezenas de prêmios vultosos com os quais conseguiu construir, honradamente, sólido patrimônio pessoal...

Meu "entusiasmo" diante da "premiação" é de tal monta que não consigo, jeito maneira, segurar comigo, contrariando desastradamente recomendação expressa das mensagens, compartilhando-a aqui com meus apoucados leitores, "sugestiva revelação". Ei-la: “o resultado da Euro Millions Lottery Winners Internacional" nasceu da "auspiciosa" circunstância de meu endereço eletrônico, sabe-se lá por que cargas d'água, ter sido "anexado ao ticket de número 653-908-321-675, da série principal de número 345-790-241-671", o que – alvíssaras! – "coincidiu com os números 34-32-90-43-32", seja lá o que essa algaravia de algarismos possa representar...

Numa das correspondências alusivas às "premiações espontâneas" aportadas em meu endereço virtual é "esclarecido" que "os participantes foram selecionados pelo sistema de computador a partir de mais de cem mil companhias e 50 milhões de e-mails individuais e nomes em todo o mundo." Nisso aí, como em tudo na vida, existem certas pessoas mais felizardas que outras. Um amigo faz questão de ressaltar o fato. Individuo temente a dogmas religiosos, confessa-se em desconforto por ter sido acometido de “santa inveja” – ora, veja, pois! - com relação a minha humilde figura. Enquanto o degas aqui, tímido navegante nos imperscrutáveis domínios da mídia eletrônica, dá provas, segundo diz ele, de ter aquela parte do corpo totalmente virada pra lua, já que "premiado" uma dezena de vezes, ele, pobre coitado, desoladoramente, não consegue ainda sequer um “premiozinho de consolação”. E isso a despeito de sua frenética movimentação por tudo quanto é vereda aberta aos irrecuperáveis viciados em internautica.

Sobre as mensagens cabe mais registro: deu pra ver estarem redigidas num inglês razoável. Pelo menos, de melhor nível do que o habitual e impropriamente utilizado, nestas nossas bandas, numa mescla de boiolice e panaquice, por lojas grã-finas que resolvem utilizar vocábulos estrangeiros pra anúncio de liquidações de araque.

Por último, tomo a liberdade de, singelamente, sugerir a quem esteja lendo estas maltraçadas e seja fissurado em numerologia anotar os algarismos reunidos linhas atrás. Talvez é uma boa convertê-los em palpite pra fezinha numa dessas centenas de modalidades de apostas, institucionalizadas ou não, que pululam por aí afora, neste nosso país. Um país onde, como sabido, o jogo é atividade severamente proibida, de acordo com versão oficial referendada pela hipocrisia social.



Maria Inês Chaves de Andrade *




          CÂNIONização

O olhar se precipita sobre o nada e se abisma com tudo o que vê. Pálpebras de pedra maquiadas de luz nem piscam para que um homem veja o que um homem viu pela greta do tempo e gruta. A íris é a do arco, menino dos olhos de Deus e flecha focada no deslumbramento. Pupila dos olhos é aprendiz do belo. O olhar se extasia e estático guarda o instante no instantâneo. A inércia faz pose para que se revele, entre um mar havido e um deserto ávido, o escândalo do movimento. Sentimento de sedimento é isto, consciência do pó de quem veio para onde outro ao pó retornará.
Ainda há cúmulos do absurdo e acúmulos do ridículo que bradam mais graves do que o firmamento, tão aguda seja a dor que raia no horizonte e lanceta a face do tempo. Arroxeia o espaço com a luxação da fé sob luxo e luxúria, enquanto enruga o semblante do dia. Os pensamentos estão nebulosos. Mas, a bênção está mesmo ali. Um homem que captura do tempo o segundo e o relâmpago sabe, sensivelmente, como a existência é tempestuosa. Tudo o mais é só foto, não fosse possível aqui escutar o mesmo trovão que nos redemoinha os ouvidos, labirintos sob orelhas do que me livro.
Bem ali, o cogumelo atômico que mereceu do tempo a erosão constrange nosso esquecimento: a escultura cônica no cânion deserto a nos lembrar do que tanto desertificamos como desertamos em nós. Então, todas as lágrimas vêm empoçar-se para escancarar o sofrimento humano, senão represado, movediço, em torno desta pedra no meio de nenhum caminho nesse vasto mundo. Escoa do que ecoa e me calará sempre fundo para que possa dizer. Deus bordeja de céu, tudo, em moldura azul de arte, esta de artista e arteiro, sensivelmente levado a acreditar na humanidade dos homens. Imagem e semelhança divinizam-se para que a essência humana rescenda no areal laranja, sumo pontificante da sensibilidade que explode num diapositivo enquanto num dia positivo um marchand de obras do tempo se dá, simplesmente, a fotografar.
Um lagarto cinzento, às sombras incidentais, acidentalmente, encontra o escorpião que caminha as cinzas da fênix renascente, enquanto esgueira-se um cacto pelo vigor do atrevimento. A aridez tem sua suculência sob espinhos e abutres. Este é o caso de todo ocaso. A noite vai caindo, assim, simplesmente complexa sobre complexos, aproximando Freud e Froid para, numa psicanálise rapper, concluir, astronômica e astrologicamente, pelo absurdo das constelações. A orientação desorientada mapeia, no céu, bússolas, tanta lógica há no desconhecido, o que digo com meu próprio astrolábio de batom.
Doutro lado mesmo, esnoba a estrela polar sua têmpera, tanta temperatura nunca experimente.
O fato é que, no deserto, toda estrela é bipolar.
E apesar do que há a pesar, remanesce o cânion ali para que o universo declame-se, divinizando o soneto da eternidade, onde a rima arrima no infinito a História que tanto rui como se soergue sob escombros. Cânion é poesia concreta em pura abstração, densidade efêmera sedimentada à ampulheta de Deus. Pois, que tudo lhe seja fiel enquanto dure, agora e para sempre, amém.

* Escritora, membro da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais - Amulmig

sexta-feira, 2 de março de 2018



Ai de ti, Rio!

Cesar Vanucci

"Brasil, tira as flechas do peito de meu padroeiro que São Sebastião do Rio de Janeiro pode ainda se salvar."
(Aldir Blanc, no lindíssimo "Querelas do Brasil")

Retiro do baú um artigo de anos atrás que se reveste ainda, sem que se precise dizer o motivo, de candente atualidade.

O que diferentes administrações de notória ineficiência, mafiosos e bandoleiros de diversificados matizes, policiais despreparados ou corruptos e políticos inescrupulosos ou desprovidos de espírito público andam aprontando, não é de hoje, com a mui leal e heroica São Sebastião do Rio de Janeiro, só pode ser mesmo classificado de crime de lesa-pátria.

Sou de um tempo e pertenço a uma geração que aprendeu a cultuar o Rio como o segundo rincão natal de cada brasileiro. Mesmo daqueles patrícios que só o conheciam à distância. Melhor dizendo, daqueles compatriotas que se extasiavam com a soberba composição entre a Natureza e o engenho humano refletida na cidade, sem nunca ter tido a chance de contemplar de perto as belezas sem par da cidade de encantos mil, cidade maravilhosa, coração do Brasil, cantada na imortal melodia de André Filho.

Comprovo em sugestiva coletânea de depoimentos anotados pelo renomado Paulo Rónai, no esplêndido "Dicionário de Citações", que o encantamento e a magia do Rio de Janeiro são de tempos imemoriais, de abrangência universal e de ressonância infindável. Vejam só o que a visão estonteante da paisagem inigualável arrancou de um versejador maior da língua, Bocage (1765-1805): "Pus, finalmente, os pés onde murmura / o plácido janeiro, em cuja areia / Jazia entre delícias ternura." Apolinário Porto Alegre, nas "Brasilianas", não faz por menos: "Vi dez sólios; oitenta e seis cidades / Vi as do engenho humano maravilhosas / Pelas artes criadas em mil anos / Mas meus olhos não viram quem te iguale / Divina Guanabara, em teus encantos.”

Com certeira certeza, emoção parecida arrastou Paul Claudel a dizer que "o Rio é a única grande cidade que não conseguiu expulsar a natureza.". Ou Genolino Amado a proclamar, deslumbrado, que os panoramas cariocas, inundando o coração da gente, fornecem a sensação do mundo em festa. Ou ainda Carlos Lacerda a garantir ser o Rio uma admirável síntese brasileira, cidade onde existe a ideia de que a amizade é força essencial à vida, arrematando assim a definição de um Rio presente na saudade e na veneração dos brasileiros: "O que no Rio por dinheiro nenhum se consegue, com uma boa palavra se alcança. Ou um palavrão, dito com ternura.”

Esse Rio lindíssimo, terno, de imagens que comportam tantas grandezas, de abrasador calor humano, sinopse vibrante do sentimento nacional, parece não existir mais. Parece estar sucumbindo diante das flechadas letais disparadas pela violência e insensatez desabridas, estimuladas pelo despreparo e falta de criatividade governamentais no enfrentamento da bandidagem e corrupção.

No passado, tomava-se conhecimento com sintomática frequência de casos de conhecidos que se ligavam pela vida afora, movidos por contagiante entusiasmo, ao sonho dourado de terminar seus dias, à hora merecida da aposentadoria, na assim denominada cidade-maravilhosa. Que diferença de hoje, santo padroeiro! Que diferença destes tempos ignominiosos das quadrilhas de traficantes; das milícias corruptas de policiais; das unidades pacificadoras, nem sempre lamentavelmente “pacificadoras”; das balas extraviadas, das rajadas luminosas mortíferas que enchem de pavor ruas, residências, estradas, bairros inteiros e que inspiram nas pessoas, ao reverso, a ânsia de sair à cata de outros refúgios para terminar os dias de forma que não renda notícia dolorida em canto de página policial.

Os acontecimentos dos tempos cariocas de hoje dizem respeito a todos os brasileiros. O Brasil tem o direito e o dever de agir, se preciso for até com intervenção federal. O Rio de Janeiro precisa desfazer-se de suas mazelas. Continuar lindo, para desfrute da humanidade. É preciso que surjam pessoas interessadas em arrancar as flechas do peito do padroeiro, para que São Sebastião do Rio de Janeiro possa ainda se salvar, como dito na belíssima canção de Aldir Blanc.

Em tempo: O título deste artigo foi inspirado por uma expressão que deu título a um livro do magnífico Rubem Braga: “Ai de ti, Copacabana!”.


Ai de ti, Rio! (2)

Cesar Vanucci

“A degradação da Segurança Pública, da Saúde e da Educação é apenas uma consequência das ideias da elite política que temos.”
(José Sicsu, professor da Universidade Federal RJ)

Em tempos idos, não tão distantes, era assim. Em tempos de agora, deploravelmente, não é mais assim. Nove entre cada dez brasileiros, talqualmente sucedia com as estrelas de cinema naquele reclame famoso da marca de sabonete, preferiam o Rio de Janeiro pra suas folganças turísticas. A linda, mui heroica e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro exercia fascínio arrebatador na alma popular. A mineirada, então, nem se fala...

Era um tal de passar férias na antiga capital à beira-mar plantada! Nada, em pedaço de chão algum, oferecia algo ligeiramente comparável: banhar-se nas praias, visitar o Corcovado e o Pão de Açúcar, assistir espetáculos de teatro revista, participar de caravanas pra ver jogo no Maracanã. Copacabana, a princesinha do mar da canção conhecida do Oiapoque ao Chuí, era o símbolo reluzente de prodígios narrados em verso e prosa. Uma senha para o sonhado acesso a cenário de mil e um encantos.

O imponente Vera Cruz, com suas confortáveis e disputadíssimas cabines duplas e poltronas individuais, representava traço de ligação viva, de esfuziante colorido humano, entre as Alterosas e a sedutora paragem de destino. A imagem de indescartável toque saudosista do trem lendário, carregando casais em lua de mel e um montão de gente ávida pra curtir as oferendas culturais, artísticas e recreativas guanabarinas, reaviva ainda, outro tipo de lembrança. Esta, de feição negativa, frustrante à beça. Naquele tempo em que o Vera Cruz circulava regularmente, o gerenciamento dos negócios públicos relacionados com a política de transportes ainda não havia sucumbido às desastradas e suspeitosas conveniências que, num dado instante, ordenaram, irresponsavelmente, o sucateamento global e irreversível do razoável sistema ferroviário então existente no país.

Com o advento de Brasília, o foco das atenções políticas obviamente deslocou-se. Mas a força de atração do Rio, como efervescente polo cultural e turístico, manteve-se incólume por bom período. As pessoas continuaram alugando ou adquirindo imóveis para temporadas nas areias fofas da emblemática Copacabana.

Era assim. Não é mais. O Rio não é mais aquele. Tantas as calamidades acumuladas em sucessivos (des)governos, que essas relembranças de momentos airosos são até de molde a arrancar no presente manifestações de incredulidade de uma pá de viventes que da vida carioca se habituaram, constrangidos, a travar contato cotidiano com as mazelas de toda sorte ruidosamente estampadas no noticiário nosso de cada dia. Desmandos administrativos atordoantes, inércia gerencial inimaginável, corrupção deslavada, despreparo técnico e burocrático geraram quadro perturbador. A violência urbana, alvo da intervenção, constitui um dos muitos desafios a serem enfrentados nesta fase de angustiante deterioração das coisas públicas no Rio de Janeiro.

Vários analistas dos acontecimentos políticos asseguram que o Rio não é, das grandes cidades brasileiras, a que ostenta maior índice de violência. É provável que a razão lhes assista nesse diagnóstico.  Mas, sendo o Rio o que é no panorama brasileiro, mostruário mais ostensivo, mundo afora, de nossa realidade cultural, a intervenção na área da segurança pública, questionada com veemência por numerosos setores, parece haver logrado aprovação popular. A despeito da pesquisa encomendada ao Ibope ter sido telefônica, abrangendo pequeno contingente de consultas, é bastante razoável supor que a maioria das pessoas, de modo geral, se também ouvida, endossasse o mesmo ponto de vista dos mais de 80 por cento de cidadãos que se manifestaram favoráveis na pesquisa mencionada. Os sinais de fadiga e inconformismo com referência ao amontoado de problemas do Rio de Janeiro são notórios.

A intervenção processada, originária de um governo desacreditado a mais não poder, dá vaza a outras reflexões.

A SAGA LANDELL MOURA

Uma mulher rodeada de palavras

                             *Cesar Vanucci “Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania de ter fé na vida” (verso da canção “M...