sexta-feira, 25 de março de 2011

O fascínio do todo

Cesar Vanucci *


“As paixões conduzem a vida. À vida também.”
(Luis Giffoni)

Luis Giffoni navega com invejável desenvoltura em todas as correntes da expressão literária. Provas cabais disso nô-las dá em opulenta obra, de borbulhante versatilidade artística. Bota pra fora em qualquer tipo de texto, poesia ou prosa, o fascínio que sente pela aventura humana. Identifica-se, no contexto existencial, com aquelas criaturas singulares da paisagem literária que vislumbram no humanismo a própria essência da vida. Criaturas talentosas, bem articuladas no jogo da vida, comprometidas com os clamores das ruas de sua época.

Uma espécie de gente que sabe perfeitamente não haver tempo a perder. Artistas que fazem uso da capacidade intuitiva pra enxergar primeiro as coisas. Chegam antes, assim, às interpretações dos fatos. Entregam-se à contemplação das estrelas para aprender e indicar rumos. Revelam-se indomáveis no afã de abarcar, nem que seja (como é compreensível) na base da pura quimera, o todo humano. Exercitam a liberdade criadora, - no caso de Giffoni, com sonora dicção lírica, linguagem ficcional burilada, dentro de um rigor de forma e idéias – na elaboração de textos que transmitam algo esperançoso sobre o mundo.

“O fascínio do nada”, coletânea de ensaios e crônicas alusivos a candentes temas da atualidade, recentemente lançado nas livrarias, é uma amostra eloquente a mais do alinhamento do escritor com o sentimento humanístico. Não deixa de ser - nas abordagens críticas, recados didáticos e conceitos expendidos sobre as virtualidades e fragilidades humanas, estampadas nos fatos focados - um livro esplêndido do ponto de vista estético, pela construção fraseológica requintada. Mas é, igualmente, um documento social vigoroso, com proposta humanística de vanguarda.

Não sei, sinceramente, se alguém já se deu ao trabalho de identificar com algum sabor conhecido os escritos que proporcionam deleite. Deixamos solta, aqui, modesta contribuição para quem, com arte e engenho situados bem além de nossas possibilidades, se disponha a aprofundar o exame dessa singular correlação. A palavra de Giffoni tem gosto de chocolate. Chocolate espumoso, nutritivo, desses que se recomenda tomar a goles compassados, mode extrair do produto, parafraseando simploriamente o poeta, a eternidade de cada momento.

Este livro de que se está a falar reporta-se a flagrantes da vida cultural, a teorias científicas, religiosas e políticas que tanta influência exercem sobre o comportamento das pessoas, às ambições imperialistas e hegemônicas das grandes potências. Pode ser visto, admitida a comparação acima, pelos ensinamentos propiciados, a uma iguaria achocolatada absorvida prazerosamente como alimento pelo espírito.

As reflexões do autor traduzem perplexidades. Propõem questionamentos. Provam que as paixões humanas, arrebatantes, precárias, estipulando modelos de convivência, são fundamentais. “Com sua ajuda, o ser humano evolui sobre a Terra.” “Elas (as paixões) conduzem a vida. À vida também.” Uma poética pujante faz perpassar também pelas 150 páginas o sentimento nacional de que se acha impregnada a formação desse notável homem de letras. Um estudioso da alma humana que constata em suas avaliações “as investidas contra as pessoas, as crendices apregoadas, as milenárias superstições que perduram, as hipóteses de trabalho tornadas verdades, os delírios entronizados nas mídias, a falta de senso crítico.” Mas que está convencido também de que “por mais cruéis e insustentáveis que sejam alguns pontos de vista, jamais nos livraremos deles.” Até mesmo porque “a diversidade faz a graça do mundo – um mundo cheio de graça, por sinal.”

“O fascínio do nada” – repetimos – escancara o fascínio de Giffoni pelo todo.

Feito científico notável

Cesar Vanucci *

“Pode-se trabalhar, sim, com ciência no Brasil.”
(Jacob Palis, matemático, agraciado com o “Prêmio Balzan”)

Equivocadamente absorvida, na sua relevante tarefa de retratar o cotidiano, em lances menos edificantes das ações humanas e em “celebridades instantâneas” que geralmente chamam a atenção do público por reações estapafúrdias, a grande mídia acaba ignorando, frequentemente, histórias pessoais sumamente enriquecedoras do ponto de vista da construção humana.

A preferência manifesta pelo sensacionalismo barato não deixa sobrar, no mais das vezes, espaço para vozes, feitos e imagens que sugiram esperança e expressem confiança no destino do ser humano.

Temos aqui bem à mostra nova e eloquente prova desse menosprezo habitual da mídia a realizações que exaltem a inteligência e a cultura, vale dizer, celebrem a vida. A parca divulgação, melhor dizendo, a divulgação nenhuma que se viu da conquista recente por um cientista brasileiro, mineiro de Uberaba, de prêmio internacional cobiçadíssimo. A láurea em questão, “Prêmio Balzan”, é concedida anualmente a pesquisadores de escol vinculados a diferentes áreas do conhecimento. Instituída pela “Fundação Balzan”, na Itália, é considerada das mais importantes condecorações conferidas ao talento e criatividade intelectual em todo o mundo.

Jacob Palis, uberabense de boa cepa, atual presidente da Academia Brasileira de Ciências, reconhecido como um dos mais brilhantes matemáticos dos tempos modernos, foi agraciado, em 2010, com o “Balzan”. Juntamente com três outros cientistas de renome internacional: Carlo Ginzburg, italiano, por estudos no campo da História européia, Shinya Yamanaka, japonês, por pesquisas com células-tronco, e o alemão Manfred Brauneck, por trabalho sobre a história do Teatro. Antes de Jacob apenas matemáticos estadunidenses e europeus haviam sido premiados.

A pesquisa que lhe rendeu o Prêmio é apresentada pelos entendidos como uma fórmula matemática revolucionária. Diz respeito a uma interpretação diferente de tudo quanto cientistas já colocaram no papel acerca da chamada “Teoria do Caos”. A Teoria em causa explica o funcionamento de sistemas complexos em transformação contínua. Em sistemas dinâmicos dotados de complexidade, determinados resultados podem se revelar “instáveis” no que diz respeito à evolução temporal como função de seus parâmetros e variáveis. Isso significa que certos resultados determinados são causados pela ação e a interação de elementos de forma praticamente aleatória. Pra entender o significado do que está sendo dito, basta pegar um exemplo na Natureza, onde tais sistemas são comuns. A formação de uma nuvem no céu, por exemplo, pode ser desencadeada e se desenvolver com base em incontáveis fatores: o calor, o frio, a evaporação da água, os ventos, o clima, as condições do sol, os eventos sobre a superfície, por aí.

E como foi que este escriba ficou a par dessas coisas todas? Elementar, caro Watson: recorrendo à Wikipédia. A enciclopédia livre fornece informação abundante sobre a Teoria, fazendo, entre outras revelações, que muitas coisas percebidas pelas pessoas como mero acaso constituem, na realidade, fenômeno que pode ser representado por equações matemáticas. Os maiores cérebros da ciência, Einstein naturalmente incluído, ocuparam-se do tema.

O trabalho do cientista brasileiro lança novas luzes nas questões propostas pela Teoria. As hipóteses levantadas impressionaram vivamente os responsáveis pela outorga do prêmio. Do autor há que se dizer ainda que faz parte, como engenheiro e matemático, das maiores Academias de Ciência do planeta, em todos os continentes. É professor titular do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), do qual já foi também diretor, colecionando pelo seu saber invulgar lauréis nacionais e internacionais que bem poucos cientistas no mundo lograram obter.

Na abalizada opinião de Palis, pode-se trabalhar, sim, com ciência no Brasil. Ele acha possível aos cientistas chegarem a patamares bastante elevados nos estudos ficando no Brasil. Ninguém precisa deixar o país para realizar com êxito suas pesquisas, afiança. Palavras suas textuais: “Já orientei mais de 40 teses de doutorado no Brasil. Boa parte delas tem padrão internacional.”

Palis receberá o “Balzan” agora em novembro na Itália. Conheci-o, garotinho ainda, aluno do Colégio Diocesano, morador do casarão da rua Arthur Machado pertencente aos pais, seu Jacob e d. Samis, de saudosa memória, cidadãos que desfrutavam de invejável conceito no apreço e carinho da comunidade uberabense. Ponho-me a imaginar, jubilosamente solidário, a enorme emoção que seus parentes, entre eles os irmãos Fádua, Wilmar, Lauanda, Tereza, José,  vivem neste momento especialíssimo na justa comemoração do notável feito do genial Jacozinho.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

Assinatura mensal de telefone

Cesar Vanucci *

“As redes sociais estão ai pra isso.
Tornar conhecidas coisas que não são divulgadas.”
(Lívia Antonieta, blogueira)

Aviso (muito) valioso aos navegantes. Melhor dizendo, à gente do povo. Melhor dizendo ainda, aos usuários de telefonia. Na verdade um mundão de gente, a ser levado em conta o crescimento ininterrupto do número de brasileiros com acesso nos últimos anos a esse veículo de comunicação.

Tomo conhecimento, por meio de mensagem vinda pela Internet, que vai ser votado, agora em março um projeto de lei que tem o número 5476/2001. Na hora presente, o projeto vem sendo examinado na Comissão de Defesa do Consumidor. E o que isso tem mesmo a ver com o interesse do cidadão comum? Muita coisa. Mais do que o distinto leitor imagina. O projeto em questão, volto a dizer, em vias de ser votado, estabelece o cancelamento da taxa telefônica fixa em todo o território nacional, ou seja deleta das preocupações do consumidor a tal da “assinatura mensal” pelo uso do serviço. Invenção de moda criada pelo poderoso complexo da telefonia para fazer crescer mais seus polpudos ganhos.

Acontece que a Câmara dos Deputados tomou sensata deliberação. Resolveu ouvir, numa espécie de consulta popular nacional, os usuários de telefone sobre o que pensam dessa medida de extinção das taxas. Montou, de modo a facilitar essa audiência de caráter democrático, um sistema destinado a colher a opinião do público. Por meio de ligação gratuita para o telefone 0800-619619, o cidadão pode dizer, manipulando as opções eletrônicas oferecidas, bem mais simples das que as tradicionalmente utilizadas nos inevitáveis (muitas vezes, frustrantes, como mostra o Procon) contatos que todos temos com as operadoras, se está a favor ou contra o cancelamento, na conta mensal, das taxas cobradas, sejam residencial ou comercial. O 0800-619619 (não deixe de anotar) pode ser acessado todos os dias úteis no horário de 8 (oito) às 20 (vinte) horas.

O ponto de vista da sociedade, expresso em tais ligações, vai ser de grande peso no posicionamento a ser assumido na votação em plenário dos parlamentares. As redes sociais estão veiculando mensagens incessantes de recomendação à população para que se manifeste de forma maciça, contribuindo para que seja cancelada pra sempre a descabida taxa da assinatura mensal. Seja ressaltado que as empresas de telefonia, com a almejada extinção da taxa, mesmo desfalcando-se de parcela de seus ganhos, ainda continuarão a desfrutar de excepcional lucratividade nos negócios. As taxas para ligações no Brasil, notadamente as do setor da telefonia móvel, são comprovadamente as mais elevadas do mundo. Só pra ver a magnitude dos lucros: as empresas estrangeiras do setor que atuam em nosso território recolhem aqui numerário mais expressivo do que o das receitas operacionais auferidas em seus próprios países de origem.

O leitor há de estar perguntando, neste momento, porque cargas d’água uma questão tão momentosa, de inegável interesse público como esta, esteja totalmente ausente do noticiário nosso de cada dia elaborado pela grande mídia. Por que o assunto não encontra espaço nos boletins noticiosos noturnos, sempre carregados de novidades da televisão. Por que será mesmo?

Mas não nos apoquentemos com essa omissão. As redes sociais de comunicação, como a história vem se encarregando de mostrar, começam a preencher razoavelmente, num crescente, esses vazios indesculpáveis. O jeito é aprender a utilizá-las proveitosamente sempre que possível. Como, agora, neste momentoso caso.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

sexta-feira, 18 de março de 2011

A luta pelos direitos da mulher é uma luta pela dignidade humana


Cesar Vanucci *


“As mulheres são seres humanos
 exatamente como os homens.”
(Lin Yutang)


A celebração do “Dia Internacional da Mulher” confere atualidade a alguns conceitos que andei expendendo em exposição feita num Fórum feminino, com participação de mais de mil pessoas, promovido alguns anos atrás pelo Lions Clube. Proclamando que as lutas da mulher são lutas em favor da dignidade humana, transmiti da maneira que se verá adiante o meu recado.

Sou um repórter. Exatamente isso, um repórter. Em tudo que aprendi a fazer, na vida profissional e atividades sociais, comporto-me, basicamente, como um repórter. Procuro, assim, me informar de um pouco de tudo. Mas devo confessar, em boa e leal verdade, que não sei senão muito poucas coisas.

Trago para aqui um pouco do que aprendi acerca do papel da mulher na sociedade, sobre as lutas e conquistas da mulher em sua ascensão humana. Às organizadoras deste Fórum, confesso também, desvanecido, que minha participação no evento constitui honra demais para um pobre repórter.

Peço permissão para dedicar a palestra à Addi, minha valorosa companheira, que me tem ajudado nesses anos todos a entender as idéias e conceitos que vou defender.


Evocação especial

Começo com uma evocação especial: o grande Papa João XXIII. Dele a declaração de que a luta da mulher pela obtenção de direitos representa uma das maiores revoluções empreendidas pela humanidade no século XX. O Papa, como sempre, sabia do que estava falando. A dolorida história da promoção da mulher simboliza, melhor do que qualquer outro esforço humano de crescimento político, cultural, social, econômico, a história por inteiro das lutas pela conquista dos direitos do cidadão.

Nos óbices defrontados nas lutas da mulher estão contundentemente inseridos abjetos preconceitos, aviltantes discriminações, asfixiantes camisas-de-força, presentes, todo o momento, na convivência humana, frutos malsãos do obscurantismo, do machismo castrador, da insensibilidade para se compreender o sentimento do mundo, o sentido cósmico da vida.

Não é difícil detectar, em instantes de trevas, decretadas pelo preconceito e pela discriminação, que a mulher é invariavelmente penalizada em dobro, em relação ao homem. O racismo a alveja por ser negra, por ser cigana, por ser judia, ou por não ser judia, e por ser mulher. Ela paga o pato, por assim dizer, por pertencer à etnia errada, em lugar ou momento errado, na concepção do radicalismo dominante em determinado cenário, e por ser mulher. Por pertencer à religião enjeitada, nas mesmas circunstâncias de ambiente e época, e por ser mulher. Assim por diante.

Recorramos a um outro pensador. Eis o que diz Lin Yutang: “As mulheres são seres humanos exatamente como os homens - iguais na capacidade de julgar e de cometer erros, se lhes derdes a mesma experiência do mundo e os mesmos contatos com este.”

Uma cena da infância

Numa terna cena da infância, extraída do baú das recordações, vejo desenhado o perfil da primeira líder feminista que fiquei conhecendo. Era uma moça de seus trinta anos, dona de semblante extremamente simpático e de corpo bem proporcionado. Trescalava obstinação pelos poros. A gesticulação exuberante, herança napolitana, nela reforçava as palavras ditas em tom de voz quase cantante. Durante um tempão, já adulto, alimentei sem poder concretizar o desejo de manter com ela um dedo de prosa. Até hoje carrego o dilema que um bom papo poderia certamente ter desfeito. Teve ela, a qualquer tempo, exata percepção do significado precursor dos gestos e ações que assumiu?

Todas as tardes, eu a avistava descendo a ladeira que dava num campo de futebol improvisado, onde a garotada tocava suas peladas movidas a bola de pano, brigas inofensivas e um que outro palavrão punido com chinelada. A sensação era de que Verlaine descobrira naquele gracioso desfile vespertino inspiração para os versos: “Quando ela anda, eu diria que ela dança.”

Pontualidade parecia atributo todo seu. Havia quem acertasse o relógio à sua passagem. Era o momento em que as janelas das redondezas se fechavam estrepitosamente, em sinal de zanga malcontida. Olhares e murmurações recriminatórios acompanhavam-lhe a trajetória graciosa por detrás das venezianas, até que escapulisse por completo do raio de visão do falso puritanismo entocaiado. Tudo compunha clima de excitante e novelesco mistério que aguçava demais da conta a cabeça da gente. Por que as coisas corriam daquela maneira? O que a nossa heroína andava aprontando?


Imaginem só o descaramento!

Prepare-se a benevolente platéia, notadamente da ala das fumantes, para um baita impacto. A nossa valente personagem, apenas e simplesmente, foi a mulher que primeiro ousou, naquela aprazível cidade do interior (Uberaba), fumar em público. Ousou mais - “imaginem só o descaramento!” - : foi também a primeira a andar de calça comprida pelas ruas. Tais lembranças, de simbólico surrealismo, chegam a propósito da temática que hoje nos reúne neste amorável encontro de confraternização e reflexão.

Engrenagens machistas

Periodicamente é realizada uma Conferência Internacional da Mulher. Encontros dessa envergadura são capazes de abrir efetivas condições para a quebra de novos elos na gigantesca engrenagem que aprisiona a mulher, em extensas áreas geográficas, sociais, profissionais e culturais, a figurinos de concepção morbidamente machista. Quantas dezenas de eventos iguais, na estrutura e aspirações, se farão necessários ainda, ao longo dos tempos, para facilitar-lhe o acesso por inteiro a direitos naturais, independentemente de sexo, inerentes à condição humana? Alguém poderá argumentar que se está a falar, na verdade, de direitos não desfrutados na integralidade pela grande maioria dos seres humanos. Perfeito. Mas, não há como negar que, também no desfrute dos direitos, a força invasora masculina chegou primeiro e se apoderou dos melhores pedaços nos espaços liberados.

Oceano de problemas

Embora estejam sendo significativos os avanços em conquistas associadas ao desenvolvimento pessoal da mulher, fruto da expansão da consciência coletiva quanto à verdadeira natureza do papel que toca a cada cidadão desempenhar no fascinante e complexo jogo da vida, existe ainda por aí um oceano inteiro de problemas a ser navegado na busca das soluções compatíveis com a dignidade humana.

É chegada a hora de colocar alguns itens do dia-a-dia nas reflexões. Homem divorciado e mulher divorciada. Homem adúltero e mulher adúltera. Têm, eles, as posturas avaliadas pela sociedade dentro de uma mesma ótica crítica? Desloquemo-nos para o capítulo dos métodos contraceptivos: alguém sabe dizer se o número de vasectomias equivale aos de ligaduras das trompas? E a pílula masculina? Já foi lançada? Se lançada, vai pegar rápido?

Em Estados do Nordeste, segundo denúncia da CNBB, existiam até bem pouco tempo processos de esterilização de mulheres pobres, sem que elas estivessem inteiradas do que se lhes acontecia. Algo inspirado em perversos esquemas importados da China, Índia e outros lugares. Outra denúncia da CNBB: existem penitenciárias – lugares em que já se vive tragédia inimaginável - onde as mulheres costumam se deparar com uma penalização extra. Na falta de absorventes femininos, utiliza-se miolo de pão. Hoje, a mulher já conquistou na maior parte dos países, seu espaço no mundo artístico. Não era bem assim antes. Artista e “rapariga”, para ficar com expressão mais branda, constituíam, na visão estrábica de muita gente, o verso e o reverso de uma mesmíssima moeda.

Por volta de 1580, Montaigne dizia que “a ciência e ocupação mais útil para a mulher é o governo de casa”. A grande maioria pensava assim. Tem gente que ainda pensa. Gente que não acaba mais. Homens e mulheres a procederem na lida cotidiana que nem se fosse o pessoal lá da rua da meninice. As janelas ficam trancadas e figuras espectrais se põem a acompanhar, com tiques paranóicos, pela fresta da janela, usando candeeiro para aguçar a visão, o esfuziante processo que corre solto lá fora em favor da emancipação feminina. Fazem ouvidos moucos a justos clamores nascidos do inconformismo, da inteligência e da sensibilidade diante dos paradigmas rígidos bolados pelo farisaísmo na avaliação do comportamento feminino. Paradigmas engessados no tempo. Para pessoal tão retrógrado têm a mesma inexpugnável consistência das muralhas incas de Machu Pichu. Esse tipo de gente não consegue enxergar que se trata de paradigmas irremediavelmente condenados pela doença letal de “certezas” trazidas de momentos obscurantistas que já se imaginava sepultados na voragem da história.

Briga braba e barulhenta

A briga pela derrubada de tais paradigmas é braba e barulhenta. São ainda fortes os ecos de certas palavras de ordem procedentes de eras remotas, sintetizadas na frase padrão: “Lugar de mulher é em casa”. Os preconceitos vigorantes apresentam, em muitos lugares, é bem verdade, efeitos atenuados em matéria de violentação à personalidade, se comparados com as inacreditáveis situações vividas em tempos antigos e em outros lugares de nosso próprio tempo. Mas conservam vestígios culturais rançosos, ainda que longínquos, daquelas épocas absurdas em que algumas coletividades aprendiam a absorver, em suas regras de vida e crenças, a idéia, por exemplo, de que a mulher não possuía alma. Ou de que, no plano dos sagrados deveres conjugais, como amorosa e dedicada esposa, devesse se preparar para fazer jus ao prêmio máximo da loteca dos deuses, consentindo em que a enterrassem viva com os pertences e despojos do pranteado marido, senhor seu amo, quando de sua (dele) partida desta para melhor.

Desfile de absurdos

Todos estamos seguros de que provêm de visualização desfocada da realidade, mesclada com flagrante injustiça social, os escandalosos problemas levados a debate pelas representações presentes aos conclaves promovidos periodicamente pela ONU. Ou por outras instituições das muitas que se ocupam benfazejamente dessa tormentosa discussão. O desfile de absurdidades é sempre composto de revelações sobre práticas escravagistas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, processos de mutilação sexual, restrições ao acesso no mercado de trabalho a cargos e promoções, falta de oportunidades iguais às concedidas aos homens nas ações e decisões políticas, nos campos técnico e científico, no desfrute de bens educacionais. Coisas assustadoramente consentidas às vezes em nome de rançosos argumentos religiosos. E por aí vai. Os registros dão conta de que mesmo em países desenvolvidos, as políticas de salários revelam-se desiguais. A média da remuneração da mulher situa-se abaixo da metade da média da remuneração do homem. As possibilidades de ingresso em empregos, nesse mesmo tipo de confronto, são de 61% no Japão, 58% na Holanda e 16% nos países árabes. Sabe-se, ainda, que de 1,2 bilhão de pessoas que vivem em estado de pobreza absoluta (renda inferior a 370 dólares/ano), setenta por cento são mulheres. Outro levantamento revelador diz respeito às chances de participação no poder. As mulheres ocupam 20 por cento dos cargos de direção, algo equivalente nos chamados postos ministeriais. Tem mais: meio milhão de mulheres (99% do Terceiro Mundo) morrem, anualmente, vitimadas por patologias vinculadas à maternidade.

Não há como ignorar, por outro lado, o tratamento diferenciado, de modo geral desrespeitoso, com que a mídia, acionada por preconceitos milenares dominantes no inconsciente coletivo, se ocupa do fato trivial de uma mulher que, no exercício de função pública, resolva assumir ostensivamente um caso afetivo. A derrama noticiosa que isso suscita, vou te contar...

Está na cara que esses dados não esgotam o temário difícil e, sob incontáveis aspectos, doloroso da problemática enfrentada pela mulher. Mas servem para dimensionar as perturbadoras circunstâncias que envolvem essa questão prioritária no processo da construção humana. O Banco Mundial anota algo supra importante: “A desigualdade entre os sexos paralisa a produtividade e dificulta o crescimento econômico.”

Há avanços respeitáveis

Há avanços e respeitáveis. Há que celebrá-los. Mas os problemas continuam sendo de grande monta. As estruturas modernas ampliaram a faixa dos direitos, previdenciários, sociais. Persistem, todavia, ainda numerosos, difíceis obstáculos a serem transpostos. A sociedade rodeia de manifestações simpáticas, em boa parte das vezes da boca pra fora, a trajetória feminina. São manifestações poéticas, do tipo “Tirante a mulher, o resto é paisagem” (Dante Milano, 1898); com palavras que exprimem bons propósitos, mas que não são colocadas em prática, pelo menos em sua extensão ampla, como “A mulher é a grande educadora do homem”  (Anatole France, 1900); ou de exaltação terna e lírica, como “Mulher é uma graça, espanta melancolias e consola mágoas” (Livro dos Cantares). Apesar disso, o mundo continua a girar com suas imperfeições atávicas e com seus amalucados preconceitos e discriminações contra a mulher.

Mudanças são difíceis

Sabemos não ser nada fácil mudar as coisas. Numa passagem do clássico cinematográfico “O Leopardo”, estrelado por Burt Lancaster, o personagem central aconselha os nobres italianos, seus súditos, apavorados diante da ameaçadora chegada de Garibaldi ao poder, a que “mudassem alguma coisa, para não mudar coisa alguma”. A história das conquistas sociais costuma revelar que o Príncipe Salinas, o dito cujo personagem, podia ser um tremendo dum cínico, mas como entendia das imperfeições da alma humana, meu Santo Onofre!

O Papa João XXIII tinha razão. A batalha pela emancipação feminina é uma das mais importantes revoluções dos tempos modernos. Mas há muitas coisas ainda para serem feitas. Algumas óbvias, por demais. Aparentemente, banais. Mas de tremenda relevância na vida prática. Passam ao largo das preocupações rotineiras. A mulher do lar, em todos os segmentos sociais, precisa saber um pouco mais sobre os negócios do marido. As mulheres superprotegidas e complacentes do figurino tradicional se defrontam, no caso de viuvez, com cada problema! O mundo costuma desmoronar em horas que tais. Ela pensa que o marido cuidou de tudo, enquanto vivo. Vai ver, não cuidou nada. As apólices de seguro deixadas são de acidentes pessoais e ele morreu de infarte. Nunca se interessou por planos de complementação de aposentadoria. Não facilitou o acesso da cara-metade às transações que realizava, aos investimentos, às dívidas contraídas em nome da comunidade familiar. A realidade a enfrentar, em momentos assim, pode acabar sendo cruel para a viúva.

A quantas andamos

A quantas, nessa palpitante matéria dos direitos femininos, andamos em Lions? Alvíssaras! Já temos entre nós companheiras leão.

Posso confessar-lhes um receio? Vamos cuidar de exorcizar nosso ambiente para impedir que o tradicional preconceito machista, que rege tanta coisa na rotina social, possa entender, em dado momento, de distinguir “domadoras” de “companheiras leão”, como se isso pudesse fazer algum sentido. Em minha visão, uma e outra são rótulos diferentes de uma mesmíssima realidade. O que conta é a essência. E a essência do trabalho leonistico está consubstanciada na prática da solidariedade, do amor ao próximo, do companheirismo. O resto é o resto. Vivê-la com intensidade é um dever e um direito.

Anotem, por favor. Como sei que prevalece, no meio feminino, um apego muito grande à discrição, ao contrário do que o machismo tem por costume propalar por aí, vou contar-lhes um segredo. Em minhas observações de muitos anos, cheguei à conclusão, definitiva e inabalável, de que as mulheres, em Lions, como noutras instituições, trabalham muito mais e com bem maior eficiência do que os homens.

É bom que se diga, por derradeiro, que os problemas enfocados ou intuídos nesta descolorida exposição, antes de serem problemas exclusivamente da mulher, são problemas do ser humano. Quanto mais convicções individuais de sentido renovador puderem se reunir à volta de constatações óbvias como estas, maiores se tornarão as possibilidades de podermos, algum dia, todos juntos, construir um mundo melhor. Um mundo bem melhor para mulheres, homens, crianças, adultos, pretos, brancos, amarelos, árabes, judeus, sãos, enfermos, cristãos, budistas, maometanos, pobres, ricos, remediados e excluídos.

Mulher e negra

Quero deixar, registrados, ao final, um anseio e uma interrogação.
O anseio: assistir a disputas para governador de Lions só entre mulheres. (O anseio já se fez realidade).

A interrogação, danada de instigante: e se, de repente, no dia do Juízo, lá em cima, na hora crucial e decisiva da prestação de contas dos atos praticados em nossa peregrinação pela pátria dos homens, cara a cara com o Todo Poderoso, carregando bem nítida a imagem que Dele conservamos em função de amadurecidas convicções religiosas, e se nessa hora precisa, a gente descobrir, embargado pela estupefação, que Deus é mulher e negra? E então?

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

sexta-feira, 11 de março de 2011

Kaddafi, antes e depois

Cesar Vanucci *

“O povo me ama!”
(Muamar Kaddafi, num delírio megalomaníaco)

Folheio os jornais e constato que Muamar Kaddafi vem sendo classificado, agora, de megalomaníaco e sanguinário, pra ficar nos rótulos mais brandos. Mas, pera lá, quem conhece um tiquinho só da história das atrocidades cometidas por esse beduíno fanático que, há 42 anos, comanda com pulso de ferro a Líbia, sabe que ele nunca, jamais, em tempo algum, deixou de ser megalomaníaco e sanguinário, além de  outras coisas mais, aterrorizantes por igual.

Tem mais, muito mais: durante os anos 90, as grandes potências, com a sempre prestimosa cumplicidade da mídia internacional, apontavam esse déspota como um inimigo da humanidade. Em consequência de seu escancarado apoio a facções terroristas de diferentes feições, a Líbia tornou-se alvo de pesadas sanções econômicas e políticas. Houve momento até, no governo Ronald Reagan, que a Força Aérea estadunidense bombardeou locais onde se presumia o ditador libio estivesse abrigado, em represália a atentados praticados sob suas ordens que fizeram centenas de vítimas inocentes.

De repente, as conturbadas relações do complicado e truculento país árabe com o resto do mundo passaram por espantosa metamorfose. Pacto celebrado na moita com os Estados Unidos e Inglaterra, em troca de algumas “concessões” do tirano libio, garantiu a sua “reabilitação”, com a retirada de seu nome e estampa da lista dos mais notórios malfeitores da civilização contemporânea, com a ajuda mais uma vez solícita dos canais de comunicação. Comprometendo-se a por cobro nos programas de expansão de armas de alto poder destrutivo e concordando na entrega a tribunais internacionais de elementos envolvidos em atentados terroristas contra aviões de passageiros, Kadafi obteve de seus arquiinimigos um atestado de bons antecedentes autenticado e com firma reconhecida. Isto permitiu-lhe sair do isolamento a que esteve condenado, por algum tempo, no plano internacional. Livrou-se, também, de incômodas “cobranças externas” insistentes, sobretudo dos meios de comunicação, a proposito das felonias habitualmente cometidas em sua jurisdição feudal. Passou de abominável terrorista a aliado importante no combate ao terrorismo. Recebeu a visita de personagens ilustres dos países com os quais se reconciliou. Foi recebido, por outro lado, nesses países, sem abrir mão de suas excêntricas posturas, com inimagináveis rapapés e mesuras nobiliárquicas. Em contrapartida, assegurou condições especiais para o ingresso na exploração de petróleo e gás em território libio a empresas indicadas pelos zelosos fiadores de sua conversão aos padrões do bom mocismo. Aceitou, também, que em seu país se instalasse um dos centros clandestinos de detenção de pessoas supostamente vinculadas a movimentos terroristas. Uma versão árabe, digamos assim, de Guantanamo.

No preciso momento em que estas considerações estão sendo expendidas, o ditador libio vê-se às voltas com uma insurreição popular. Até aqui a mais prolongada e a mais feroz desse tsunami por mudanças, queira Deus, democráticas que estremece o mundo árabe. Volta a ser reconhecido pelos que “acreditavam” sinceramente em sua “regeneração”, como mostram as manchetes, como o inimigo da humanidade que nunca, na verdade, por um instante sequer, deixou de ser.

Todo mundo almeja, obviamente, sua queda, para que o planeta fique livre de mais um ditador sanguinário. Os viventes de boa memória não conseguem se esquecer de que a história de Kaddafi guarda muitos pontos de similitude com as histórias dos não menos sinistros Sadam Hussein e Osama bin Laden.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

A musa não sabia


Cesar Vanucci *

“Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça...”
(Versos da melodia “Garota de Ipanema”, de Tom e Vinicius)

Estas maldatilografadas de hoje seguem a mesma linha dos artigos “Testemunho implacável” e “Esoterismo nazista”, onde focalizei momentos da historia menos conhecidos, extraídos de livros lidos e relidos. Ocupa-se de caso assaz interessante, ignorado pelo distinto público, embora envolva personagens e criação artística célebres. Quem conta é o escritor Rui Castro. O tema distingue-se dos relatos anteriores pela feição lírica e amena.

A musa inspiradora dos brejeiros versos e ternos acordes só se deu conta de ser a jovem do “doce balanço a caminho do mar”, retratada em “Garota de Ipanema”, anos depois de a imortal composição dos geniais Tom Jobim e Vinicius de Moraes já haver emplacado como estrondoso sucesso mundial. Sucesso, aliás, em se falando de música popular brasileira, comparável ou há até quem diga superior, em matéria de vendagem de discos, ao segundo “hino nacional” do país. “Aquarela do Brasil”, do não menos genial Ari Barroso.

Heloisa Eneida Menezes Paes Pinto, Helô pra confraria dos amigos, estava com quinze anos em 1962. Chamava atenção pela beleza e graça, quando desfilava, segundo o jornalista Rui Castro, não apenas a caminho do mar, “mas a caminho também do colégio, da costureira e até do dentista.” Os compositores acompanhavam seu gingado com jeito de poema da mesa de um bar famoso em Ipanema, então chamado “Veloso”, mais tarde rebatizado com o nome da música.

No livro “Chega de Saudade”, Rui Castro, mineiro de Caratinga, craque de seleção no jornalismo, exímio contador de casos, relata com excepcional bom humor, ricos achados literários e fidedignidade aos fatos, ancorado em exaustiva pesquisa e centenas de depoimentos, “a História e as histórias da bossa nova”.

Vai daí lhe ocorrer encaixar, a páginas tantas, uma revelação surpreendente pra muitos: a garota de Ipanema só foi devida e oficialmente notificada da reverente admiração que provocava à sua passagem quando já “de maior”. Para sermos mais exatos: em 1965, três anos após o estrepitoso lançamento da música. Mas pra ficar sabendo mesmo de como tudo realmente rolou e de outros esclarecimentos sugestivos ligados à bela composição o melhor é passar a palavra para o próprio Rui Castro. Página 316 da alentada e saborosa obra mencionada: “Já foi dito, mas as pessoas não se conformam. Tom e Vinicius não fizeram “Garota de Ipanema” no bar que se chamava Veloso e que hoje se chama “Garota de Ipanema”, na rua que era Montenegro e que hoje é Vinicius de Moraes, esquina com Prudente de Moraes (nenhum parentesco). Nunca foi do estilo da dupla escrever música em mesas de bares, embora eles tenham investido nelas as melhores horas de suas vidas.”

Jobim, prossegue o escritor, compôs a melodia em casa, pensando em utilizá-la numa comédia musical. Vinicius cuidou da letra em Petrópolis. O nome da música, a princípio, seria outro, “Menina que passa”. A primeira parte dos versos era também diferente. Canção pronta, Pery Ribeiro, Tamba Trio e Claudete Soares lançaram-na em aplaudidas gravações.  Em 63, Tom também colocou-a em seu primeiro disco nos Estados Unidos. Dali pra frente, o mundo inteiro se empolgou com a melodia, divulgada em centenas de gravações.

Rui Castro retomando a palavra: “A garota Helô assoviava diariamente a canção (...), sem saber que tinha sido a sua musa. (...) Somente três anos depois, em 1965, quando Helô já tinha dezoito anos e estava de casamento marcado, é que Tom e Vinicius lhe revelaram – e à (...) imprensa – quem ela era. Houve então um corre-corre, que criou um misto de orgulho e desconforto no general (parênteses para esclarecer que o pai da garota era general “linha dura”) e no noivo: todos queriam conhecer a coisa mais linda e mais cheia de graça.”

Helô, revela-se ainda no livro, foi convidada para posar com roupa de normalista na campanha de divulgação do quarto centenário do Rio. Chamaram-na também para estrelar um filme. “Garota de Ipanema”, claro. Não aceitou nenhum dos convites. O pai e o noivo interferiram na decisão. “A canção continuou – anota o jornalista – despertando fantasias universais a respeito da mítica garota”. Até que, 25 anos depois, na edição de maio de 1987, a “Playboy” conseguiu escalar a musa de Jobim e Vinicius numa incrementada reportagem fotográfica de capa.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

Um clangor de emoções

Cesar Vanucci *

“A Aquarela do Brasil se transformou,
na realidade, em símbolo do país.”
(Antonio Olinto, escritor)

Que a “Aquarela do Brasil” reboa por este mundo do bom Deus afora como uma espécie de símbolo vivo de nosso país é alguma coisa que, mexendo fundo com nossa ufania, todos sabemos de sobra. O clangor de emoções, repetindo expressão do próprio Ary Barroso, injetado na belíssima composição musical oferece um retrato sonoro impecável de um Brasil bem brasileiro. Um Brasil bem ao jeito do sentimento nacional que o incomparável musicista, personagem de presença marcante também na cena pública de seu tempo, procurou sempre manter aceso nos trabalhos realizados em diferentes áreas de atuação.

Retiro da estante um livro de saborosa leitura, do acadêmico Antonio Olinto, ubaense que nem o ilustre biografado, onde a história da paixão de Ary pela vida é magistral e didaticamente narrada. O leitor é brindado com um mundo de revelações surpreendentes, algumas confirmando essa condição simbólica adquirida pela melodia. Ali se conta, por exemplo, algo que quase ninguém – mesmo entre os admiradores fervorosos de todas as gerações desse gênio da raça – conhece a respeito de como foi concebida a “Aquarela”.

Olinto explica que tudo aconteceu na noite de 28 de fevereiro de 1939. “Chovia muito, não dava para sair e ir ao encontro de amigos.” A prosa com familiares, Ivone, a esposa entre eles, escorria de forma mansa. “De repente, Ary ficou silencioso, sem olhar para pessoa alguma na sala, interrompeu uma resposta que dava à mulher, levantou-se e foi ao piano.” O que rolou na sequência foi acompanhado do respeitoso silêncio dos circunstantes e do barulho externo da água caída do céu. Na base da “inspiração súbita, uma inspiração de apaixonado”, a “Aquarela do Brasil” foi tomando forma nos acordes e na voz de Ary, até nascer por inteiro, “música e letra de uma só vez.”

O escritor Antonio Olinto reproduz no relato biográfico um depoimento do compositor ao antigo “Diário de Notícias”, do Rio, sobre aquele mágico instante. Trecho do depoimento: “O ritmo original, diferente, cantava na minha imaginação, destacando-se do ruído forte da chuva, em batidas sincopadas de tamborins fantásticos (...) De dentro de minha alma, extravasava um samba que há muito desejava, um samba que, em sonoridades brilhantes e fortes, desenhasse a grandeza, a exuberância da terra promissora.”

Outro lance fantástico, igualmente do desconhecimento geral, vivido naquela memorável noite. Depois de ingerir um bom vinho, Ary retornou às teclas do piano e, novamente, em verdadeiro estado de graça, botou pra fora, com todo o imenso talento que Deus lhe deu, outra obra-prima de seu extraordinário repertório, composto de meio milhar de canções. Título da melodia: “Três lágrimas.”

Voltando à “Aquarela”. Ela foi consagrada, em votação nacional nos idos de 90 como a melhor música popular brasileira de todos os tempos. Virou símbolo. Um segundo hino nacional, mesmo!

O biógrafo de Ary Barroso recorre, a esse propósito, a uma cena emblemática da qual foi testemunha. Aconteceu em Londres, mais precisamente no departamento de literatura da Universidade. “Eu acabara de fazer uma conferência – relata – sobre a literatura brasileira contemporânea. (...) Um dos professores começou a comentar sobre qual seria o mais belo hino nacional do mundo e apresentou logo sua escolha: - É a “Marselhesa”.
- Nada disso, contestou outro. É a “Internacional” da Rússia.
Um inglês de vastos bigodes deu sua opinião: - É o inglês, sem a menor dúvida.

Um aluno de literatura (...) disse então com toda a convicção (...): - Vocês estão (...) enganados. O mais belo hino nacional do mundo é o brasileiro.”
Olinto mais do que depressa pediu explicação adicional ao autor da preciosa observação. A resposta do universitário foi de que não só achava o hino brasileiro o mais belo do mundo, como sabia cantá-lo de cor. E sapecou: “Brasil, meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro...”

O escritor, felicíssimo com a inesperada manifestação, colocou o jovem e demais pessoas presentes a par de que aquela música era a “Aquarela do Brasil”, não o Hino Nacional Brasileiro. Um extraordinário samba feito por Ary Barroso.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

sexta-feira, 4 de março de 2011

Anseios ardentes




Cesar Vanucci *

“Sem essa de ditadura melhor
ou de ditadura pior. Nenhuma ditadura presta.”
(Antônio Luiz da Costa, professor)

Os anseios dos autênticos democratas no mundo inteiro, tão ardentes quanto as areias do interminável deserto do Saara, são no sentido de que a misericórdia de Alá poupe o povo egípcio da praga de uma nova ditadura. As ameaças de que algo tão insano possa vir a ocorrer não devem ser descartadas assim sem mais nem menos. O clamor libertário que invadiu as ruas e continua a sacudir as estruturas feudais do mundo árabe corre algum risco de se ver, de repente, sufocado pela voragem de acontecimentos situados à deriva da vontade majoritária das populações inconformadas.

A sociedade egípcia sempre viveu sob a guante do despotismo. O regime que se sucedeu à monarquia caquética do rei Farouk assumiu, de princípio, posições nacionalistas que insuflaram o orgulho árabe. Mas não abriu mão, em instante algum, de conservar sob severo controle todo tipo de manifestação da sociedade, reprimindo com virulência protestos e discordâncias. O autoritarismo de Nasser foi absorvido como legado valioso por Sadat e, depois, transferido a Mubarak. A Junta que hoje detém o comando do país representa o poderoso braço militar que garantiu, ao longo (e bota longo nisso) de todo esse tempo, a sustentação do sistema repudiado nessa avalancha de insatisfação popular.

Muitos analistas alimentam, à vista disso, temores de que as promessas de mudanças não se concretizem de imediato, como desejado. O anúncio de algumas reformas sem se avançar na essência dos problemas poderia ser feito com o maroto propósito de não se fazer reforma fundamental alguma. O que acabaria subsistindo, nessa hipotética amarga alternativa, seria apenas uma mera troca de guarda, com os detentores do poder esmerando-se em arranjar denominação diversa, nos atos praticados, para procedimentos detestáveis herdados dos antecessores.

Outra ameaça potencial que os democratas temem, na heróica luta movimentada com fervor e pureza de intenções por parcelas majoritárias da sociedade egípcia, consiste no apetite voraz pela conquista do poder que embala grupos fundamentalistas radicais islâmicos. Esses grupos integram a frente popular que clama nas praças públicas pelas reformas. A visão retrograda que os membros desses segmentos fanatizados têm das coisas do mundo acena fatalmente com o advento de uma era trevosa, caso se viabilizasse a hipótese, altamente indesejável, de conseguirem galgar, por alguma distorção do processo em marcha, o comando político do país.

As avaliações que se tem do perturbador contexto político egípcio se encaixam também na realidade política vivida pelos demais países do convulsionado mundo árabe. A expectativa dos amantes da paz e dos adeptos da causa democrática é de que o movimento mudancista, de características genuinamente populares, que tomou as ruas árabes saiba impor suas regras e emergir amplamente vitorioso dos debates ora  travados a respeito dos rumos a serem trilhados. E que deixe claramente explicitada sua vigorosa postura, antagônica a qualquer manifestação de tendência totalitária que pinte no pedaço.

Das grandes potências o que se aguarda é que se abstenham do frenético afã de garantir alianças de duvidosa eficácia em suas estratégias geopolíticas. Que quebrem a regra de estimular ações que se interponham ao andamento normal do processo de formação das estruturas democráticas almejadas pela maioria. Uma lição que precisa ser aprendida vez por todas: firmar acordos com governos legitimamente constituídos é o melhor meio de se preservar a paz e de se trabalhar pelo bem estar humano.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

Hipnose e terapia

Cesar Vanucci *

“São muitas as terapias alternativas
 a serem ainda inseridas no arsenal da medicina.”
(Antônio Luiz da Costa, professor)

Intriga-me há décadas a inexistência, fácil de comprovar, de interesse maior por parte do sistema médico de assistência, no tocante às possibilidades de emprego da hipnose em larga escala, como eficiente instrumento terapêutico. A curiosidade de repórter conduziu-me, já há algum tempo, à constatação tranquila de que o processo hipnótico, conduzido por pessoal qualificado, costuma funcionar admiravelmente bem. Proporciona certeiramente benefícios às pessoas que, superando resistências nascidas de preconceitos, se animem a utilizá-lo.

À vista de tal convencimento, celebrei como avanço significativo uma notícia relativa a experiências com hipnose que vêm sendo feitas nalguns centros médicos objetivando o alívio das dores e mal estar provocados pela quimioterapia em pacientes oncológicos. Não consegui, a bem da verdade, captar a informação por inteiro, só fragmento dela. Mas o que deu pra ouvir, num programa de tevê recente, já foi de razoável tamanho, representou um bom sinal. Um indicador de que o preconceito, a restrição, ou outro nome qualquer que se dê a essa postura de não aceitação da hipnose como fórmula coadjuvante em tratamento da saúde, podem vir a ser definitivamente quebrados. Como aconteceu, aliás, em tempos não tão distantes, com a acupuntura. Uma técnica terapêutica milenar conservada também por largo período numa inexplicável “quarentena”, embora, mesmo ainda hoje, não seja processada com a intensidade e extensão recomendáveis, levados em conta os efeitos positivos que comprovadamente propicia.

Mas o caso a festejar é que a hipnose começa, pelo visto, a desbravar caminhos. Começa a ser visualizada, por muitos na esfera científica, como instrumento terapêutico e não mais como um mero exercício exótico de consequências penumbrosas e, de certo modo, amedrontadoras. É o que acabará acontecendo também, mais cedo ou mais tarde, com outras modalidades de ações preventivas e curativas ancoradas em aplicações de energias sutis. Energias essas, também, até aqui, mantidas à margem das cogitações nos círculos científicos ortodoxos, seja como material substancioso de estudo, menos ainda como hipótese de trabalho.

Trago aqui, como fruto de observações pessoais, contribuição singela ao debate que porventura possa ser suscitado por essa revelação concernente ao emprego da hipnose na área oncológica. Travei conhecimento bem de perto com a surpreendente e singular capacidade de algumas pessoas especiais na lida com as chamadas energias sutis. A hipnose entre elas. De uma dessas pessoas guardo lembranças imorredouras. Uma criatura extraordinária. Sabedoria incomum, cultura fulgurante. Hábitos franciscanos, em vivência encharcada de apostolicidade. Soberbo orador. Fala eletrizante, fustigante se preciso, no tom, tamanho e hora certos, adequada ao momento, à platéia, à faixa etária, ao ambiente cultural.

Estou falando de um certo Dom. Alexandre Gonçalves Amaral, Arcebispo de Uberaba, falecido em 2002, lidava admiravelmente bem com essas energias. Os resultados dessa lida, que soavam desconcertantes em ambientes leigos, ele os situava nos domínios da ciência pura. Passo a contar algumas (das numerosissimas) intervenções por ele feitas tendo por base sua condição de hipnotizador. A esposa do escritor e jornalista Mário Salvador, ex-presidente da Academia de Letras do Triângulo Mineiro, estava atacada há anos de bursite. “Injeções, aplicações e mil coisas não vinha dando resultado”, relata o próprio Salvador. Alexandre ofereceu-se para resolver o caso. Hipnose seguida de toques na parte afetada. Poucos minutos de aplicações foram suficientes para debelar o mal. “Nunca mais – o escritor ainda com a palavra – a bursite amolou a patroa.” O mesmo Salvador reporta-se ao ocorrido com uma filha, também levada a submeter-se a transe hipnótico. A garota tinha pavor de barata. “Posso fazer com que ela perca o medo”, asseverou Alexandre. Dito e feito. A “aversão ao bicho” acabou de um dia para o outro.

Eu, por minha vez, testemunhei cenas em que pessoas hipnotizadas por Alexandre permaneciam suspensas entre duas cadeiras, a cabeça de um lado, os pés do outro, o corpo enrijecido no vácuo, suportando mesmo que fossem franzinas carga de peso inacreditável. Testemunhei igualmente o caso de uma freira dominicana com inchação descomunal na face, às voltas com dolorosa infecção dentária que lhe arrancava gemidos ao mais leve sopro de vento. Alexandre acompanhou-a para atendimento no consultório odontológico do dr. Adão Champs, em Uberaba. Sob efeitos da hipnose, a religiosa foi submetida a tratamento complexo, que se arrastou por um bocado de tempo e que à primeira vista parecia desprovido de qualquer viabilidade. A paciente não esboçou o menor sinal de reação dolorida no curso do extenuante processo. Melhor de tudo: deixou a cadeira do dentista liberta do mal que a agoniava.

É isso ai, gente boa. Hipnose é coisa importante.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)



CONVITE AOS LEITORES


Convido, agora, os frequentadores deste Blog a lerem o magistral texto de Frei Beto, abaixo transcrito, publicado no “Estado de Minas” do último dia 3 de março.

“É carnaval em mim

Frei Beto *

Neste carnaval, anseio por folias interiores, de maravilhas indescritíveis, de sinuosos alaridos, de magnificências a dispensar ruídos e palavras. Quero toda a avenida regida por inequívoco silêncio, o baile imponderável em gestos rituais, a euforia estampada em cada sorriso.
Rasgarei a fantasia de minhas pretensões e, despido de hipocrisias, deixarei meu eu mais solidário desfilar alegre pelas recônditas passarelas de minha alma.
Fecharei os ouvidos à estridência dos apitos e, mente alerta, escutarei o ressoar melódico do mais íntimo de mim mesmo. Deixarei caírem as máscaras do ego e, nas alamedas da transparência, farei desfilar, soberba, a penúria de minha condição humana.
Aplaudirei os sambistas com fogo nos pés e as mulatas eletrizadas pelo ritmo da batucada. Mas não me deixarei arrastar pelo bloco da concupiscência.
Inebriado pelo ritmo agônico da cuíca, serei o mais iconoclasta dos discípulos de Momo, recolhido ao vazio de minha própria imaginação.
Neste carnaval, serei figurante na escola da irreverência e desfilarei pelas ruas meu incontido solipsismo, até cessar a bateria que faz dançar os fantasmas que me povoam. Envolto na desfantasia do real, atirarei confetes aos foliões e perseguirei os vôos das serpentinas para que impregnem de colorido as diatribes de meu ceticismo.
No estertor da madrugada, farei ébrias confidências a Colombina e, Arlequim apaixonado, ofertarei as pétalas que me recobrem o coração. Não porei olhos no desfile da insensatez, nem abrirei alas à luxúria do moralismo. Quando a porta-bandeira desfraldar encantos, ficarei ajoelhado na ala das baianas para reverenciar o Almirante Negro.
Ao eco dos tamborins, esperarei baixar a sofreguidão que me assalta, buscarei a euforia do espírito no avesso de todas as minhas crenças, exibirei em carros alegóricos as íngremes ladeiras da montanha dos sete patamares. Darei vivas à vida severina, riscarei Pasárgada de meu mapa e, ainda que não me chame Raimundo, farei da rima solução de tantos impasses neste devasso mundo. Expulsarei de meu camarote todos os incrédulos do pai-nosso cegos aos direitos do pão deles.
Revestido de inconclusas alegorias, sairei no cordão das premonições equivocadas e, vestido de Pierrô, aguardarei sentado na esquina que a noite se dissolva em epifânica aurora.
Ao passar o corso da incompletude, abrirei as gaiolas da compaixão para ver o céu coberto pela revoada de anjos. Trocarei as marchinhas por aleluias e encharcarei de perfume os monges voláteis incrustados em minhas imprudências.
Olhos fixos no esplendor das batucadas siderais, contemplarei o desfile fulgurante dos astros na Via Láctea. Verei o Sol, mestre-sala, inflamar-se rubro à dança elíptica da cabrocha Terra. Se Deus der as caras, festejarei a beatífica apoteose.
No cortejo dos Filhos de Gandhy, evocarei os orixás de todas as crenças para que a paz se irradie sobeja. Do alto do trio elétrico, puxarei o canto devocional de quem faz da vida a arte de semear estrelas.
Entoado o alusivo, darei o grito da paz, pronto a fazer da comissão de frente o prenúncio do inefável. No reverso do verso, cunharei promissoras notícias e, no quesito harmonia, farei a víbora e o cordeiro beberem da mesma fonte.
Meu enredo terá a simplicidade de um haicai, a imponência de um poema épico, a beleza das histórias recontadas às crianças. De adereços, o mínimo: a felicidade de quem pisa os astros distraído.
Farei da nudez a mais pura revelação de todas as virtudes; assim, ninguém terá vergonha de mostrar o que Deus não teve de criar, e a culpa será redimida pelo amor infindo. A rainha da bateria virá tão bela quanto a vitória-régia pousada numa lagoa despudoramente límpida. Sua beleza interior suscitará assombro.
A evolução da escola culminará em revolução: a fantasia se fará realidade, assim como o sertão há de vir amar e o mar de ser tão pelegrinamente pão do espírito.
Neste carnaval, não haverei de me embriagar de etílicos prazeres nem me deixarei arrastar pelos clóvis a disseminar o medo entre alegrias. Irei aos bailes rituais e me submeterei às libações subjetivas, ofertarei ao mistério cálices de clarividências e iluminuras gravadas em hóstias. Enclausurado na comunhão trinitária, ingressarei na festa que se faz de fé e na qual toda esperança extravasa no amor que não conhece dor. Então, a palavra se fará verbo, o verbo, carne, e a carne será transubstanciada em festival perene – carnaval.”

Frei Betto é escritor e autor, em parceria com Marcelo Barros, de O amor fecunda o universo – ecologia e espiritualidade (Agir), entre outros livros.
www.freibetto.org – twitter:@freibetto

A SAGA LANDELL MOURA

Uma mulher rodeada de palavras

                             *Cesar Vanucci “Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania de ter fé na vida” (verso da canção “M...