quarta-feira, 29 de março de 2017

Trump, Moonlight 
e La La Land

Cesar Vanucci

“Trump, mesmo não compondo o corpo de jurados,
teve influência marcante no resultado do Oscar”.
(Antônio Luiz da Costa, educador)

Confesso, em lisa verdade, nada ter lido ou ouvido, de qualquer fonte qualificada, a respeito da hipótese aqui agora levantada. Mas, não me surpreenderei nadica de nada se, numa dada hora, inesperadamente, pintar no pedaço a revelação de que a incrível trapalhada produzida ao vivo e em cores, para centenas de milhões de espectadores, ao ensejo da entrega do “Oscar”, foi fruto de calculada e ousada marquetagem. Sacumé, no mundo dos negócios do entretenimento de alta rentabilidade prevalecem, não poucas vezes, razões que a própria razão desconhece...

Na semana que antecedeu a noitada de gala marcada pela histórica gafe, assisti várias fitas selecionadas pelo corpo de jurados de Hollywood na disputa das estatuetas. Entre elas, o badalado “La La Land”. Da lista apontada só ficou faltando, pra ser visto, o “Moonlight”, que acabou, como sabido, no frigir dos ovos, arrebatando o troféu mais cobiçado entre as premiações. Animei-me a ver o filme logo no dia seguinte.

“Moonlight – Sob a Luz do Luar” é uma película danada de instigante. Propõe o estudo de um personagem que atravessa fases da vida sufocado por repressões culturais e mundanas. A construção da história desenrola-se de forma talentosa, dentro de moldura estética apreciável e com razoável sensibilidade poética. O enredo é todo ambientado em cenário onde predominam vivências e sinais culturais de uma comunidade negra inserida no contexto urbano estadunidense. Cabe sublinhar, a esta altura, que a produção foi toda concebida em moldes que pudessem repassar às plateias a ideia de uma cinematografia pujante derivada do mundo artístico constituído por figuras exponenciais de descendência negra. Diretor, autores, atores, técnicos, gente detentora de reconhecida capacidade profissional e inegáveis dons artísticos, foram recrutados na comunidade afro-americana para integrar o elenco e ocupar os postos relevantes da ficha técnica do espetáculo. O intuito visível parece ter sido o de uma proclamação solene de que o talento artístico não tem coloração racial ou ideológica. E isso fica bem estampado na obra chegada às telas.
                                          
Chiron, de descendência afro, personagem central, é na infância e puberdade impiedosamente alvejado pelo racismo e “bulling”. Inconsciente de sua homossexualidade, vê-se às voltas constantemente com problemas tormentosos advindos da  convivência com a mãe, viciada em drogas. Chega à fase adulta como um pequeno traficante, de certa forma empedernido, que impõe sem dificuldades, com trato abrutalhado, liderança autoritária aos integrantes de sua patota. Em momento algum deixa trair, diante dos “companheiros de profissão”, sua inclinação sexual. Um colega de infância, distanciado no tempo e no espaço, evocando reminiscências dos tempos escolares, é quem induz seja trazida à tona a tendência reprimida do brutamontes.

Apontado por alguns como um retrato universal da solidão, “Moonlight” impressiona bem pelos desempenhos, fotografia e cenas criativas traçadas por direção capaz, que consegue se desvencilhar dos riscos da fita descambar para melodrama vulgar. É interessante consignar que, à parte seus irrecusáveis méritos, o filme não conseguiria provavelmente, noutro momento, atingir a conquista celebrada, ao defrontar-se com a perspectiva de enfrentar um esplendoroso “La La Land”. A comédia musical em causa, espetáculo do ponto de vista cinematográfico simplesmente eletrizante, seria noutras circunstâncias concorrente imbatível.

Para que “Moonlight” alcançasse o topo na premiação concorreu bastante a  desassossegante onda de obscurantismo cultural e político que se abateu sobre a vida americana, com indesejáveis reverberações noutros países, após a ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. A vigorosa mensagem social de repulsa à intolerância embutida na narrativa cativou a legião de jurados. O “Oscar” de 2017 teve, assim, o sentido de uma manifestação grandiloquente – outra mais – de expressa condenação da inteligência estadunidense aos descaminhos trilhados pela Casa Branca na equivocada interpretação dos rumos civilizatórios de seu atual mandatário.

 Mal sem remédio

Cesar Vanucci

“... Daí ser a venda de remédios um negócio de primeira ordem.”
(Antônio Callado, em “Quarup”)

Tadinho do consumidor de remédio! Não passa de vítima indefesa de implacável engrenagem mercadológica. E não adianta chiar. Ninguém por ele. Os problemas de sua maltratada rotina de comprador, de tantos impactos na economia doméstica, passa ao largo das preocupações das organizações que se proclamam comprometidas com as políticas de bem estar social. É largado à própria sorte numa arena dominada por apetites vorazes pelos ganhos fáceis. Dando baita suporte a tudo funciona uma marquetagem competente e charmosa que ajuda a ocultar sofrida realidade: a de que o problema dos medicamentos é mal sem remédio.

Como é do desconhecimento geral - para gáudio, aliás, do poderoso complexo farmacêutico internacional, proprietário de patentes garantidoras de roialtes vitalícios - a Organização Mundial de Saúde assegura não passarem de pouco mais de uma centena as fórmulas medicamentosas essenciais às necessidades e carências terapêuticas. Ora, veja, pois! Informação desconcertante, essa aí. Enfileirado com os setores petrolífero e de armamentos entre as atividades mais rendosas, o segmento industrial farmacêutico consegue a prodigiosa façanha de fazer expandir, em ritmo alucinante, o receituário básico da OMS. As prateleiras comerciais, abrigando dezenas de milhares de rótulos, estampam iniludivelmente esse estupendo “milagre da multiplicação”. Atraído inapelavelmente por tal labirinto de ofertas, o consumidor vê-se peado para exercitar adequadamente seus direitos de defesa. Em eterna desvantagem, atropelado pelos fatos, entra o tempo todo pela tubulação. Agarra-se, às vezes, a ilusórias probabilidades de ajustar melhor as compras ao orçamento.

Quando se começou a falar em genéricos, chegou a embalar a ideia de que a novidade acabaria levando ao barateamento dos itens de consumo forçado. Ledo engano. Arranjaram um modo de embaralhar as marchas. Ofertas de artigos com idênticas propriedades farmacológicas tomaram diversificadas denominações. Produtos de marca, produtos similares, produtos genéricos, por aí. Sem falar nos homeopáticos, nos fitoterápicos, os de manipulação, esses todos, de quando em vez, colocados sob suspeição em ardilosas maquinações publicitárias que preservam, entocaiados no anonimato, os autores. As surpresas amontoam. A história não é bem essa. O genérico é hoje ofertado a preços mais elevados, ou menores, dependendo sabe-se lá do quê. A mesma fórmula é aplicável aos produtos de marca e aos similares. O freguês, perdidinho da Silva Junior, fica sem referencial. Embaraça-se nesse emaranhado de informações.

O cenário é ocupado por mais macetes. Nem todo mundo é colocado a par de tudo que rola no pedaço. O usuário de remédios utilizados com constância pode surpreender-se com situações como a de um conhecido, ainda recentemente. O produto receitado para estabilizar pressão estava cotado em astronômicos R$ 110,00. Cartela de 30 comprimidos, para consumo previsto em 15 dias, um pela manhã, outro na hora de deitar. Compreensivelmente alarmado, ele saiu para paciente pesquisa. Descobriu, estupefato, a existência de um genérico com a mesmíssima composição, a custo infinitamente menor, noutra farmácia: R$ 27,00. Economia, sem dúvida, bastante expressiva. Tempos depois, deu-se conta, não menos espantado, de que o fabricante do remédio original estava concedendo, por intermédio de consultórios, talões de bonificações de 80 por cento sobre o valor tabelado. Uai! A embalagem já não poderia sair, então, etiquetada da fábrica, com o generoso “desconto”? Ou será que, debaixo dos panos, esteja sendo urdida alguma manobra sutil com o fito de retirar do páreo o abusado concorrente?

Sem querer apelar para trocadilho: haja pressão!

sexta-feira, 24 de março de 2017

Os auditores fiscais
precisam ser ouvidos

Cesar Vanucci

“A seguridade social é deficitária? Não!”
(É o que dizem a Associação
 Nacional dos Auditores Fiscais e a OAB)

Não há como persistir em fazer ouvidos moucos às veementes manifestações da Associação Nacional dos Auditores Fiscais. Com o decidido apoio da OAB e outras instituições representativas de respeitáveis categorias profissionais, os auditores denunciam clamorosos equívocos que estariam sendo deliberadamente cometidos pelo governo na condução do processo da polêmica reforma previdenciária. A tecla martelada pelas instituições é de que a alegação de rombo descomunal nas contas não passa de engodo. Estratagema produzido com objetivo de desviar a atenção pública dos problemas que atormentam presentemente a Nação, gerando desassossegantes presságios.

Acossado por índices de credibilidade e popularidade baixíssimos, sem similares na vida republicana; emaranhado em colossal teia de denúncias de corrupção, implicando figuras de proa da coalisão de legendas que lhe garante sustentação política, o governo central vem procurando vender à sociedade a chamada PEC 287, como verdadeira “salvação da lavoura”... Tratar-se-ia de medida providencial – como enfatizado na retórica empregada – capaz de libertar o país das enormes encrencas econômicas e sociais em que se meteu. Encrencas essas, como sabido até pelo mundo mineral – diria com seu verbo cortante o Mino Carta – brotadas da incompetência administrativa e de promíscua mistura dos negócios públicos com bandalheiras privadas.

O principal argumento invocado na defesa da PEC, ou seja  o rombo nas contas, tem sendo desmontado por convincentes dados trazidos pelos auditores fiscais. Estranhavelmente, em que pese a origem tecnicamente correta dos demonstrativos lançados em contraposição às falas dos porta-vozes do Planalto, a comunicação midiática de maior alcance revela-se completamente desinteressada em conceder publicidade a tais dados. Não se anima, tiquinho que seja, sabe-se lá porque cargas d’água, em estimular o debate geral e irrestrito, com solar transparência, da candente questão, como conviria ao interesse público.

Ao contrário do que se trombeteia, a seguridade social não é deficitária coisíssima alguma. O diagnóstico é tão falso quanto nota de três reais, asseveram os auditores. Não passa de falácia a declaração de que a Previdência quebrou. O que existe, no duro da batatolina, como era de costume dizer-se em tempos de antigamente, é uma inocultável trapaça contábil.

Pelos estudos dos órgãos que se opõem à reforma projetada, a arrecadação da seguridade social é superavitária. Brasília sonega  a informação de que parte substanciosa dos resultados favoráveis auferidos tem sido desviada para cobrir outras despesas.

A disseminação das explicações alusivas ao momentoso assunto, mesmo enfrentando indisfarçável má-vontade da grande mídia, já criou, a esta altura, resistências mais sólidas às propostas da supressão de direitos sociais. Percebe-se que as modificações vêm sendo rechaçadas pela maioria da sociedade.

A Associação dos Auditores explica como o “déficit” é fabricado. Em 1994, foi aprovado mecanismo que favoreceu a utilização de parte das receitas da seguridade para pagar outras despesas, da maneira que melhor conviesse ao Governo. Esse mecanismo é conhecido pela denominação de DRU (desvinculação de receitas da União). Permite o desvio de 30 por cento do caixa da seguridade para outras finalidades. É por isso que, supostamente, a conta não fecha. Entre 2012 e 2014, os recursos desviados roçaram a casa dos 190 bilhões, consoante análise dos auditores. O orçamento da seguridade apontou, entre 2007 e 2015, montante superavitário equivalente a 540 bilhões de reais de acordo com estudo extraído de dados dos Ministérios da Previdência, Planejamento e Fazenda. Em 2015, ocorreu o superávit menor detectado no período da avaliação. O ano foi de aprofundamento da crise e de aumento bastante expressivo da taxa de desemprego, o que naturalmente afetou a arrecadação previdenciária. As receitas, mesmo assim, superaram as despesas em 20 bilhões.

Todos esses elementos informativos conduzem à certeira convicção de que a reforma almejada alveja inclementemente direitos consolidados. É mais do que compreensível, por conseguinte, a reação, que parece já ganhar corpo também no meio parlamentar, contra a aprovação açodada da PEC.

Estabeleceu-se o conceito de que qualquer discussão em torno do aperfeiçoamento do sistema previdenciário, que naturalmente acarrete alterações de regras, não poderá ser executado sem que sejam debatidos à exaustão todos os aspectos em jogo. Ademais, clama aos céus possa cogitar-se, a qualquer título, na base do monólogo tecnocrático, de alterações tão significativas, afetando dramaticamente o tecido social, sem a mais leve tentativa de correção prévia de abusos e desperdícios detectáveis em outras áreas da administração. Caso, por exemplo, das dezenas de milhares de marajás da União e dos Estados que percebem remunerações infinitamente superiores aos tetos salariais fixados em lei. E que, além dos polpudos estipêndios, desfrutam de outras estarrecedoras mordomias...



Política e picadeiro

Cesar Vanucci

“Se fôsseis admitidos a contemplar
(esse espetáculo), amigos, conteríeis o riso?”
(Horácio, 65-8, “Arte Poética”, mencionado
por Paulo Rónai  em seu “Dicionário de citações”)

Episódios divertidos do trepidante cotidiano político narrados de forma bem humorada por apreciados colunistas.

· Mino Carta, “CartaCapital”, edição de 8 de março, comenta a performance carnavalesca de Ju Isen, celebrada pela mídia como “musa do impeachment” à época da campanha pela destituição de Dilma Roussef, por convocar uma greve do sexo enquanto a queda da chefe do governo não se consumasse: “Na terça gorda Ju saiu para “pular carnaval” completamente nua e em boa parte pintada de verde, sem exclusão daquela porção do corpo humano onde as costas mudam de nome. Mostrada ao vivo pela Rede TV”. 

· Élio Gaspari, em “O Tempo”: “Eremildo, o idiota – Eremildo é um idiota e entendeu tudo. Todos os capilés de empreiteiras dados ao PT eram produto da corrupção, de propinas e da promiscuidade que os comissários mantinham com as empresas. Todos os capilés a políticos de todos os outros partidos que estavam no poder em seus Estados, ou mesmo no governo federal petista, eram legítimas doações de campanha”.

· Coluna “Sensacionalista”, “Veja” 8 de março: “Família imperial se antecipa e afirma que Dom Pedro jamais teve contato com a Odebrecht – Dilma, Temer, Aécio, Marina, Eduardo Campos. A delação da Odebrecht pega um, pega geral, pega até quem não está mais entre nós. Com uma lista cada vez maior de pessoas que receberam dinheiro da empreiteira, os Orleans e Bragança, a família imperial brasileira, procuraram a imprensa. Preocupados, os príncipes garantiram que nenhum de seus antepassados que governaram o Brasil teve contato com a Odebrecht. Nem dom Pedro I nem dom Pedro II. Diante de suspeitas sobre o nobre francês casado com a princesa Isabel, um assessor esclareceu: “O Conde D’Eu, mas nunca recebeu”.

A mesma coluna registra mais este tópico: “O próximo discurso de Romero Jucá será no Comedians – Ele fala de sexo, de religião e usa fatos históricos sem sentido. Líder do governo Temer no Congresso, o senador Romero Jucá mostrou seu talento para o humor e já está negociando apresentar-se no Comedians, o clube de comédias de São Paulo. Reclamando da restrição do foro privilegiado, ele disse que “suruba é suruba, não pode ser suruba selecionada”, que “a imprensa persegue os políticos como os nazistas perseguiram os judeus”, e ainda botou a revolução francesa no meio, afirmando “que estão apontando a guilhotina para os parlamentares”. Se juntar tudo isso com seu bigode, é mesmo de matar de rir”.

· Nirlando Beirão, artigo “Temer no Parnaso”, comentando o lançamento do livro de poemas “Anônima intimidade”, de autoria de Michel Temer: “A musa Erato, patronesse das elegias amorosas, baixa invariavelmente em Michel Temer “nas viagens aéreas do trajeto Brasília–São Paulo”. Dar polimento a súbitos poemas nas citadas circunstâncias tem o condão de inflar ainda mais seus méritos de rapsodo, já que, em jatinhos da FAB, o máximo de intercâmbio erudito a lhe caber poderia ser a eventual presença de um Moreira Franco (nom de plume: Gato Angorá). Porque com caronas como Paulo Skaf, o da Fiesp, fica difícil encetar qualquer veleidade intelectual. Skaf jamais leu um livro na vida”.

· E, por derradeiro, o registro de um psicodélico diálogo ocorrido segundo o noticiário político de 9 de março numa audiência judicial. Daniel Raizman, advogado do réu Sérgio Cabral, questiona Rogério Nora, ex-presidente da Andrade Gutierrez, sobre “propina atrasada”. Pergunta: “Houve um saldo dentro dos pagamentos de propinas. Ou seja, teriam de ter pago um valor, mas pagaram um menor. Essa diferença não foi paga. Desculpe lhe perguntar, mas só para que conste na ata, a empresa pretende pagar essa diferença?” / Resposta: “Não.”/ P: “Por que não?” / R: “Não, já não gostaríamos de ter pago nem a primeira condição. E é uma propina, é ilegal. A empresa está no compromisso de não participar desse processo.” /
P: “Não haveria hipótese de a empresa do senhor pagar essa diferença?” / R: “Não.




quarta-feira, 15 de março de 2017

Lions, uma
celebração eletrizante

Cesar Vanucci

“JK nunca será olvidado. Seu patriotismo
e simpatia marcaram o povo brasileiro.”
(Professora Elza de Moura, 103 anos, no agradecimento 
ao Lions pela homenagem recebida.)

Uma celebração festiva eletrizante. Esta a forma adequada de definir a programação levada a cabo pelo Lions Clube na evocação de seu centenário. No majestoso teatro do Sesiminas, em BH, repleto de convidados, em espetáculo cívico-cultural de singular beleza, desenrolado em atmosfera de enorme vibração, a instituição homenageou, inspirada na ideia “O Brasil de todos nós”, quatro dezenas de pessoas e organizações centenárias.

A entrega dos troféus produziu momentos de emoção inesquecíveis. Da parte artístico-cultural, que justificou a sugestiva classificação que Vitor Hugo conferia à boa música – “barulho que pensa e encanta” -, ficaram encarregadas a magnífica Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e o esplêndido Coral do Sesiminas. Eles brindaram a plateia com magistrais concertos. O repertório compreendeu clássicos da MPB, executados em arranjos especiais concebidos a pedido dos promotores do evento dentro da perspectiva de se festejar também os cem anos do samba, expressão mais genuína de nossa arte musical.

Além do locutor que vos fala, coordenador do grupo incumbido da promoção, utilizaram a tribuna no ato do dia 22 de fevereiro a governadora do Lions em Minas Maria Jorge Abrão de Castro e as professoras Elza de Moura (103 anos) e Maria Joana Peixoto (102 anos), homenageadas. As duas venerandas educadoras relembraram, em arrebatantes pronunciamentos, a figura inolvidável do grande estadista Juscelino Kubitscheck de Oliveira.

A comemoração em Minas do centenário do Lions estendeu-se, no dia 23 de fevereiro a outro significativo evento na sede da instituição. Em singela e marcante cerimônia, bastante concorrida, foi lacrada uma “capsula do tempo” contendo registros de fatos contemporâneos, a ser aberta no futuro. O acadêmico Sóter do Espírito Santo Baracho proferiu substanciosa fala alusiva ao acontecimento. Marilene Guzella, também integrante da Academia Mineira de Leonismo, agraciou o público com interessantíssima palestra sobre a história centenária do samba. No fecho do empolgante ato cívico-cultural, a professora de música e cantora Renata Vanucci e o mestre em música Guilherme Vincens apresentaram aplaudido recital com peças do cancioneiro popular brasileiro, de exaltação também ao samba.

Nessas festividades comemorativas do centenário, o Lions contou com o valioso apoio do Sistema Fiemg/Sesi e Sistema Fecomércio/Sesc. No próximo dia 25 de março, o Sesc irá promover, dentro da celebração, um espetáculo musical na base do samba, na praça Santa Tereza, em Belo Horizonte.

Anotamos, na sequência, os cidadãos e instituições centenários alvo das homenagens na sessão solene do dia 22 de fevereiro:
Instituições acadêmicas, classistas, científicas e filosóficas - Academia Mineira de Letras, Associação Comercial e Empresarial de Minas Gerais, Funed - Fundação Ezequiel Dias, Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, Loja Maçônica “Estrela de Queluz”; Instituições militares - 4ª Região Militar do Exército, Polícia Militar do Estado de Minas; Instituições esportivas e recreativas - América Futebol Clube, Bloco Carnavalesco Zé Pereira dos Lacaios de Ouro Preto, Clube Atlético Mineiro, Retiro Sport Club de Nova Lima, Vila Nova Futebol Clube; Instituições educacionais - Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Colégio Arnaldo de Belo Horizonte, Colégio Sagrado Coração de Jesus de BH, Colégio Sagrado Coração de Maria de BH, Escola Estadual Afonso Penna, Escola de Farmácia de Ouro Preto, Escola de Minas de Ouro Preto, Escola Estadual Dom Pedro II de Ouro Preto, Faculdade de Direito da UFMG, Instituto de Educação de Minas; Instituições empresariais - Anglo Gold Ashanti de Nova Lima, Barbosa & Marques (Produtos Regina), Casa Falci, Casa Issa de Pedro Leopoldo, Companhia de Fiação e Tecidos Cedro e Cachoeira, Companhia de Tecidos Santanense, Drogaria Araujo; Instituições religiosas e assistenciais - Arquidiocese de Mariana, Paróquia da Boa Viagem de Belo Horizonte, Santa Casa de Misericórdia de BH, Conselhos Central  e Metropolitano de BH da Sociedade São Vicente de Paulo;
Em Memória - Celso Cunha, Edgard Walter Simmons, Mario de Ascenção Palmério. Cidadãos - Adalgisa Braga de Castro Moura (1913), Elza de Moura (1915), José Eduardo Ladeira (1913), Maria Joana Peixoto (1915), Maria Margarida Guzella Martins (1915), Maria Valle do Amaral  (1915).


A FORÇA DA LUMINOSIDADE

“A vida é comprida. Cabe nela
amor eterno. E ainda sobeja vida.”
(Poeta António Botto)

Na solenidade do dia 22 de fevereiro, na condição de Coordenador do Grupo de Trabalho incumbido de estruturação do programa comemorativo do centenário do Lions em Minas Gerais, pronunciei o discurso abaixo reproduzido.

Cem anos representam diminuto percurso na infinitude cósmica. Impondo aos que vivenciaram tal percurso enormes fadigas, este trecho assombroso da história comprova, antes de tudo mais, que a vida neste planeta de peregrinação é uma centelha que brota, uma chama que vacila, incrustadas na imensidão do tempo, como enunciado em mimoso pensamento taoista.  Um clarão ao pé da eternidade, complementaria o poeta Guilherme de Almeida. Mas, aqui pra nós, que período mais estupendo!

Inquietude humana

Focando atentamente o olhar na história conhecida dos homens – tão repleta de inexplicabilidades quanto a sua história desconhecida –, o período que vai de 1917 a 2017 reflete admiravelmente as contraditórias e emblemáticas nuances da inquietude humana. A inteligência, a criatividade, o labor, o arrojo vanguardeiro do ser humano produziram, na caminhada transcorrida, ao jeito de embasbacante passe de mágica, verdadeiro esplendor tecnológico. As conquistas fabulosas se amontoam.

Começando com o lento voo do teco-teco chegou-se à nave espacial. Um artefato que singra o azul do firmamento a mais de quarenta mil quilômetros horários, com previsão nos audaciosos projetos de visitações a outros corpos celestes de atingir velocidades ainda mais estonteantes. Do telefone tocado a manivela, que deixou (evidentemente antes de 1917) Dom Pedro II estupefato, a ponto de exclamar: “Mas, meu Deus, isso fala?”, chegamos ao celular, ao “skype”, ao “whats app” e um tantão de outros apetrechos fabulosos que asseguram comunicação instantânea de qualquer lugar a qualquer lugar.

Fontes de energia inesgotáveis

As inesgotáveis fontes de energia da Natureza inteligentemente exploradas – com muitas outras fontes prestes a serem descobertas – colocaram, de outra parte, ao dispor da sociedade, instrumentos em condições de proporcionar maior conforto e bem-estar. Por essa amostragem, fica exuberantemente constatada a existência de um considerável patrimônio de feitos científicos estruturados no curso de cem anos. Tal patrimônio expõe a face positiva do processo civilizatório prevalecente neste planeta que nos foi concedido como morada transitória.

Desigualdades sociais gritantes

Mas, rendendo dissabores e infortúnios sem conta, esse mesmíssimo processo civilizatório exibe também, de forma ostensiva, uma face assustadoramente negativa. As vastíssimas potencialidades de bem-estar social criadas pelo engenho humano não aproveitam à humanidade por inteiro. O cenário aponta desigualdades sociais gritantes. Carências assistenciais clamorosas.

Frutos daninhos da arrogância, prepotência, insensibilidade social, egoísmo, injustiça, desgovernos, tudo isso configurando desapreço aos valores espirituais e humanísticos provindos da sabedoria que chega do fundo e do alto dos tempos, aí estão, a enodoarem a paisagem deste lindo planeta azul, as guerras do terror. E o terror das guerras. As guerras que as mães abominam, no dizer de Horácio. Aí estão o desrespeito contínuo aos princípios éticos; o drama angustiante dos refugiados; os radicalismos incendiários; a deslavada corrupção sistêmica de proporções universais. As estratégias geopolíticas que empobrecem o ideal da confraternização universal e o sentimento ecumênico. O fanatismo fundamentalista de cunho político ou religioso que nega direitos, alimenta racismo, fomenta intolerâncias de gênero, credo e de opções de vida.

Desperdícios sem fim

Para não espicharmos demais a inesgotável fieira de lances desedificantes da aventura humana, cuidemos de repercutir, por ser sintomática destes tempos atordoantes, esta impressionante informação da Organização Mundial de Saúde: com apenas dezesseis bilhões de reais, que poderiam ser simplesmente retirados da nota preta consumida nos desperdícios sem fim dos recursos universais, seria perfeitamente possível refrear a pandemia de AIDS que açoita vastos territórios do maltratado continente africano. E em se tratando da África, esquecida dos homens e por vezes até de Deus, anotemos que, ainda agora, a ONU implora a atenção do mundo para o que vem acontecendo no Sudão Sul. Este país detentor de ricas jazidas petrolíferas, devastado por conflitos bélicos intermináveis, enfrenta a hecatombe da fome.

Rosário de calamidades

Todo esse rosário de calamidades, espalhadas por tudo quanto é canto, provocando mágoa e desalento, leva as pessoas amiúde a suporem que os problemas humanos não têm mesmo jeito. Seriam males irremediáveis. A imaginarem que o obscurantismo que guarnece tais males constitui o traço dominante do espírito humano. E que de nada valeriam, contra forças tão avassaladoras, os apelos à misericórdia, à concórdia, ao desarmamento de espíritos, à paz, formulados por lúcidas lideranças das fileiras humanísticas. Oportuno ressaltar o fato de que nessas fileiras, compostas de homens e mulheres de boa vontade de todas as crenças e latitudes, parcelas majoritárias da sociedade humana, merece destaque especial na hora presente a inconfundível figura de estadista do Papa Francisco.

Um conceito consolador

Mas um consolador conceito atribuído a eminente pensador indiano, Sai Baba, explica que não é bem assim. Os tempos modernos projetam luminosidade, ao contrário do que se pensa, bem mais poderosa do que a feição trevosa dos eventos que tanta indignação e revolta provocam. A sociedade contemporânea estaria, assim, nos tempos de agora, bem mais consciente do sentido verdadeiro das coisas. Essa conscientização permite-lhe possa inteirar-se melhor dos fatos que dificultam a construção de um mundo mais digno pra se viver.

A luminosidade derivada de posicionamentos altivos assumidos nas ruas faz com que, em todos os lugares, as mentiras, as mistificações, as ilusões passem a ser percebidas mais rapidamente. Isso tem gerado reações colossais de inconformismo, dosadas na maior parte das vezes de bom senso e desassombro cívico. É como se, de repente, no quarto de despejo de uma casa, a lâmpada de 40 watts fosse trocada por uma de 100 watts. A sujeira encontrada é removida e fica acentuadamente diminuída a tentação de lançá-la debaixo do tapete.

Profusa luminosidade

Senhoras e Senhores, conforta-nos reconhecer que esta celebração dos 100 anos do Lions acha-se impregnada de profusa luminosidade. Luminosidade brotada de corações fervorosos. Um mundão de gente que sabe buscar, nos mananciais humanísticos e espirituais, na esperança que fortalece o espírito, no trabalho transformador, lições de vida escoradas em boas ideias, boas palavras e fecundas ações.

Vemos aqui, no itinerário do Lions, nos exemplos de vida dos homenageados, dos valorosos cidadãos e instituições reunidos nesta festa de singular beleza e de irretocável expressão cívica e cultural, a demonstração loquaz de que existem, sim, saídas para as crises que atormentam a sociedade de nossos tempos.

Terra, ponto de partida

O mundo pode, sim, como não, ser refeito. Ser reconectado com sua humanidade. Com base na misericórdia, na justiça social, na esperança - esse impulso heroico da alma -, no labor, na reta conjugação de vontades em torno dos valores éticos. No entendimento de que a vida é uma dádiva preciosa de Deus, e de que a Terra não é destino final, mas ponto de partida.

Sendo comprida, muito extensa, por se embrenhar eternidade afora, a vida consegue abarcar perfeitamente, em plenitude, o amor eterno, de maneira a que sempre ainda sobeje vida, como se proclama liricamente na fala do poeta. Palavra de Leão!


Pronunciamento da representante dos homenageados

Na mesma cerimônia, a professora Elza de Moura, 103 anos, agraciada com a comenda “JK - Cultura, Civismo e Desenvolvimento”, outorgada pela Academia Mineira de Leonismo, fez o discurso apresentado na sequência.

“Fazer 100 anos é um acontecimento marcante para o aniversariante e também para os amigos. O centenário parece um produto raro, contemplado com admiração, embora não ser difícil de ser uma vida de lutas, vitórias e derrotas, alegria e tristeza e todos aqueles ingredientes que acompanham uma vida.

Contemplar a relação das instituições citadas na homenagem, cada uma delas revela uma existência de muitas batalhas; o que é importante, porém, é o alvo alcançado e ainda o por alcançar: na educação, na religião, nos negócios, no esporte, na defesa nossa, um mundo complexo, com objetivos diversos, mas todos em direção à vitória.

Uma efervescência de atividades de grande importância de que a humanidade necessita para o seu desenvolvimento e felicidade. Todo trabalho é sagrado e damos graças a Deus pela existência do trabalho, fonte de alegria e realização.

Essas instituições centenárias, que hoje são justamente homenageadas, que sigam seu caminho escolhido, trazendo felicidades para seus seguidores, contribuindo para o desenvolvimento inteligente da nação, do nosso povo. Dessas instituições centenárias, peço a liberdade de destacar a Polícia Militar de Minas Gerais, porque sou filha dela e, se hoje estou aqui nessa noite maravilhosa, foi graças à perfeição do HMG, que me devolveu a saúde, e ao Instituto de Educação, na antiga Escola Normal Modelo, porque foi lá que cresci em todos os sentidos, indicando-me o melhor caminho para a minha vida.

Parabéns a esses gigantes que conseguiram desafiar todas as dificuldades sendo vencedores. São heróis, não como Brecht cita no Galileu e Galilei, heróis de lutas sangrentas, mas pacíficas e vamos esquecer a frase de Brecht: “Infeliz da nação que precisa de heróis.”

Quando jovens, líamos José de Alencar, que inicia um dos seus mais famosos romances, assim: “Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. “Esta serra alonga os olhares, não limita e faz-nos ver muito além”. E Minas, cercada de montanhas, é um marco do mineiro. Antonil, no século 18, já dizia: “No campo há alegria; na montanha, meditação.”

Um espanhol teve a primeira visão das montanhas de Minas, lá pelo ano de 1553, homem considerado de bem e de verdade e de grande espírito, penetrou pelo norte, colhendo preciosas informações. Tempos depois, surgiria o tipo mineiro se moldando aos poucos, até a revelação de Machado de Assis: “O mineiro é a premissa antes da conclusão; a conclusão antes da consequência. Mas ao lado, ou dentro desse mineiro, há o que é capaz de passadas de gigante, saltando vales e varando montanhas.” Guimarães Rosa alerta: “Nada devora mais que o horizonte.” As serras alongam o olhar e nada fica limitado. Escreve Augusto de Lima: “Plenilúnio de maio em montanhas de Minas” e estamos naquela paisagem onde os raios da lua invadem os contornos das serrarias flutuando na paisagem. E mais ainda Guimarães Rosa: “Minas Gerais principia de dentro para fora e do céu para o chão.” E Oswaldo França Junior exclama: “Lá é um lugar com morros e mais morros. Olhando do alto de um deles, a terra parece um mar de ondas sem fim.” A montanha nos oprime ou nos liberta? E Carlos Drumond de Andrade evoca Guignard pedindo que volte: “Volta, Guignard, de corpo restaurado ao mundo material, de onde extraias o delicado mundo guignardiano entre balões, nas altas serrarias.”

Nessa paisagem montanhosa, um vulto se destaca: O JK, o Nonô, o Juscelino Kubitschek de Oliveira, considerado o maior homem público do Brasil. Mesmo habitante das alturas não é fácil subir montanhas e o nosso patrício de Diamantina subiu muitas e muitas montanhas, durante a sua fecunda vida, enfrentou muitas dificuldades, mas sempre avançou. Emile Zola proclama: “As dificuldades, como as montanhas, aplainam-se quando avançamos.” “Cinquenta anos em cinco” volta ao nosso desejo de ressuscitar a nossa pátria, hoje tão destroçada. Evocamos o JK, médico da PM, enfrentando os grandes perigos na Serra da Mantiqueira, como médico, no vagão-hospital, salvando vidas, na Revolução de 32. Da montanha para a montanha, em ato nobre. Minas, de Tiradentes, realizando grandes feitos, em todos os campos, na colônia, no império, na república, a marca de Minas é inapagável. A montanha amplia e quem sabe o ideário mineiro, a presença da liberdade, a elevada cultura, as grandes iniciativas sejam a nossa marca.

A figura de JK nunca será olvidada, seu caráter, sua capacidade de realização, seu patriotismo, sua simpatia e simplicidade marcaram o povo brasileiro.

Villa-Lobos, tão preocupado com nossa brasilidade, compôs, um orfeão e três vozes, com letra de Paula Barros: Desfile aos heróis do Brasil. Juscelino é um deles, acompanhado de outros heróis. Como diz o coral: “Glória aos homens que elevam a pátria querida que é o nosso Brasil”, com especial lugar ao nosso JK, pela sua vida de grandes lutas e sofrimentos, um marco na história do Brasil. Glória eterna ao nosso JK.”


Imagens da memorável celebração

Teatro Sesiminas: Lions presta homenagens a
cidadãos e instituições centenários

Convidados lotaram o teatro

 Pronunciamento de Cesar Vanucci

Concerto da Orquestra Sinfônica da PMMG

 “Capsula do tempo”: ato realizado na sede do Lions

sexta-feira, 10 de março de 2017

Exige-se 
transparência solar

Cesar Vanucci

“O que se concebe bem, se anuncia com clareza.
 E as palavras para dizê-lo chegam com facilidade.”
(Nicolas Boileau, poeta francês, século 17)

Transparência solar na apuração das circunstâncias do desastre aéreo que ceifou a vida do Ministro Teori Zavascki! Tal preocupação não pode permanecer ausente, hora alguma, das cogitações dos setores incumbidos da lida com o assunto. Apesar de compreensível do ponto de vista técnico, a recente decisão do Juiz Federal de Angra dos Reis, determinando hermético sigilo em torno do processo investigatório concorre, forçoso admitir, para que a opinião pública se sinta um tanto quanto desconfortável em relação às diligências oficiais.

É sumamente importante, neste momento, em todos os escalões, que os agentes públicos com expressas responsabilidades no impecável esclarecimento do acidente se mostrem verdadeiramente compenetrados do elevado grau das expectativas das ruas concernentes ao caso. Para que possam executar a contento sua relevante missão conta muito a certeza de que as explicações sejam transmitidas de forma convincente e clara. Toda a Nação almeja conhecer por inteiro os desdobramentos do trabalho de verificação a respeito do que, afinal de contas, andou acontecendo no voo fatídico de Parati.

A coincidência de a morte de Teori haver ocorrido na véspera da homologação de depoimentos cruciais, num processo da magnitude política, econômica e social da Lava Jato, é bastante significativa. Não há como desfazer os temores circulantes em muitas áreas no sentido de que o destino impiedoso poderia não ter sido a real causa do lastimável evento. A apuração rigorosa dos fatos, como a que se acredita esteja em andamento, terá o condão de deixar tudo muito bem elucidado, com base em rigorosa transparência.

E já que se está a tratar de transparência e clareza das coisas, seja-nos facultado focalizar, na sequência, posturas governamentais em dissonância com esses elementos, obviamente essenciais no processo de comunicação oficial com a sociedade. Vamos falar, como prometido em artigo anterior, das chamadas “síndrome da reivindicação sucessiva” e “síndrome da responsabilização regressiva”, fórmulas marotas de engazopamento da opinião pública, traduzidas em excesso de palavrório e carência de ações.

Lembrando que o Governo Michel Temer, tal qual fizeram os antecessores, acostumou-se a lidar com a segurança manipulando truques com o fito de embromar o respeitável público, o jornalista Élio Gáspari discorre magistralmente sobre o que vêm a ser essas ardilosas manobras. A “síndrome da reivindicação sucessiva”, uma delas, agrada em cheio a emproada casta dos burocratas, sempre empenhados em elaborar “agendas futuristas” que lhes propiciem a chance de não fazer o que devem. Permite corra desenvolto, conforme sublinha o jornalista, o raciocínio descrito abaixo: “As facções criminosas nos presídios só poderiam ser contidas com bloqueadores de celulares. Instalados os bloqueadores, será necessário um satélite para vigiar a fronteira e assim por diante. (...) As cadeias estão superlotadas e, em vez de botar pra trabalhar quem nunca trabalhou, defende-se a mudança na legislação penal.” E por aí a carruagem vai rodando, numa marcha inesgotável, carregando intenções que nunca se concretizam.

Já no que concerne à outra “síndrome” anotada, “a síndrome da responsabilização regressiva”, o citado jornalista sustenta que o ex-Ministro da Justiça e já agora Juiz do STF se acha dela apoderado. E no que mesmo consiste? Urdida, como a primeira “síndrome”, com o objetivo de empulhar a plateia, a postura adotada enfatiza a ideia de que a aterrorizante situação das penitenciárias remonta “a uma crise antiga, secular”. Suas raízes estariam fincadas nos tempos coloniais. Gáspari ironiza: “Tudo bem, a responsabilidade é de Tomé de Souza. Nada a ver com os governos de José Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, todos apoiados pelo atual presidente Michel Temer”. E acrescenta, aludindo ao Ministro Alexandre Morais: “... é um homem do seu tempo. Atento às sutilezas do vocabulário, sempre que fala em “homicídio” acrescenta a palavra “feminicídio”. No mundo do politicamente correto lixo é “resíduo sólido”, e não se deve buscar a regeneração dos delinquentes, mas a “ressocialização” dos presos. Tudo seria uma questão de palavras que não fazem mal a ninguém, se na fantasia de modernidade e cosmopolitismo não se escondesse o atraso. Finge-se que tornozeleiras, satélites, radares, censos e mudanças pontuais podem resolver os problemas das prisões brasileiras. Eles resolvem o problema da ocupação do noticiário. Nada mais que isso.”


Seduções do
“primeiro mundo”


Cesar Vanucci

“A moda é uma tirana que muitos
ridicularizam, mas não deixam de obedecer.”
(Domingos Justino)

Certas expressões caem com tal força e desenvoltura no gosto popular que não há como resistir-lhes ao fascínio e deixar de absorvê-las na falação do dia-a-dia.

Assim aconteceu com o "fora de série", para nos retermos num exemplo. Disseminado pela televisão, andou em voga por bom pedaço de tempo. Ainda hoje é utilizado, se bem que de forma mais comedida. Usavam-no como medidor de um mundão de coisas: da qualidade de um utensílio de cozinha à postura, no ambiente comunitário, de cidadãos acima de qualquer suspeita. Brindando o mérito da esforçada balconista, o gerente da loja sapecava-lhe rótulo reluzente: - "profissional fora de série". A moça deixava escapar no olhar marejado os sinais de uma emoção nitidamente "fora de série"... Em tom triunfal, o pai falava pra amigos do retumbante sucesso do filho no vestibular, um garoto, naturalmente, "fora de série"...

Uma das ondas do momento presente é curtir adoidado uma outra expressão, com serventia ampla, geral e irrestrita. É chique à beça soletrar "primeiro mundo" em tudo quanto é papo, caprichando nas sílabas no mais genuíno carioquês...

"Primeiro mundo" é mesmo o máximo. O topo cobiçado do Himalaia a ser escalado no exercício diário de alpinismo de que é composta a alucinante aventura humana. Indica procedimentos, sinaliza roteiros, abaliza argumentos, aponta a meta a ser alcançada na ambicionada rota do crescimento. Estabelece a premissa da existência de uma espécie de iluminação feérica em cada final de túnel. Cria no imaginário das ruas a fantasia delirante de que a vinculação ao "primeiro mundo" assegura acesso direto, sem preocupações quanto à validade do visto de permanência, a um florido e imperturbado Shangrilá, o paraíso perdido das tradições guardadas no inconsciente coletivo. Nesses recantos paradisíacos ninguém experimenta situações desconfortáveis provocadas por agudas questões sociais, ao contrário do que acontece à pamparra noutras partes maltratadas do planeta.

"Primeiro mundo" virou designação mágica para um punhado de situações cotidianas. No salão frequentado por socialites, o cabeleireiro imaginoso bola uma mecha roxo-abóbora na cabeça de madame para a festa de gala no sábado. Explica, convicto, para a freguesa deslumbrada: "Coisa de primeiro mundo!" Na butique refinada, o vendedor chama a atenção do cliente para a prateleira abarrotada de bugigangas multicoloridas com etiquetas do invejável "primeiro mundo". São trazidas em caravelas modernas, atraídas pela sedutora e despoliciada política de abertura escancarada dos portos, como parte do "elogiável esforço de transformação do Brasil em país de primeiro mundo".  De nada adiantarão, no caso, as ponderações arguidas por lúcidos porta-vozes dos setores produtivos nacionais, expressando adequadamente justo inconformismo e amargura diante dos "efeitos perversos" dessa política carregada de equívocos. Equívocos danosos que concorrem para o desemprego e o sucateamento de fatias bem expressivas de nosso parque fabril.

Retomo o assunto na sequência.



A eterna
comédia humana


 Cesar Vanucci

"O mundo é um palco; os homens
 e as mulheres meros artistas..."
(Shakespeare)

Em artigo anterior, lembramos que para não poucas pessoas o acesso de um país como o Brasil ao assim chamado "primeiro mundo" passa, obrigatoriamente, pela necessidade de escancarar amplamente suas fronteiras, mode que favorecer, sem "salvaguardas eficazes", a entrada comercial de toda sorte de produto e bugiganga que exiba no rótulo um "made" qualquer.

Seja registrado, a propósito desse equivocado entendimento do mundo dos negócios internacionais, que todos os países do tal "primeiro mundo" aplicam, desembaraçadamente, com zelo e ciúme maternais, impactantes práticas protecionistas na defesa de seu complexo produtivo. É só acompanhar o noticiário econômico de cada dia. O mencionado procedimento representa, para nós outros, uma lição valiosa transmitida pelo mundo economicamente mais desenvolvido. Uma lição que a babaquice (ou que outro nome possa ser dado à visão deformada da realidade que tantos têm por aí) teima em desconhecer.

Voltemos agora, à linha de raciocínio introduzida no comentário passado a respeito do singular fascínio que a expressão "primeiro mundo" desperta na mente de um mundão de pessoas.

Levando em conta os aspectos emocionais e as pressões psicológicas resultantes da acolhida franca dispensada ao uso desenfreado dessa expressão, é preciso que aprendamos a conservar serenidade e a demonstrar um mínimo de apego ao lado racional nas análises feitas da realidade contemporânea, do ponto de vista social e econômico, quando se aborda o tema "primeiro mundo". Acontece que "primeiro mundo" serve mais para designar um estado de espírito, um ideal a atingir. E não, de verdade, um estágio de vida onde o bem estar esteja de tal sorte disseminado, por porções territoriais privilegiadas, que dê ensejo para se proclamar que nesses recantos a prosperidade reina à pamparra. Vamos colocar pingos nos iis.

Não existe nada disso, em lugar algum, da Escandinávia aos recantos paradisíacos mostrados da revista “Caras”, na intensidade e extensão imaginadas. Nos países tidos como detentores de suprema prosperidade coexistem, justapostos, inocultáveis, estamentos sociais característicos de terceiro e quarto mundos, com toda sua dolorida problemática. De outra parte - e o Brasil é uma amostra exemplar -, são muitos os países de classificação inferior na graduação do desenvolvimento a ostentarem vestígios indicativos não de primeiro mundo, mas do "melhor dos mundos". Se, num passe de mágica, pudesse se desvencilhar de tudo que a constrange no plano social, a cidade de São Paulo seria, sozinha, muito mais "primeiro mundo" do que toda a citada Escandinávia junta.

Os Estados Unidos são tidos como amostra refulgente do primeiro mundo. Mas o Harlen, em Nova Iorque, citando um exemplo, é seguramente território de terceiro mundo. E os subterrâneos nauseantes de Manhattan, onde ficam as áreas mais valorizadas do planeta, abrigam cenas cotidianas tão dilacerantes que não fica difícil enquadrar o pedaço até no quarto mundo.

Nada consegue impedir, todavia, que o deslumbramento diante dessas supostas maravilhas inerentes ao "primeiro mundo" arraste muitos a uma contemplação tresloucada do que veem e que se confunde com aquilo que gostariam, por certo, de ver. Como nesse significativo episódio de uma turista brasileira que topou, numa rua de Washington, com mendigo em estado deplorável. Chocada com o drama do ambulante que lhe estendia a mão, implorando caridade, uma amiga que a acompanhava expressou a preocupação de que a criatura à míngua estivesse acometida de aids. A turista não se deu por achada: - "Um aidético, sim, com toda certeza! Mas do primeiro mundo. Do primeiro mundo, minha santa..."

“Tamos" conversados...

sexta-feira, 3 de março de 2017


Obama marcou seu tempo

 Cesar Vanucci

“Foi melhor que seu antecessor. E,
seguramente, será bem melhor que seu sucessor.”
(Antônio Luiz da Costa, educador)

Tá na cara que Barack Obama vai deixar saudade. Mesmo que não tenha sido o estadista extraordinário que muitos, fervorosamente, chegaram a acreditar estivesse a despontar no panorama mundial, os feitos positivos acumulados em sua gestão foram bastante razoáveis.

De outra parte, a inevitável comparação entre seu estilo de governar com o de seu tresloucado sucessor amplia consideravelmente a reluzência da imagem que tende a deixar gravada no espírito das pessoas de seu tempo, sobretudo entre adeptos. Barack Obama ascendeu ao poder com força total. Depois de haver conquistado competentemente o público interno, encantou com oratória persuasiva e propostas sociais avançadas boa parte do público externo. Foi recebido em tudo quanto é lugar com manifestações de entusiasmo nunca dantes reservadas a dirigentes políticos estadunidenses. Conservamos nítidas na memória as cenas televisivas das estrondosas recepções que lhe foram prestadas em praças públicas, em seu périplo por capitais europeias pouco depois da posse. Verdadeiro delírio popular envolveu o cidadão negro, de porte altivo, simpático, inteligente e culto que acabara, surpreendentemente, de romper a granítica barreira da discriminação racial existente em seus pagos natais, alcançando num passe de mágica a posição mais elevada que qualquer mortal vocacionado para a vida pública pudesse ambicionar.

Concederam-lhe, prematura e açodadamente, sob os efeitos dessa atmosfera de embevecimento que o rodeou, o Nobel da Paz. Contudo, tempos depois de haver sido agraciado com a láurea assumiu iniciativas que contribuíram, de alguma maneira, para revelar seu engajamento em causas voltadas ao desarmamento da belicosidade reinante no planeta. As reaproximações dos Estados Unidos com Cuba e Irã falam muito a seu favor. Adicionam também créditos em sua folha de serviços os esforços incisivos desenvolvidos no sentido de conter o radicalismo que sustenta a beligerância dominante nos convulsionados territórios de Israel e Palestina. Granjearam-lhe ainda aplausos memoráveis alguns pronunciamentos que fez, um deles agora na despedida, exaltando a democracia e condenando o racismo e as intolerâncias fundamentalistas.

Na esfera das conquistas sociais, ameaçadas pela truculência “trumpiana”, Obama conseguiu implantar consistentes programas de assistência médico-hospitalar. Beneficiou multidões de assalariados de baixa renda. Seus atos contrariaram, sabido é, interesses muito poderosos. É o que explica a guerra sem quartel declarada ao assim denominado “Obamacare”. Foi diminuto o tempo transcorrido, após deixar o governo, para que essas forças hostis aos programas implementados em favor dos excluídos sociais demonstrassem o peso de sua influência nas decisões da administração recém-empossada. Com uma canetada, o ex-apresentador de “realities shows” de questionável qualidade artística anunciou uma reformulação radical no esquema da assistência médica garantida pelo Estado.

Não passam despercebidos, por outro lado, aqueles instantes numerosos, na trajetória de Obama, em que ideias e palavras conflitaram clamorosamente com atos decisórios adotados na órbita administrativa. Com o seu consentimento, as agências de segurança dos Estados Unidos praticaram virulenta ação de bisbilhotagem, jamais vista nestes tumultuados tempos eletrônicos. Telefones de milhares de cidadãos foram grampeados. Chefes de Estado e empresas de países amigos, inclusive Brasil, tiveram suas correspondências vasculhadas com intuitos inconfessáveis. Ninguém recebeu pedidos de desculpas por essa clara violação dos direitos fundamentais.

Apesar do alardeado empenho pacifista do ex-mandatário, os conflitos bélicos se alastraram. Para isso, não tem como desconhecer, muito contribuiu a inabilidade do governo norte-americano em seu relacionamento diplomático e no apoio concedido a grupos econômicos interessados na ampliação de negócios.

De tudo quanto exposto sobra, cabe admitir, a constatação de que Obama deixou marca na história contemporânea. Como dito na epígrafe, foi bem melhor que seu antecessor e será, com certeza absoluta, infinitamente melhor que seu sucessor.


O irresistível fascínio da MPB

Cesar Vanucci 

"Onde se toca boa música,
 não pode haver coisa má."
(Cervantes)

Na celebração de seu centenário, o Lions Clube homenageará, semana vindoura, com um caprichado ato cívico e cultural no Teatro Sesiminas, cidadãos e instituições centenários. Os 100 anos do samba não ficarão fora dos festejos. A magnifica Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e o esplêndido Coral do Sesi se encarregarão de reviver, em espetáculo de gala, peças imortais da MPB.

O samba, caríssimos leitores, foi alvo no passado de impiedosa discriminação. Encarado como reles produto marginal, naquilo que a expressão conceba de mais pejorativo, por conta de falsas crenças culturais então vigentes. Um autêntico “caso de polícia”, como sugestivamente se cantava nas composições de antanho. Tendo como fontes de inspiração genuínos sentimentos e emoções da alma popular acabou sobrepujando as resistências puritanas e retrogradas dessa penosa fase de obscurantismo cultural. É hoje mostrado orgulhosamente ao mundo como expressão maior da incomparável criatividade artística musical brasileira.

Vamos repetir, pausadamente, pra ficar bem gravada: a música brasileira representa, no reconhecimento das ruas universais, um instante mágico, privilegiado, de sublime elevação na escala da inspiração artística.

Não existe neste mundo do bom Deus, onde o diabo costuma armar barraco pra aprontar traiçoeiras malvadezas, quem ouse não se confessar encantado com os sons cheios de vida, líricos e coloridos, lembrando imenso caleidoscópio, de infinitas e variegadas emoções, produzidos à mancheia pelo excepcional time dos artistas brasileiros da música. Um time, sem sombra de dúvida, da maior competência, preparado para ganhar tudo quanto é copa de que participe. A propósito do encantamento suscitado pelo samba vale evocar a lição de mestre Caymi: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é. É ruim da cabeça, ou doente do pé...”

Quando se fala dos sons musicais brasileiros, dos versos primorosos reunidos em milhares de composições do melhor quilate, não há como esquecer também do ritmo malemolente, único, saído dos instrumentos de percussão. Ele é inconfundível e, também, irreproduzível em outras plagas, mesmo por craques na arte de extrair ruídos sonoros dos  tambores. Produz um barulho de fala muito especial. Junto com os da melodia e letra, que são “barulhos que pensam”, conforme clássico conceito de Victor Hugo, ajuda a mostrar, de modo exultante, a riqueza cultural fabulosa da gente brasileira.

Em tudo quanto é canto deste planeta azul, as músicas brasileiras enternecem e arrebatam. Ary Barroso e Tom Jobim, pra ficar no registro de apenas dois nomes transcendentes da populosa nação dos compositores brasileiros talentosos, deixaram as digitais impressas nos repertórios das mais famosas orquestras, grandes instrumentistas e vocalistas. São assobiados nas ruas. Ouvidos com prazer em todos os lugares onde se toca boa música. Lugares, conforme lembra Cervantes, em que não pode haver coisas más.

Os turistas brasileiros são, vez por outra, envolvidos no exterior por inesperadas ondas de simpatia, que ajudam a quebrar o gelo da recepção costumeiramente oferecida, sobretudo em paragens europeias. É quando a música brasileira pinta no pedaço. Algo assemelhado com o que ocorre, também, quando o futebol aflora nas conversas. Nossa música popular e nosso futebol, apesar dos dilacerantes 7 X 1, têm o condão de identificar lá fora, admiravelmente, o nosso jeito de ser. E produzem, como nenhuma outra ação construtiva consegue fazer, aproximações enriquecedoras e saudáveis.

Acode-me, a esta altura, a lembrança de uma situação singular que experienciei (ora, epa!) em 1995, no longínquo Tibete.

Disponho-me a contar, na sequencia, o que aconteceu, neste acolhedor espaço. Se a memória não tá a fim de me trair, já pela segunda vez. A repetição, diga-se logo, robustece os argumentos da defesa apaixonada que me habituei a fazer da cultura brasileira nas maldatilografadas linhas frequentemente projetadas em letra de forma.


De repente, no Tibete...
  

Cesar Vanucci

"Brasil que eu amo é (...)
o balanço das minhas cantigas e danças."
(Mário de Andrade)

Anunciei na crônica anterior o relato de uma experiência singular, ligada à música popular brasileira, vivenciada em 1995 no distante Tibete. Conto como tudo se deu.

Numa longa e gélida noite, a pressão fora de controle por conta da altitude superior a 4 mil metros, resolvi mandar-me para um estabelecimento do tipo “piano-bar”. A casa, mobiliada com simplicidade, ficava na principal rua de Lhassa. Já alvejado, naquelas cumeeiras impiedosas do teto do mundo, pelo danado do banzo, com a cabeça a ponto de explodir, defrontei-me, dada hora, com outra ameaça séria. Cheguei a imaginar mesmo, pela esmagadora emoção experimentada, que iria ser convocado, logo ali, naquela lonjura toda, a deixar pra todo o sempre este nosso vale eternamente banhado de lágrimas...

Aconteceu quando o pianista, um europeu com o qual não havia trocado, até então, qualquer palavra, e que ignorava minha nacionalidade, resolveu sapecar pra cima da pequena e seleta plateia, turistas estrangeiros na totalidade, um punhado de músicas brasileiras. “Aquarela do Brasil” abriu o desfile. Veio depois o “Vou te contar”, de Jobim. Foi demais. Não deu pra segurar. A emoção ganhou, sem intenção de trocadilho, dimensões himalaianas. O coração velho de guerra disparou adoidado. O ar à volta desapareceu. Um chá ultra amargo, enfiado goela abaixo, garantiu o prestígio da tradicional medicina tibetana composta de ervas, ao permitir recobrasse a condição física.

Ocorre-me lembrar outras prazerosas circunstâncias inesperadas em que, maravilhado, me deparei no exterior com impecáveis interpretações da MPB. Em São Petersburgo, Rússia, deleitei-me com uma banda executando a “Aquarela do Brasil”. Em Santiago, Chile, aplaudi uma retreta de banda militar defronte ao palácio do governo entoando acordes de Ary, Jobim e Chico Buarque.

Pois bem, tudo que está contado aí e já foi dito pratrazmente vale como expressão do enorme fascínio que a música popular brasileira desperta em multidões de todos os sotaques, latitudes e hábitos culturais. Chega, então, o momento de se colocar pra fora, numa pergunta, a perplexidade de muita gente: por que cargas d’água, o rádio e a tevê deste país rico em musicalidade insistem tanto em conceder escandalosa preferência à música estrangeira em suas programações? Outra pergunta: qual o papel das gravadoras estrangeiras e brasileiras nessa estranha e desconcertante partitura?

Convido o leitor destas maldigitadas a pedir numa loja um CD com músicas do Ary Barroso. Não vai ser mole achar. Mas achará, com extrema facilidade, trazido por solícitos vendedores, o que existe de mais representativo do lixo musical alienígena. Um besteirol de sons, imposto pela indústria fonográfica pra consumo de público desprevenido, a render polpudos direitos autorais para compositores e músicos na maior parte sem talento. Gente que, em seus delírios criativos, confunde acordes musicais com barulhada de utensílios metálicos despencando no piso da cozinha...

É sempre hora e vez, assim sendo, de tomar a música brasileira sob proteção. Garantir essa proteção na legislação do país. É o que se deveria também tentar fazer na defesa do idioma contra descabidas agressões perpetradas pela neobobice vernacular, com seu palavreado “macdonaldizado”. Fico torcendo para que brote do Parlamento, algum dia, projeto de lei que defina certas obrigatoriedades para tornar a música brasileira mais divulgada entre nós. Nas rádios, nas tevês, nas lojas, nas festas dançantes, na publicidade. Em benefício da cultura e dos artistas. A música brasileira é patrimônio cultural. Cabe defendê-lo.

A SAGA LANDELL MOURA

Uma mulher rodeada de palavras

                             *Cesar Vanucci “Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania de ter fé na vida” (verso da canção “M...