sexta-feira, 3 de março de 2017


Obama marcou seu tempo

 Cesar Vanucci

“Foi melhor que seu antecessor. E,
seguramente, será bem melhor que seu sucessor.”
(Antônio Luiz da Costa, educador)

Tá na cara que Barack Obama vai deixar saudade. Mesmo que não tenha sido o estadista extraordinário que muitos, fervorosamente, chegaram a acreditar estivesse a despontar no panorama mundial, os feitos positivos acumulados em sua gestão foram bastante razoáveis.

De outra parte, a inevitável comparação entre seu estilo de governar com o de seu tresloucado sucessor amplia consideravelmente a reluzência da imagem que tende a deixar gravada no espírito das pessoas de seu tempo, sobretudo entre adeptos. Barack Obama ascendeu ao poder com força total. Depois de haver conquistado competentemente o público interno, encantou com oratória persuasiva e propostas sociais avançadas boa parte do público externo. Foi recebido em tudo quanto é lugar com manifestações de entusiasmo nunca dantes reservadas a dirigentes políticos estadunidenses. Conservamos nítidas na memória as cenas televisivas das estrondosas recepções que lhe foram prestadas em praças públicas, em seu périplo por capitais europeias pouco depois da posse. Verdadeiro delírio popular envolveu o cidadão negro, de porte altivo, simpático, inteligente e culto que acabara, surpreendentemente, de romper a granítica barreira da discriminação racial existente em seus pagos natais, alcançando num passe de mágica a posição mais elevada que qualquer mortal vocacionado para a vida pública pudesse ambicionar.

Concederam-lhe, prematura e açodadamente, sob os efeitos dessa atmosfera de embevecimento que o rodeou, o Nobel da Paz. Contudo, tempos depois de haver sido agraciado com a láurea assumiu iniciativas que contribuíram, de alguma maneira, para revelar seu engajamento em causas voltadas ao desarmamento da belicosidade reinante no planeta. As reaproximações dos Estados Unidos com Cuba e Irã falam muito a seu favor. Adicionam também créditos em sua folha de serviços os esforços incisivos desenvolvidos no sentido de conter o radicalismo que sustenta a beligerância dominante nos convulsionados territórios de Israel e Palestina. Granjearam-lhe ainda aplausos memoráveis alguns pronunciamentos que fez, um deles agora na despedida, exaltando a democracia e condenando o racismo e as intolerâncias fundamentalistas.

Na esfera das conquistas sociais, ameaçadas pela truculência “trumpiana”, Obama conseguiu implantar consistentes programas de assistência médico-hospitalar. Beneficiou multidões de assalariados de baixa renda. Seus atos contrariaram, sabido é, interesses muito poderosos. É o que explica a guerra sem quartel declarada ao assim denominado “Obamacare”. Foi diminuto o tempo transcorrido, após deixar o governo, para que essas forças hostis aos programas implementados em favor dos excluídos sociais demonstrassem o peso de sua influência nas decisões da administração recém-empossada. Com uma canetada, o ex-apresentador de “realities shows” de questionável qualidade artística anunciou uma reformulação radical no esquema da assistência médica garantida pelo Estado.

Não passam despercebidos, por outro lado, aqueles instantes numerosos, na trajetória de Obama, em que ideias e palavras conflitaram clamorosamente com atos decisórios adotados na órbita administrativa. Com o seu consentimento, as agências de segurança dos Estados Unidos praticaram virulenta ação de bisbilhotagem, jamais vista nestes tumultuados tempos eletrônicos. Telefones de milhares de cidadãos foram grampeados. Chefes de Estado e empresas de países amigos, inclusive Brasil, tiveram suas correspondências vasculhadas com intuitos inconfessáveis. Ninguém recebeu pedidos de desculpas por essa clara violação dos direitos fundamentais.

Apesar do alardeado empenho pacifista do ex-mandatário, os conflitos bélicos se alastraram. Para isso, não tem como desconhecer, muito contribuiu a inabilidade do governo norte-americano em seu relacionamento diplomático e no apoio concedido a grupos econômicos interessados na ampliação de negócios.

De tudo quanto exposto sobra, cabe admitir, a constatação de que Obama deixou marca na história contemporânea. Como dito na epígrafe, foi bem melhor que seu antecessor e será, com certeza absoluta, infinitamente melhor que seu sucessor.


O irresistível fascínio da MPB

Cesar Vanucci 

"Onde se toca boa música,
 não pode haver coisa má."
(Cervantes)

Na celebração de seu centenário, o Lions Clube homenageará, semana vindoura, com um caprichado ato cívico e cultural no Teatro Sesiminas, cidadãos e instituições centenários. Os 100 anos do samba não ficarão fora dos festejos. A magnifica Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e o esplêndido Coral do Sesi se encarregarão de reviver, em espetáculo de gala, peças imortais da MPB.

O samba, caríssimos leitores, foi alvo no passado de impiedosa discriminação. Encarado como reles produto marginal, naquilo que a expressão conceba de mais pejorativo, por conta de falsas crenças culturais então vigentes. Um autêntico “caso de polícia”, como sugestivamente se cantava nas composições de antanho. Tendo como fontes de inspiração genuínos sentimentos e emoções da alma popular acabou sobrepujando as resistências puritanas e retrogradas dessa penosa fase de obscurantismo cultural. É hoje mostrado orgulhosamente ao mundo como expressão maior da incomparável criatividade artística musical brasileira.

Vamos repetir, pausadamente, pra ficar bem gravada: a música brasileira representa, no reconhecimento das ruas universais, um instante mágico, privilegiado, de sublime elevação na escala da inspiração artística.

Não existe neste mundo do bom Deus, onde o diabo costuma armar barraco pra aprontar traiçoeiras malvadezas, quem ouse não se confessar encantado com os sons cheios de vida, líricos e coloridos, lembrando imenso caleidoscópio, de infinitas e variegadas emoções, produzidos à mancheia pelo excepcional time dos artistas brasileiros da música. Um time, sem sombra de dúvida, da maior competência, preparado para ganhar tudo quanto é copa de que participe. A propósito do encantamento suscitado pelo samba vale evocar a lição de mestre Caymi: “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é. É ruim da cabeça, ou doente do pé...”

Quando se fala dos sons musicais brasileiros, dos versos primorosos reunidos em milhares de composições do melhor quilate, não há como esquecer também do ritmo malemolente, único, saído dos instrumentos de percussão. Ele é inconfundível e, também, irreproduzível em outras plagas, mesmo por craques na arte de extrair ruídos sonoros dos  tambores. Produz um barulho de fala muito especial. Junto com os da melodia e letra, que são “barulhos que pensam”, conforme clássico conceito de Victor Hugo, ajuda a mostrar, de modo exultante, a riqueza cultural fabulosa da gente brasileira.

Em tudo quanto é canto deste planeta azul, as músicas brasileiras enternecem e arrebatam. Ary Barroso e Tom Jobim, pra ficar no registro de apenas dois nomes transcendentes da populosa nação dos compositores brasileiros talentosos, deixaram as digitais impressas nos repertórios das mais famosas orquestras, grandes instrumentistas e vocalistas. São assobiados nas ruas. Ouvidos com prazer em todos os lugares onde se toca boa música. Lugares, conforme lembra Cervantes, em que não pode haver coisas más.

Os turistas brasileiros são, vez por outra, envolvidos no exterior por inesperadas ondas de simpatia, que ajudam a quebrar o gelo da recepção costumeiramente oferecida, sobretudo em paragens europeias. É quando a música brasileira pinta no pedaço. Algo assemelhado com o que ocorre, também, quando o futebol aflora nas conversas. Nossa música popular e nosso futebol, apesar dos dilacerantes 7 X 1, têm o condão de identificar lá fora, admiravelmente, o nosso jeito de ser. E produzem, como nenhuma outra ação construtiva consegue fazer, aproximações enriquecedoras e saudáveis.

Acode-me, a esta altura, a lembrança de uma situação singular que experienciei (ora, epa!) em 1995, no longínquo Tibete.

Disponho-me a contar, na sequencia, o que aconteceu, neste acolhedor espaço. Se a memória não tá a fim de me trair, já pela segunda vez. A repetição, diga-se logo, robustece os argumentos da defesa apaixonada que me habituei a fazer da cultura brasileira nas maldatilografadas linhas frequentemente projetadas em letra de forma.


De repente, no Tibete...
  

Cesar Vanucci

"Brasil que eu amo é (...)
o balanço das minhas cantigas e danças."
(Mário de Andrade)

Anunciei na crônica anterior o relato de uma experiência singular, ligada à música popular brasileira, vivenciada em 1995 no distante Tibete. Conto como tudo se deu.

Numa longa e gélida noite, a pressão fora de controle por conta da altitude superior a 4 mil metros, resolvi mandar-me para um estabelecimento do tipo “piano-bar”. A casa, mobiliada com simplicidade, ficava na principal rua de Lhassa. Já alvejado, naquelas cumeeiras impiedosas do teto do mundo, pelo danado do banzo, com a cabeça a ponto de explodir, defrontei-me, dada hora, com outra ameaça séria. Cheguei a imaginar mesmo, pela esmagadora emoção experimentada, que iria ser convocado, logo ali, naquela lonjura toda, a deixar pra todo o sempre este nosso vale eternamente banhado de lágrimas...

Aconteceu quando o pianista, um europeu com o qual não havia trocado, até então, qualquer palavra, e que ignorava minha nacionalidade, resolveu sapecar pra cima da pequena e seleta plateia, turistas estrangeiros na totalidade, um punhado de músicas brasileiras. “Aquarela do Brasil” abriu o desfile. Veio depois o “Vou te contar”, de Jobim. Foi demais. Não deu pra segurar. A emoção ganhou, sem intenção de trocadilho, dimensões himalaianas. O coração velho de guerra disparou adoidado. O ar à volta desapareceu. Um chá ultra amargo, enfiado goela abaixo, garantiu o prestígio da tradicional medicina tibetana composta de ervas, ao permitir recobrasse a condição física.

Ocorre-me lembrar outras prazerosas circunstâncias inesperadas em que, maravilhado, me deparei no exterior com impecáveis interpretações da MPB. Em São Petersburgo, Rússia, deleitei-me com uma banda executando a “Aquarela do Brasil”. Em Santiago, Chile, aplaudi uma retreta de banda militar defronte ao palácio do governo entoando acordes de Ary, Jobim e Chico Buarque.

Pois bem, tudo que está contado aí e já foi dito pratrazmente vale como expressão do enorme fascínio que a música popular brasileira desperta em multidões de todos os sotaques, latitudes e hábitos culturais. Chega, então, o momento de se colocar pra fora, numa pergunta, a perplexidade de muita gente: por que cargas d’água, o rádio e a tevê deste país rico em musicalidade insistem tanto em conceder escandalosa preferência à música estrangeira em suas programações? Outra pergunta: qual o papel das gravadoras estrangeiras e brasileiras nessa estranha e desconcertante partitura?

Convido o leitor destas maldigitadas a pedir numa loja um CD com músicas do Ary Barroso. Não vai ser mole achar. Mas achará, com extrema facilidade, trazido por solícitos vendedores, o que existe de mais representativo do lixo musical alienígena. Um besteirol de sons, imposto pela indústria fonográfica pra consumo de público desprevenido, a render polpudos direitos autorais para compositores e músicos na maior parte sem talento. Gente que, em seus delírios criativos, confunde acordes musicais com barulhada de utensílios metálicos despencando no piso da cozinha...

É sempre hora e vez, assim sendo, de tomar a música brasileira sob proteção. Garantir essa proteção na legislação do país. É o que se deveria também tentar fazer na defesa do idioma contra descabidas agressões perpetradas pela neobobice vernacular, com seu palavreado “macdonaldizado”. Fico torcendo para que brote do Parlamento, algum dia, projeto de lei que defina certas obrigatoriedades para tornar a música brasileira mais divulgada entre nós. Nas rádios, nas tevês, nas lojas, nas festas dançantes, na publicidade. Em benefício da cultura e dos artistas. A música brasileira é patrimônio cultural. Cabe defendê-lo.

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