ASPECTOS TRANSCENDENTES
DA CRIAÇÃO LITERÁRIA
Palestra
do Acadêmico Cesar Vanucci
no dia 14 de abril de 2015,
por ocasião da
celebração de mais
um aniversário de fundação da Amulmig
Nosso
primeiro contato com a Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais deu-se
em 1965, segundo semestre, dois anos depois de sua fundação.
Acabáramos
de vir de muda do interior para a capital.
A
brilhante poeta Eva Reis, conterrânea querida de saudosa recordação,
companheira na Academia de Letras do Triangulo Mineiro, pediu-nos a saudássemos
na assembleia festiva de seu ingresso na Amulmig.
A
sessão festiva, numa tarde de sábado, teve por palco a sede da União dos
Varejistas de Minas Gerais, na avenida Paraná.
“Tu
pisavas nos astros, distraída...”
(Orestes
Barbosa, “Chão de Estrelas”)
No
correr da saudação, fomos inesperadamente aparteados, mais de uma vez, por
ilustre membro da Amulmig, o professor Reis, poeta de reconhecidos méritos. De
maneira polida, mas veemente, ele se contrapôs a conceitos que expendemos sobre
os múltiplos caminhos da linguagem poética. Disse não concordar, jeito algum, com
a opinião de Manuel Bandeira, por nós evocada, a respeito de um verso que o
grande vate apontava como o mais belo da língua portuguesa: “Tu pisavas nos
astros distraída”, trecho do poema de Orestes Barbosa para a melodia “Chão de
Estrelas”, feita em parceria com Silvio Caldas.
Essa
cena, ocorrida há meio século, bateu-nos na lembrança na hora em que dias atrás
nossa estimada Presidente Elizabeth Rennó convocou-nos para fazer uso da palavra
nesta solenidade comemorativa de mais um aniversário da nossa Amulmig.
Comparecemos,
dali pra frente, a muitos outros eventos da entidade, até que, em 2008, para nosso
gaudio e orgulho, recepcionados pela Elizabeth, pelo Abritta e saudados pela
Cely, passamos a fazer parte de seu valoroso quadro de associados.
Guardiã
serena de saberes acumulados
No
desfrute das compensadoras prerrogativas de colega de personagens celebrados
como figuras exponenciais da cultura brasileira, caso da presidente Elizabeth
Rennó, procuramos colocar todo nosso entusiasmo diletante e nossos apoucados dons
para a arte da comunicação, como exigido de seus consócios numa Academia de tão
ricas tradições de cultura, a serviço da palavra utilizada como instrumento
social de construção humana.
A
Amulmig, guardiã serena de saberes acumulados, ensina-nos a todos, praticantes
do oficio das letras, que a arte da comunicação é forma sublime de expressão
dos sentimentos da humanidade. Isso nos estimula a empregar o poder mágico da
palavra, sua força de sedução, para celebrar continuamente a vida. Para
espalhar a beleza. Para expandir a consciência humana, apontar trilhas, criar
condições perenes de ascensão social. Exercitando a curiosidade, apelando para
a imaginação criadora, o homem de letras tem o dever de transmutar o ato de
viver numa aventura poética. “A vida se vive e se escreve”, proclama Pirandelli.
Reafirmação
da inteligência e da cultura
Caros
companheiros,
Compenetrados
da missão que nos é inerente, como acadêmicos, de conferir dinamismo e vibração
às ideias, demarcando e alargando o espaço reservado às ações de construção
humana, queremos registrar que esta comemoração não representa apenas uma marca
a mais, em termos cronológicos, da cintilante trajetória da Amulmig, mas constitui
um novo momento de reafirmação da inteligência e da cultura mineira e
brasileira, carregado de sonhos ardentes, emanados da alma majoritária das ruas
e propagados na voz de seus intérpretes, os praticantes do oficio das letras,
em favor de uma era universal democrática, ecumênica, humanística, concebida
nos corações fervorosos.
A
transcendência na criação literária
Caros
Companheiros,
“Existem
mais coisas entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia.”
(William
Shakespeare)
“Habitamos
uma ilhota desgarrada num infinito oceano coberto de inexplicabilidades.”
(Aldous Huxley)
Com
sua condescendente acolhida, animamo-nos, agora, a passar-lhes algumas
reflexões, baseadas em estritas percepções pessoais, a respeito dos aspectos
transcendentes da criatividade artística. É bom que se mencione, antes de tudo
mais, nossa crença em que os impulsos transcendentes estão sempre por detrás da
obra de arte. Esse é o ponto diferencial na comunicação de qualidade apurada.
Permitimo-nos
ousar, entretanto, para fins das considerações que alinharemos, uma
interpretação mais sutil do transcendente.
A
vida e obra de Chico Xavier
Queremos
nos reportar a uma transcendência com um certo toque místico. E isso nos arremete
de forma impetuosa, logo de cara, à obra de ninguém mais, ninguém menos que Chico
Xavier.
Quinhentos
livros brotaram do cérebro, do coração, das mãos, do espírito provido de
invulgares dons espirituais dessa criatura iluminada.
Como
explicar algo tão espantoso quanto a obra de Chico? Diante dela se queda,
perplexo, o saber cientifico consolidado, com suas posturas e regras
dogmáticas, com seus rígidos esquemas canônicos.
Como
explicar essa torrente caudalosa de produção literária requintada, de conteúdo
edificante, encharcada de humanismo, derivada de um processo mágico a que, na
falta de uma expressão mais eloquente, se deu a denominação de psicografia?
Que
ligações misteriosas são essas que favorecem a frutificação exuberante de
ideias generosas, arrebatantes, que induzem homens e mulheres de boa vontade a
descobrirem novos padrões de comportamento social?
Que
força avassaladora é essa que, por meio da palavra, torna uma criatura simples,
meiga, de características nazarenas, um mensageiro de boas novas que ajudam na
edificação de mundo mais fraterno?
Os
escritos de Chico Xavier ganharam o mundo. Estão nos lares, nas bibliotecas, na
televisão, no cinema, no teatro. A primeira peça teatral neles inspirada, “Além
da vida”, produzida pelo meu saudoso mano Augusto Cesar Vanucci, primeiro
brasileiro ganhador dos famosos troféus “Emmy” e “Ondas”, é encenada todos os
dias, há mais de meio século, nalgum teatro.
O
lado místico de Guimarães Rosa
Caros
Companheiros,
Queremos
nos abstrair, nas considerações subsequentes, de quaisquer especulações de
sentido ideológico-religioso, naturalmente inseparáveis da história de Chico
Xavier, para sublinhar, agora, como fruto também de meras percepções pessoais,
que essas manifestações especiais de transcendência no plano da criação
intelectual, podem irromper, também, no itinerário de praticantes do oficio da
palavra não comprometidos declaradamente com causas de proselitismo religioso e
espiritual.
Poderíamos
exemplificar com o caso do famoso escritor J.J.Benites, espanhol, autor da série
“Operação Cavalo de Troia”, obra que bateu índices de vendagem em todos os
idiomas. Mas pela limitação do tempo, que corre desenvolto, vamos deter-nos na
apreciação apenas de mais um outro exemplo de talento literário atingido pelos
dardos flamejantes da inspiração ultra transcendente.
Vamos
falar, talvez para surpresa de muitos, imagino, de João Guimarães Rosa.
“Sua obra
suscita mais tentativas de decifração do que a de qualquer outro escritor.”
(Paulo
Rónai)
Guima são
muitos. O universo literário rosiano, povoado de pontos cintilantes, parece ser
regido pela mecânica cósmica da expansão contínua. Ganha, de tempos em tempos,
nova dimensão. Os observadores deparam-se, ao devassar com suas lunetas os
horizontes ilimitados da obra do autor de “Grande Sertão, Veredas”, com
descobertas as mais fascinantes. Nenhuma delas ofusca a outra. Tudo faz parte
de um todo harmonioso, que fala das múltiplas e inesgotáveis facetas de um
gênio da criação literária. Um intelectual que escalou altitudes himalaianas e
soube, como bem poucos, valer-se do recado artístico para atingir,
certeiramente, as profundezas da alma humana.
Guimarães
Rosa são muitos
Guimarães
Rosa são muitos. E, singularmente, único, sem que se possa vislumbrar na
afirmativa qualquer paradoxo. Revela-se único ao ostentar - categorizado
mensageiro da boa palavra literária, da palavra que encanta e arrebata - essa
profusão de saberes incomuns que tornam tão reluzente o seu legado de ideias.
Há o
Guimarães recriador de linguajares de ricas cadências e tinturas. Há o
paisagista de um sertão bravio, espantosamente real. Uma faixa de chão de
consideráveis proporções dominada por ritmos e critérios peculiares de vida,
inalcançáveis na visão utilitarista urbana. Há o retratista portentoso de perfis
inesquecíveis. Desenhista de tipos esfuziantes na maneira singela de agarrar as
dádivas da vida, projetados das emoções e paixões das multidões anônimas. Há o
contador insuplantável de estórias brotadas das vivências simples da gente do
povo, com seus ditames éticos rudes que costumam ressoar incompreensíveis em
ouvidos eruditos. E há, ainda, o prosador clássico dos achados poéticos
inebriantes, das metáforas antológicas e das alegorias eletrizantes.
Manifestações
mágicas na obra de Guima
E eis
que, agora, de repente, vemos em descoberta inesperada despontar um Guimarães
Rosa de insuspeitados (e confessos) envolvimentos com as manifestações mágicas,
de certo modo inextricáveis, da paranormalidade. A intrigante revelação chega
num texto precioso de Guimarães Rosa, publicado há mais de 50 anos no “Estado
de Minas”, citando fenômenos paranormais presentes na vasta produção literária
que lhe valeu merecidamente ser incluído na relação dos 100 maiores escritores
de todos os tempos.
No artigo
em questão, esquecido por décadas, Guimarães solta o coração para confissões
que abrem instigantes perspectivas na avaliação de sua fabulosa obra. Comenta
seus “sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas,
toda a sorte de avisos e pressentimentos.” Um texto preciosíssimo que deixa
evidenciados, em boa interpretação parapsicológica, os dons paranormais de que
o escritor foi, iniludivelmente, possuidor.
A confissão
de Guimarães
Esta
confissão do autor de “Sagarana”, falando de seus dons paranormais, está
contida num artigo que tem por título “Vida – arte – e mais?”.
Passamos,
na sequência, à leitura desse trabalho inédito.
“Tenho de segredar que – embora por formação ou
índole oponha escrúpulo crítico a fenômenos paranormais e em principio rechace
a experimentação metapsiquica – minha vida sempre e cedo se teceu de sutil
gênero de fatos. Sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de
avisos e pressentimentos. Dadas vezes, a chance de topar, sem busca, pessoas,
coisas e informações urgentemente necessárias.
No plano da arte e criação – já de si em boa parte
suplinar ou supraconsciente, entremeando-se nos bojos do mistério e equivalente
às vezes quase à reza – decerto se propõem mais essas manifestações. Talvez
seja correto eu confessar como tem sido que as estórias que apanho diferem
entre si no modo de surgir. À Buriti (Noites do sertão), por exemplo, quase
inteira, “assisti”, em 1948, num sonho duas noites repetido. Conversa de Bois
(Sagarana), recebi-a, em amanhecer de sábado, substuindo-se a penosa versão diversa,
apenas também sobre viagem de carro-de-bois e que eu considerara como
definitiva ao ir dormir na sexta. A Terceira Margem do Rio (Primeiras estórias)
veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão “de fora”, que
instintivamente levantei as mãos para “pegá-la”, como se fosse uma bola vindo
ao gol e eu o goleiro. Campo Geral (Miguilim e Manuelzão) foi caindo já feita
no papel, quando eu brincava com a máquina, por preguiça e receio de começar de
fato um conto, para o qual só soubesse um menino morador à borda da mata e duas
ou três caçadas de tamanduás e tatus; entretanto, logo me moveu e apertou, e,
chegada ao fim, espantou-se a simetria e ligação de suas partes. O tema de O
Recado do Morro (No Urubuquá, no Pinhém) se formou aos poucos, em 1950, no
estrangeiro, avançado somente quando a saudade me obrigava, talvez também sob
razoável ação do vinho ou do conhaque. Quanto ao Grande sertão: Veredas, forte
coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e
protegido – por forças ou corrente muito estranhas.
Aqui, porém, o caso é um romance, que faz anos
comecei e interrompi. (Seu título: A Fazedora de Velas). Decorreria, em fins do
século passado, em antiga cidade de Minas Gerais, e para ele fora já ajuntada e
meditada à massa de elementos, o teor curtido na ideia, riscado o enredo em
gráfico. Ia ter principalmente, cenário interno, num sobrado, do qual –
inventado fazendo realidade – cheguei a conhecer todo canto e palmo. Contava-se
na primeira pessoa, por um solitário, sofrido, vivido, ensinado. Mas foi
acontecendo que a exposição se aprofundasse, triste, contra meu entusiasmo. A
personagem, ainda enferma, falava de uma sua doença grave. Inconjurável, quase
cósmica, ia-se essa tristeza passando para mim, me permeava. Tirei-me, de sério
medo. Larguei essa ficção de lado.
O que do livro havia, e o que se referia,
trouxou-se em gaveta. Mas as coisas impalpáveis andavam já em movimento. Daí a
meses, ano-e-meio, ano – adoeci, e a doença imitava, ponto por ponto, a do
Narrador! Então? Más coincidências destas calam-se com cuidado, em claro não se
comentam. Outro tempo após, tive de ir, por acaso, a uma casa – onde a sala
seria, sem toque ou retoque, a do romanceado sobrado, que da imaginação eu
tirara, e decorara, visualizado frequentando-o por oficio. Sei quais foram,
céus, meu choque e susto. Tudo isto é verdade. Dobremos de silêncio.”
O que nos
sugere o escrito de Guimarães
Até aqui
a fala por inteiro foi de Guimarães Rosa.
Cuidemos
de comentá-la.
Resta assim provada, no depoimento do próprio autor, a
incomum capacidade de Guimarães Rosa de poder atingir, com prodigiosa
frequência, latitudes superiores na captação das energias sutis que compõem
este nosso universo povoado de inexplicabilidades. Energias essas ainda
indecifráveis do ponto de vista do conhecimento científico consolidado.
Depois de
anotar que, por formação ou índole costumava opor “escrúpulo crítico a fenômenos paranormais”, o escritor
viu-se obrigado a reconhecer que sua vida, sempre e desde cedo, “se teceu de sutil gênero de fatos.”
E que fatos tão singulares, “entremeando-se
nos bojos do mistério e equivalente às vezes quase à reza”, são mesmo
esses, afinal de contas? A resposta chega de imprevisto, fulminante, de forma a
esmorecer costumeiras dúvidas suscitadas pela proverbial dificuldade humana em
avaliar situações consideradas fantásticas, misteriosas ou enigmáticas: “sonhos premonitórios, telepatia,
intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e
pressentimentos.”
Foi, por exemplo,
num sonho premonitório, “duas noites
repetido”, que a estória de “Buriti”, constante de “Noites do Sertão”,
tomou forma em 1948. É o que atesta, com franqueza e sem rebuços, o autor de
“Tutaméia”. Os estudiosos dos fenômenos abarcados pela Parapsicologia não
hesitarão em apontar, nessa revelação, a faculdade de precognição entre os dons
singulares do escritor. E qual classificação atribuir ao relato de Guimarães
concernente a “Conversa de bois”, do enredo de “Sagarana”? “(...) Recebi-a, em amanhecer de sábado,
substituindo-se a penosa versão diversa, apenas também sobre viagem de
carro-de-bois e que eu considerava como definitiva ao ir dormir na sexta”,
sublinha o autor. O ato de haver “recebido” dá o que pensar.
Esse
mesmo processo intrigante de “recepção”, dir-se-á (à falta de definição melhor)
mágica, ocorre em muitos outros momentos da fecunda trajetória literária de
Guimarães, segundo informações dele próprio. É assim em “A terceira margem do
rio” (“Primeiras estórias”). Assim, igualmente, em “Campo Geral”. (“Miguelim e
Manuelzão”). Uma das estórias brotou na rua, “em inspiração pronta e brusca”, vinda “de fora”. A outra “foi
caindo já feita no papel” (...) “e,
chegada ao fim, espantou-se a simetria e a ligação de suas partes”.
Escrita automática,
canalização ou ...?
Será que
a hipótese da “escrita automática”, também conhecida por psicografia, pode ser
encaixada como tentativa de explicação? Ou o que aconteceu guardará sinais de
similitude, de alguma maneira, com um “esclarecimento” que nos foi passado, de
certa feita, pelo consagrado autor espanhol J.J.Benitez? Perguntamos-lhe em
quais fontes se inspirara para o impressionante relato sobre a vida de Cristo
que compõe a saga “Operação Cavalo de Tróia.” Pelo que deduzimos da resposta,
tudo provinha de um manancial de conhecimentos existente num plano superior. As
informações teriam sido obtidas por percepção extrassensorial, um tipo de
“canalização” ainda não devidamente codificado. Guimarães Rosa parece querer
dizer coisa parecida em seu artigo, quando fala de “Grande Sertão, Veredas”:
“(...) forte coisa e comprida demais
seria tentar fazer crer como foi (o livro) ditado, sustentado e protegido – por
forças ou correntes muito estranhas”.
A
precognição ganha sentido, mais uma vez, no caso de um outro romance que “faz anos, comecei e interrompi”
(“A fazedora de velas”). A
doença que veio a acometer o escritor, bem como a visualização antecipada que
teve do interior de uma casa visitada, anos depois, “por acaso”, que haviam
sido projetadas no romance, causando-lhe “choque e susto”, são elementos a mais
a considerar na análise das fantásticas situações, de características
iniludivelmente paranormais, vividas pelo genial Guimarães Rosa.
Atenção
maior dos estudiosos
Não há
como negar: as instigantes revelações acerca da paranormalidade do escritor,
ouvidas de sua própria boca, reclamam atenções maiores dos estudiosos de sua
fabulosa obra.