sexta-feira, 26 de abril de 2013

CONVITE AOS AMIGOS DO BLOG

 


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Terroristas avulsos

Cesar Vanucci *

“As pessoas estão conscientes de que o terrorismo
é uma ameaça real e há muito pouco a fazer para evitá-lo.”
(Brooke Rogers, professora do Departamento de
Estudos de Guerra do King’s College, de Londres)

Quem vê cara, não vê coração. Os dois tresloucados chechenos responsáveis pelo horror da maratona de Boston revalidaram o conhecido ditado. Quem conseguiria imaginar, fitando semblantes quase angelicais, aquele jeitão adolescente dos dois, inteirando-se de seus padrões de conduta na comunidade, que nas profundezas da alma de ambos, naturalmente inacessíveis à percepção das pessoas próximas, pudessem se alojar uma concepção radical tão furibunda sobre a vida e sobre o mundo, uma inclinação fratricida tão desesperada?

A ocorrência de Boston adicionou à crônica terrorista novo e inesperado ingrediente. Impactante tanto quanto qualquer outro. A figura do “terrorista avulso” está entrando em cena atabalhoadamente sem pedido de licença. Desconectado aparentemente das grandes “centrais terroristas”, propõe-se a tocar uma “guerra particular” contra a humanidade. Deixa explícito o desejo de agir solitariamente, seguindo unicamente os ditames de sua mente doentia. Recorre a uma tecnologia de destruição que pode ser tida como artesanal, de fácil confecção.

Arma uma bomba simplória, de efeitos devastadores, na cozinha doméstica. Bota pra fora, preparando-se psicologicamente para a desvairada “missão” ressentimentos acumulados, instintos vis, mórbidos recalques. De repente, dá por concluído um projeto que seja capaz de causar muita dor e desolação.

Cabe, aí, então, ao desvairado guerreiro sem causa lançar-se a campo à cata de uma aglomeração popular, de um evento concorrido. Ajeita-se no meio da multidão, aciona um dispositivo eletrônico banal, mas de efeito letal, dando vaza aos seus instintos de perversidade. Atinge com eficácia o objetivo almejado de espalhar o pavor a varejo.
E a tragédia se consuma, com vidas ceifadas e dilaceradas.

Mesmo não desconhecendo que o terror da guerra possa estimular a guerra do terror, reconhecendo, também, como abomináveis uma e outra coisa, a esmagadora maioria de criaturas que, no cotidiano, cultivam valores de exaltação da dignidade humana ficam apoderadas da maior indignação cada vez que se deparam com essas cenas de dor produzidas pelo terrorismo desalmado.

Boston tornou-se referência cruel, a mais recente, de uma história sinistra. Uma história que passa ao cidadão comum a arrepiante sensação de que, na escalada das diversas variáveis do terrorismo neste mundo endoidecido, poderá haver sempre uma situação inimaginável a encarar. Uma história, portanto, muito difícil de ser enfrentada. Revolta, magoa e deixa sumamente infelizes bilhões de seres humanos.


Você sabe com quem tá falando?

 “Poucas coisas na convivência humana possuem feição tão
assustadora quanto a arrogância dos que se julgam poderosos.”
(Antônio Luiz da Costa, professor)

“Você sabe com quem tá falando?” Taí uma espécie de senha universal, cunhada desde priscas eras, por um tipo de gente deslumbrada com o poder e interessada em traçar, alto e bom som, as prerrogativas de quem manda e as obrigações de quem obedece.

O exercício democrático, a disseminação de conceitos sobre direitos essenciais, a transparência (a cada dia que passa mais reclamada) nas ações de genuíno interesse coletivo contribuem para refrear, de certa maneira, essas demonstrações de prepotência, causadoras de tantos transtornos e injustiças na convivência social. Os temores de exposição pública danosa à imagem pessoal contêm, algumas vezes, os ímpetos de indivíduos com formação mandonista habituados a se fazerem ouvir sem contestações, ou segundo seu egocentrismo, a se fazerem respeitar. Mas, de quando em vez, o controle se lhes pode escapar. Os impulsos afloram e as máscaras das conveniências sociais caem. Em instantes assim, o “você sabe com quem tá falando?” irrompe com fragor de sentença.

Foi o que aconteceu, recentemente, com aquela socialite carioca pega em flagrante num delito de trânsito. Estado de espírito alterado, chamada às falas, usou primeiramente de todo charme de que se sentiu capaz para persuadir os guardas a não enquadrá-la nos conformes da lei. Apelou, ao depois, pra tentativa de suborno. Saindo-se mal na empreitada, bradou triunfalmente, por derradeiro, que sendo rica e poderosa não iria mesmo ser presa, já que cadeia é feita pra pobre e negro. Quebrou a cara. Foi recolhida, com toda sua elegante insolência, ao xilindró. Só logrou a liberdade depois de pagar fiança. Desfrutou ainda do “direito” de ter estampado o rosto bem maquiado por período razoável nas colunas. Não as sociais.

Em seu apreciado programa na Itatiaia, Eduardo Costa relatava, indoutrodia, um episódio interessantíssimo envolvendo personagem familiarizado com essas atrevidas ações intimidatórias nas relações com zelosos agentes da lei. Caso é que o filho de um figurão, flagrado em estado etílico ao volante numa blitz de rua, foi solicitado a apresentar as carteiras de identidade e de habilitação. Fez o que pôde pra sair pela tangente, argumentando, na busca de cumplicidade, ser filho de Secretário de Estado. A cada vez que o policial pedia os documentos, ele respondia, em tom categórico, dando a conversa praticamente por encerrada, com a alegação de ser filho de alguém encastelado no poder. O agente, explicando, cortez e pacientemente, já estar ciente desse seu honroso vínculo familiar, insistia na entrega dos documentos, de conformidade com as exigências legais. O rapaz, não se dando por achado, resolveu elevar o tom de voz ao declinar outra vez mais o parentesco que, em seu bestunto, lhe asseguraria a condição de poder sair incólume, quer dizer impune, da enrascada em que se meteu. A arrogância ganhou tamanha proporção que o agente da lei acabou, como se diz no popular, “queimando no golpe”. Confessando-se injuriado face à intimidação, revelou-se disposto a quebrar conscientemente, naquele momento, quaisquer que viessem a ser as consequências do gesto, o compromisso profissional, religiosamente acatado na carreira, de empregar com moderação a força física no enfrentamento de situações adversas. Substituiu o compromisso pelo prazer de aplicar um sonoro tabefe nas fuças de uma figura tão presunçosa. O sopapo teve sabor de catarse.

Essa historinha traz à tona um outro episódio transcorrido, décadas atrás, nos chamados “anos de chumbo” de tão doloridas recordações. O primogênito de um general reformado “linha dura” foi detido numa operação policial, junto com colegas, por conta de baderna aprontada num bar. Submetido aos interrogatórios de praxe no distrito, invocou na maior das insolências a condição de “filho”, encarando com ar zombeteiro os agentes.

Impactada com a revelação, a autoridade policial considerou de bom alvitre, pelo sim pelo não, confirmar o que lhe estava sendo passado. Ligou para a casa do militar graduado, pediu mil desculpas pelo adiantado da hora e expôs, meio sem graça, o que tinha acontecido. Ouviu do interlocutor, o general, a taxativa declaração de que jamais um filho seu, tendo em vista a sólida formação moral recebida no respeitável ambiente familiar, poderia ser flagrado na situação delituosa narrada. A pessoa recolhida ao xadrez seria, com toda certeza, um impostor.

Pela inominável façanha de tentar passar-se por filho de uma figura tão proeminente e conceituada, o rapaz comeu “o pão que o diabo amassou” em sua passagem pela cadeia. Não fosse pela oportuna intervenção dos irmãos, informados, só horas mais tarde, dos singulares pormenores da história, o “corretivo” que se lhe foi aplicado madrugada afora poderia perfeitamente ter-se estendido, sem choro nem vela, manhã (e, talvez, tarde) adentro.


quarta-feira, 17 de abril de 2013

Um ensaio literário

  O LADO MÍSTICO DE GUIMARÃES ROSA


Cesar Vanucci

“Mexendo em velhos papéis,encontrei
um texto precioso de Guimarães Rosa...”
(Luiz de Paula Ferreira, escritor)
Guima são muitos. O universo literário rosiano, povoado de pontos cintilantes, parece ser regido pela mecânica cósmica da expansão contínua. Ganha, de tempos em tempos, nova dimensão. Os observadores deparam-se, ao devassar com suas lunetas os horizontes ilimitados da obra do autor de “Grande Sertão, Veredas”, com descobertas as mais fascinantes. Nenhuma delas ofusca a outra. Tudo faz parte de um todo harmonioso, que fala das múltiplas e inesgotáveis facetas de um gênio da criação literária. Um intelectual que escalou altitudes himalaianas e soube, como bem poucos, valer-se do recado artístico para atingir, certeiramente, as profundezas da alma humana.
Guimarães Rosa são muitos. E, singularmente, único, sem que se possa vislumbrar na afirmativa qualquer paradoxo. Revela-se único ao ostentar - categorizado mensageiro da boa palavra literária, da palavra que encanta e arrebata - essa profusão de saberes incomuns que tornam tão reluzente o seu legado de idéias.
Há o Guimarães recriador de linguajares de ricas cadências e tinturas. Há o paisagista de um sertão bravio, espantosamente real. Uma faixa de chão de consideráveis proporções dominada por ritmos e critérios peculiares de vida, inalcançáveis na visão utilitarista urbana. Há o retratista portentoso de perfis inesquecíveis. Desenhista de tipos esfuziantes na maneira singela de agarrar as dádivas da vida, projetados das emoções e paixões das multidões anônimas. Há o contador insuplantável de estórias brotadas das vivências simples da gente do povo, com seus ditames éticos rudes que costumam ressoar incompreensíveis em ouvidos eruditos. E há, ainda, o prosador clássico dos achados poéticos inebriantes, das metáforas antológicas e das alegorias eletrizantes. “O alquimista do coração”: é assim que ele é mostrado em livro do escritor mineiro José Maria Martins. Sua literatura, segundo ainda o escritor citado, é levada a extremos de sutileza e inovação, ampliada “a recantos do mar da existência nunca d’antes explorados”, já que ele “tinha a capacidade de transpor a fronteira que separa o universo das manifestações temporais daquele da casualidade profunda”.
E eis que, agora, de repente, desponta um Guimarães Rosa de insuspeitados (e confessos) envolvimentos com as manifestações mágicas, de certo modo inextricáveis, da paranormalidade. A intrigante revelação chega por intermédio de um respeitado intelectual, com apreciável contribuição à causa da cultura. O dileto amigo, Luiz de Paula Ferreira, escritor, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas, figura de relevo na cena empresarial. A carta que me envia diz tudo: “Prezado Cesar, Mexendo em velhos papeis, encontrei um texto precioso de Guimarães Rosa, publicado há quase 40 anos no “Estado de Minas”, citando fenômenos paranormais presentes na vasta produção literária que lhe valeu merecidamente ser incluído na relação dos 100 maiores escritores de todos os tempos. Conhecendo seu gosto pelo estudo de fenômenos dessa natureza, estou anexando o texto que é muito rico e merece ser avaliado e divulgado em suas crônicas. Referindo-se ao “Grande Sertão, Veredas”, ele diz: “Quanto ao “Grande Sertão, Veredas”, forte coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e protegido por forças ou correntes muito estranhas.” Do amigo, Luiz de Paula Ferreira”.
No artigo em questão, Guimarães solta o coração para confissões que abrem instigantes perspectivas na avaliação de sua fabulosa obra. Comenta seus “sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos.” Um texto preciosissimo que deixa evidenciados, em boa interpretação parapsicológica, os dons paranormais de que o escritor era, indiscutivelmente, possuidor.
Na sequência, a reprodução desse texto notável.

A confissão de Guimarães

Sua obra suscita mais tentativas de decifração
 do que a de qualquer outro escritor.”
(Paulo Rónai)
  
Conforme já contado, Guimarães Rosa confessou, 40 anos atrás, em artigo no “Estado de Minas”, reavivado pelo escritor Luiz de Paula Ferreira, seu entranhado envolvimento com fenômenos ligados às percepções extra-sensoriais. Do instigante texto ressalta claro que sua obra literária – obra que “suscita mais tentativas de decifração do que a de qualquer outro escritor”, segundo Paulo Rónai – foi marcada, desde sempre, por intuições e impulsos mágicos, de nítida configuração parapsicológica, inexplicáveis à luz do conhecimento consolidado.
Mas já é tempo de satisfazer a curiosidade do leitor, a respeito da confissão do autor de “Sagarana”, falando de seus dons paranormais. O artigo tem por título “Vida – arte – e mais?”.
“Tenho de segredar que – embora por formação ou índole oponha escrúpulo crítico a fenômenos paranormais e em principio rechace a experimentação metapsiquica – minha vida sempre e cedo se teceu de sutil gênero de fatos. Sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos. Dadas vezes, a chance de topar, sem busca, pessoas, coisas e informações urgentemente necessárias.
No plano da arte e criação – já de si em boa parte suplinar ou supraconsciente, entremeando-se nos bojos do mistério e equivalente às vezes quase à reza – decerto se propõem mais essas manifestações. Talvez seja correto eu confessar como tem sido que as estórias que apanho diferem entre si no modo de surgir. À Buriti (Noites do sertão), por exemplo, quase inteira, “assisti”, em 1948, num sonho duas noites repetido. Conversa de Bois (Sagarana), recebi-a, em amanhecer de sábado, substuindo-se a penosa versão diversa, apenas também sobre viagem de carro-de-bois e que eu considerara como definitiva ao ir dormir na sexta. A Terceira Margem do Rio (Primeiras estórias) veio-me, na rua, em inspiração pronta e brusca, tão “de fora”, que instintivamente levantei as mãos para “pegá-la”, como se fosse uma bola vindo ao gol e eu o goleiro. Campo Geral (Miguilim e Manuelzão) foi caindo já feita no papel, quando em brincava com a máquina, por preguiça e receio de começar de fato um conto, para o qual só soubesse um menino morador à borda da mata e duas ou três caçadas de tamanduás e tatus; entretanto, logo me moveu e apertou, e, chegada ao fim, espantou-se a simetria e ligação de suas partes. O tema de O Recado do Morro (No Urubuquá, no Pinhém) se formou aos poucos, em 1950, no estrangeiro, avançado somente quando a saudade me obrigava, talvez também sob razoável ação do vinho ou do conhaque. Quanto ao Grande sertão: Veredas, forte coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e protegido – por forças ou corrente muito estranhas.
Aqui, porém, o caso é um romance, que faz anos comecei e interrompi. (Seu título: A Fazedora de Velas). Decorreria, em fins do século passado, em antiga cidade de Minas Gerais, e para ele fora já ajuntada e meditada à massa de elementos, o teor curtido na idéia, riscado o enredo em gráfico. Ia ter principalmente, cenário interno, num sobrado, do qual – inventado fazendo realidade – cheguei a conhecer todo canto e palmo. Contava-se na primeira pessoa, por um solitário, sofrido, vivido, ensinado. Mas foi acontecendo que a exposição se aprofundasse, triste, contra meu entusiasmo. A personagem, ainda enferma, falava de uma sua doença grave. Inconjurável, quase cósmica, ia-se essa tristeza passando para mim, me permeava. Tirei-me, de sério medo. Larguei essa ficção de lado. O que do livro havia, e o que se referia, trouxou-se em gaveta. Mas as coisas impalpáveis andavam já em movimento. Daí a meses, ano-e-meio, ano – adoeci, e a doença imitava, ponto por ponto, a do Narrador! Então? Más coincidências destas calam-se com cuidado, em claro não se comentam. Outro tempo após, tive de ir, por acaso, a uma casa – onde a sala seria, sem toque ou retoque, a do romanceado sobrado, que da imaginação eu tirara, e decorara, visualizado freqüentando-o por oficio. Sei quais foram, céus, meu choque e susto. Tudo isto é verdade. Dobremos de silêncio.”

Acontecências paranormais

 “Tudo isto é verdade. Dobremos de silêncio.”
(Guimarães Rosa, em artigo escrito há 40 anos)

Restou cabalmente provada, no depoimento do próprio autor aqui reproduzido, a incomum capacidade de Guimarães Rosa de poder atingir, com prodigiosa freqüência, latitudes superiores na captação das energias sutís que compõem este nosso universo povoado de inexplicabilidades. Energias essas ainda indecifráveis do ponto de vista do conhecimento científico consolidado.
Depois de anotar que, por formação ou índole costumava opor “escrúpulo crítico a fenômenos paranormais”, o escritor viu-se obrigado a reconhecer que sua vida, sempre e desde cedo, “se teceu de sutil gênero de fatos.” E que fatos tão singulares, “entremeando-se nos bojos do mistério e equivalente às vezes quase à reza”, são mesmo esses, afinal de contas? A resposta chega de imprevisto, fulminante, de forma a esmorecer costumeiras dúvidas suscitadas pela proverbial dificuldade humana em avaliar situações consideradas fantásticas, misteriosas ou enigmáticas: “sonhos premonitórios, telepatia, intuições, séries encadeadas fortuitas, toda a sorte de avisos e pressentimentos.”
Foi, por exemplo, num sonho premonitório, “duas noites repetido”, que a estória de “Buriti”, constante de “Noites do Sertão”, tomou forma em 1948. É o que atesta, com franqueza e sem rebuços, o autor de “Tutaméia”. Os estudiosos dos fenômenos abarcados pela Parapsicologia não hesitarão em apontar, nessa revelação, a faculdade de precognição entre os dons singulares do escritor. E qual classificação atribuir ao relato de Guimarães concernente a “Conversa de bois”, do enredo de “Sagarana”? “(...) Recebi-a, em amanhecer de sábado, substituindo-se a penosa versão diversa, apenas também sobre viagem de carro-de-bois e que eu considerava como definitiva ao ir dormir na sexta”, sublinha o autor. O ato de haver “recebido” dá o que pensar. Esse mesmo processo intrigante de “recepção”, dir-se-á (à falta de definição melhor) mágica, ocorre em muitos outros momentos da fecunda trajetória literária de Guimarães, segundo informações dele próprio. É assim em “A terceira margem do rio” (“Primeiras estórias”). Assim, igualmente, em “Campo Geral”. (“Miguelim e Manuelzão”). Uma das estórias brotou na rua, “em inspiração pronta e brusca”, vinda “de fora”. A outra “foi caindo já feita no papel” (...) “e, chegada ao fim, espantou-se a simetria e a ligação de suas partes”. Será que a hipótese da “escrita automática”, também conhecida por psicografia, pode ser encaixada como tentativa de explicação? Ou o que aconteceu guardará sinais de similitude, de alguma maneira, com um “esclarecimento” que me foi passado, de certa feita, pelo consagrado autor espanhol J.J.Benitez? Perguntei-lhe em quais fontes se inspirara para o impressionante relato sobre a vida de Cristo que compõe a saga “Operação Cavalo de Tróia.” Pelo que deduzi da resposta, tudo provinha de um manancial de conhecimentos existente num plano superior. As informações teriam sido obtidas por percepção extra-sensorial, um tipo de “canalização” ainda não devidamente codificado. Guimarães Rosa parece querer dizer coisa parecida em seu artigo, quando fala de “Grande Sertão, Veredas”: “(...) forte coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi (o livro) ditado, sustentado e protegido – por forças ou correntes muito estranhas”.
A precognição ganha sentido, mais uma vez, no caso de um outro romance que “faz anos, comecei e interrompi” (“A fazedora de velas”). A doença que veio a acometer o escritor, bem como a visualização antecipada que teve do interior de uma casa visitada, anos depois, “por acaso”, que haviam sido projetadas no romance, causando-lhe “choque e susto”, são elementos a mais a considerar na análise das fantásticas situações, de características iniludivelmente paranormais, vividas pelo genial Guimarães Rosa.
Não há como negar: as instigantes revelações acerca da paranormalidade do escritor, ouvidas de sua própria boca, reclamam atenções maiores dos estudiosos de sua fabulosa obra.

Cartas do médico Guimarães

“Uma pequena preciosidade.”
(José Dias Lara, escritor, estudioso da obra de Guimarães Rosa)
  
Nas três crônicas anteriores – “Guimarães Rosa”, “Confissão de Guimarães” e “Acontecências paranormais” -, andei deitando falação acerca dos insuspeitados, singulares, e, como se viu depois, confessos dons de percepção extrasensorial do genial escritor. As considerações alinhadas se basearam num artigo, de 40 anos atrás, em que o próprio Guima narra suas incríveis experiências nessa enigmática seara. O artigo me foi encaminhado por um grande amigo, o escritor e historiador Luiz de Paula Ferreira, um dos maiores empresários do ramo têxtil da América Latina.
Das crônicas aqui estampadas tomou conhecimento o respeitado homem de letras José Dias Lara, ex-governador do Lions, educador emérito, membro da Academia Mineira de Leonismo, onde ocupa a cadeira que tem Guimarães Rosa como patrono. Estudioso das coisas ligadas ao encantador universo rosiano, Lara detém valiosas informações sobre a vida e a obra do autor de “Grande Sertão, Veredas”. Numa amável correspondência, registra sua surpresa diante do artigo de Guimarães: “O tal artigo, de 40 anos atrás – que desconhecia – talvez seja mais uma das excentricidades do velho Guima, que ele as tinha em bom número”. No desdobramento da mensagem, presenteia-me, conforme suas palavras, com “uma pequena preciosidade”.
Ouçamos de sua própria boca as explicações: “Sabe-se que Guimarães era de falar pouco e escrever muito, particularmente cartas: era um missivista de escol. E isto já fazia, bem antes de tornar-se o notável escritor que todos conhecemos. Ainda era o dr. João, médico em Itaguara, nos idos de 1932; são desse tempo as cartas de que lhe envio algumas cópias – uma pequena preciosidade – uma delas até com uma fórmula medicamentosa para manipular. Linguagem simples para seu povo muito simples. Eram os primeiros passos de um bom médico, que se fez grande nas letras nacionais.”
O destinatário de todas as cartas, redigidas pela ortografia da época, datadas de 1932, a caligrafia firme e desenvolta, é um senhor de nome Manoel, residente no Mambre, próximo a Itaguara, onde o médico Guimarães Rosa clinicava. Em tom assaz cordial, evidenciando o grau de amizade existente entre os dois, Rosa acompanha o tratamento de pessoa próxima ao companheiro Manoel. Indica procedimentos terapêuticos incluindo aí, até mesmo, receitas médicas caseiras, de uso corrente naqueles tempos. Abaixo a reprodução das duas primeiras cartas-receitas. As outras ficam para depois.
“Itaguara, 22 maio 932  Prezado Manoel,  Abraços, Seguem os apetrechos. Faça o serviço com jeito, e mande-me a ferramenta logo depois. Explique ao povo da casa o modo de usar os remédios.
Recomende quanto à hygiene. Mande fazer também uma lavagem intestinal. Será bom você mandar-me uma informaçãozinha por escripto. Recomendações aos seus. Abrace por mim o velho. Estou com saudade do agradável Mambre e, principalmente, dos seus bondosos moradores. Muito grato por todas as finezas; desculpe-me os incômodos. Do amigo   J. Guimarães Rosa”
“Prezado Manoel  Cumprimentos aos seus. Continue a mandar fazer as lavagens intestinaes, bem como as vaginaes. A doente deve tomar, na maior quantidade possível, chá de cabellos de milho adoçado. A alimentação deve ser reforçada, com prudência, porem. Um apertado abraço do amigo Guimarães Rosa.!

 Receitas de Rosa


“... aplicar angús quentes no logar da dor.”
(Prescrição do dr. João Guimarães Rosa)
  
Esta crônica ocupa-se de textos inéditos de Guimarães Rosa datados de 1932. Não se trata, já vimos, de escritos literários, mas de mensagens coloquiais, em tom afetuoso, assinadas pelo médico dr. João Guimarães Rosa. Ele exercia a profissão em Itaguara, interior deste imenso país das Geraes. O destinatário, amigo dileto, era o fazendeiro Manoel Carvalho, chefe político conceituado na região. A fazenda Mambre, citada várias vezes nas correspondências, ficava localizada na divisa de Itaguara e Itatiaiuçu.
Em carta de 25 de maio de 32, Guima refere-se ao amigo como “um bom enfermeiro e um bom informador” e recomenda à paciente sob seus cuidados “lavagem intestinal” com “água fervida, ou cozimento de rosas”. Este o texto: “Itaguara, 25 de maio de 932  Prezado Manoel, Um abraço apertado. Primeiramente, ardorosos parabens, pois você tem sido um bom enfermeiro e bom informador. Quanto à doente: Deve ir se alimentando com canjas, caldo de frango, mingáu de fubá com leite, café com leite, sopa de macarrão bem cozido, etc, porque a moléstia é demorada e a doente necessita de manter as forças. Mesmo sem appetite, deve insistir. Deve fazer nova lavagem intestinal, com litro de água fervida, ou cozimento de rosas. Vão novos papeis para lavagens vaginaes. A injecção não póde falhar nenhum dia  amanhã póde falhar a informação, só isso. Quando a febre estiver mais alta, a doente deverá tomar um banho morno de corpo todo, enxugando-se bem depois. Os remédios (poções) devem ser tomados sem interrupção, e, terminado o conteúdo dos vidros deve vir o portador para reformal-os. Continue: - Hygiene.... Hygiene.... si fôr possível. Abrace todos os seus em meu nome. Do amigo Guimarães Rosa.”
Na carta seguinte, 29 de maio, expressa muito carinho pelo pessoal da fazenda.
“Distinto Manoel, Gloria! Fico bem satisfeito de saber das melhoras apresentadas pela doente – melhoras devidas em parte aos cuidados enérgicos do amigo, que tem sabido informar-me magnificamente da marcha da moléstia. Si as dores nas pernas continuarem, veja si há alguma novidade no local dolorido (inchação branca e dura), pois pode tratar-se de uma phlebite puerperial. De qualquer maneira, caso a dôr continúe, a doente deverá manter-se em repouso rigorosissimo, podendo applicar angús quentes no logar da dor. No mais, continue, que está bem orientado. Distribua um punhado de abraços entre o pessoal do Mambre, sendo um abraço maior para o seu Chico e um outro para você. Até outra vez. Guimarães Rosa.”
Na missiva posterior (03.06.1932) Guimarães Rosa prescreve uma receita caseira, indicando os ingredientes da manipulação a ser feita.
“Prezadissimo Manoel  Cordiais cumprimentos. Seguem novos remédios para a enferma. É preciso que ella vá se alimentando bem, com as devidas cautelas, naturalmente, para que a causa não desande em vez de andar. Não deixe de mandar informações por mais uns três dias, principalmente temperatura e pulso. Mande fazer diariamente uma lavagem intestinal. E, fallo sem intuito de envaidecel-o, póde você estar certo de que a cura da doente deverá, em grande parte, ser agradecida ao enfermeiro. Pudesse eu ter sempre á mão um auxiliar assim! Quanto á crioula, si você quizer experimentar ainda, póde dar a ella: Uso interno Elatério  -  0,50 .....; Rhuibarbo preto  -  1,0 gr; Estr. de fel de boi  -  qsp para 20 pilulas. Dar 1 de 2/2 horas. Conjuntamente devem ser dadas umas 3 injecções de óleo camphorado. Provavelmente o resultado será bom. Até breve. Abraça por mim a todos os mambrenses, principalmente o velho. Do amigo Guimarães Rosa  Itaguara, 3 de junho de 932.”

Interessantíssima, sem dúvida, essa série de cartas-receitas que o professor José Dias Lara, estudioso da vida e obra de Guimarães Rosa, traz ao conhecimento dos leitores por intermédio deste seu admirador e amigo.

sexta-feira, 12 de abril de 2013







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Ferrovia já era?

Cesar Vanucci*

"Esse mal compreendido sistema ferroviário brasileiro.”
(Euclides da Cunha)

Ocupei-me, bom tempo atrás, da momentosa (ontem, hoje e sempre) questão das ferrovias. Os comentários, lançados neste mesmo espaço, continuam de refulgente atualidade, o que aconselha voltem a ser trazidos à apreciação dos leitores.

A gente pegava em Uberaba o trem da Mogiana e, 36 horas depois, descia na estação de Pouso Alegre. Antes da chegada, havia uma baldeação para tomar trem da Rede Mineira de Viação em Sapucaí. Em Mogi Mirim, uma baldeação a mais. Uberaba era, nestas reminiscências da infância, o ponto de partida para as fascinantes aventuras da vida. A partir dali, todos os dias, os caminhos férreos da Rede e da Mogiana despejavam pessoas e mercadorias em Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, cidades do interior de Minas, Goiás e São Paulo.

Os registros da época dão conta também de que, com menor, igual ou maior intensidade, a movimentação ferroviária era fato alvissareiramente corriqueiro em outras bandas do Estado e do País. Ia-se de trem de Belo Horizonte ao Rio. Do Rio a São Paulo. De São Paulo a Porto Alegre. De Porto Alegre a Curitiba. E assim por diante. O Brasil tinha-se na conta de país razoavelmente servido por ferrovias. Não eram tantas, provavelmente, quanto as necessidades exigiam. Mas davam, por assim dizer, para o gasto.

De outra parte, tomando Uberaba ainda como referência, a quarenta quilômetros do centro da cidade, no Rio Grande, fronteira líquida com o território paulista, barcaças cuidavam do transporte de passageiros e artigos comerciais pela zona ribeirinha. Era o que também acontecia, em maior escala, nas vias fluviais de outras regiões, com destaque aqui pros nossos lados para o Rio São Francisco no rumo do Nordeste.

E não é que, de repente, sem mais quê nem pra quê, tudo isso se desfez, igualzinho fumaça de locomotiva tocada a lenha. Virou retrato esmaecido na parede descascada do tempo. Atendendo a imperativos que a história prova não terem sido corretamente avaliados, o Brasil optou desastradamente pela via única de transporte na conquista do progresso. O sistema rodoviário ficou com a primazia exclusiva e absoluta dos investimentos. Nenhum avanço significativo praticamente voltou a ocorrer nos setores ferroviário e de navegação. E o que é pior: de modo insensato, com frenesi iconoclasta, partiu-se para o total desmantelamento do que existia de regular para bom nessas áreas. A palavra de ordem dada naquele momento infeliz foi essa: ferrovia já era.

É pedagógico lembrar, a esta altura, que temos muito disso deploravelmente, no Brasil. Um fascínio irresponsável por teses novidadeiras e de eficácia questionável costuma povoar a imaginação dos detentores do poder de decidir. Os exemplos são ululantes. Podem ser catados em todos os setores, até mesmo no empresarial.

Tem mais conversa sobre ferrovia pela frente.


Desfazendo uma política de transporte

"O trem é um meio de diminuir o mundo.”
(Ruskin)


Ferrovia já era. Alguém perpetrou essa imbecilidade e ela virou moda, num certo momento da vida brasileira. Teve assim início a insana onda da retirada de trilhos e dormentes (que, segundo fontes bem informadas, andou enricando muita gente) e a desativação de estações. O modismo de encarar a ferrovia como instrumento de comunicação da era jurássica foi aceito pelos detentores do poder. E sem grandes contestações e questionamentos críticos por parte da comunidade.

Infelizmente, tem dessas coisas no Brasil. Pipoca no pedaço uma tese novidadeira qualquer, de eficácia duvidosa. Logo, logo, os encarregados de tomar decisões entendem de aplicá-la como se fosse verdade bíblica. A atividade empresarial, para ficar num único setor, está recheada de exemplos de bestices do gênero. O que tem de organização entrando por deslumbrantes tubulações, por se deixar enredar no papo furado de certas ondas gerenciais modernosas, vou te contar...

Desumaniza-se a ação produtiva, colocando-se no lugar do que vem funcionando razoavelmente um tecnicismo pedante e corrosivo. As inovações afugentam as pessoas, quebram o entusiasmo profissional, amortecem o ímpeto criador e, logicamente, inviabilizam resultados. Um cidadão qualquer pinta subitamente na praça, botando banca de especialista em modernização administrativa. Aluga ouvidos receptivos à sua cantilena. Vale-se de toda uma estudada prosopopéia, trazendo engatilhadas na ponta da língua expressões geradas pelo modismo, retiradas de algum dicionário de bolso inglês-português. Anuncia triunfalmente mudanças capazes de proporcionar lucratividade e desenvolvimento. A idéia, com a garantia técnica de certeiros efeitos positivos, é encampada no bem intencionado propósito mudancista dos mais ingênuos. É metida goela abaixo da comunidade de trabalho. Só que, num bocado dos casos, a experiência é frustrante. Não traz lucratividade, nem desenvolvimento. Desmantela as estruturas montadas. Deixa coisas fora do lugar. Reduz a estilhaços uma cultura profissional, sem deixar coisa alguma em substituição, além de um cenário de terra arrasada. Fica difícil, quando não impossível, reconstituir-se o ambiente de trabalho anterior ao vendaval.

Foi mais ou menos desse jeito que o Brasil perdeu, de repente, tempo, dinheiro, trilhos e dormentes. Ferrovia já era, proclamou-se. Consagramo-nos, por causa disso, com todo “entusiasmo”, à tarefa de desativar ramais. Fizemos das estações depósitos. Algumas ainda serviram para alojar Centros Culturais, menos mal. Resultado: em curto espaço de tempo desfez-se toda uma política de transporte por linhas férreas, construída ao longo de vários decênios, desde o Império, por numerosas administrações.

Cabem, adiante, mais considerações em torno do candente tema.


Imitação do Reno

"Está firme e fiel a sentinela sobre o Reno.
(Canto nacional alemão)

Quando evocado, o processo demolidor que atingiu em cheio o sistema ferroviário inspira perguntas danadas de incômodas. Do tipo: o que foi feito, hein?, dos trilhos que estavam aqui? Quem saberá responder?

O que se sabe, com absoluta certeza, é que já não mais existem trilhos suficientes para conduzir passageiros e assegurar às mercadorias acesso aos lugares de antigamente.

O grande Euclides da Cunha lamentava, à sua época, a falta de compreensão que havia com relação à política ferroviária. Já registramos atrás aquela frase em que o escritor falava desse mal compreendido sistema ferroviário. A verdade é que, um bocado de décadas depois, a situação só fez piorar. E como! Ferrovia no Brasil, já era mesmo...

O problema suscita interrogações sem conta. E essas interrogações desconfortáveis convocam à reflexão. Qualquer criança de grupo tá careca de entender que as ferrovias e os rios representam, em qualquer parte do globo, esplêndidas alternativas de transporte num processo de desenvolvimento. E nem é por outra razão que nos países desenvolvidos confere-se aos dois setores tratamento privilegiado em matéria de investimentos públicos e privados.

Todo brasileiro que esteve no rio Reno não consegue esconder uma santa inveja diante da visão empolgante do tríplice espetáculo que ali se desenrola, em matéria de movimentação de cargas e passageiros. Nas águas caudalosas, um deslocamento contínuo de lanchas, barcaças e navios, em todos os sentidos. Roçando as margens, são vistos, resfolegantes, imensos comboios ferroviários. Bem próximo aos trilhos, está implantado um imponente conjunto de autoestradas. E, nas imediações, como uma espécie de portal de entrada da Europa para os confins do mundo, o incrível aeroporto de Frankfurt. Um quadro perfeito do entrosamento estabelecido entre os diversos meios de transporte de massa. Uma sincronia prodigiosa entre os recursos da Natureza, adequadamente utilizados, e o engenho humano.

Pensando na quantidade dos nossos cursos fluviais navegáveis e nas grandes distâncias deste nosso país-continente, embrenhamo-nos, num voo solto de imaginação, pelos ilimitados territórios do futuro, alimentando a esperança de que, algum dia, possa nascer no Brasil a disposição de fazer com que nossos rios, como no título do romance famoso, passem a imitar o Reno.

Até lá. Até que isso venha a acontecer. Até que se reabra, nos caminhos do nosso desenvolvimento, a possibilidade ideal para adoção de uma política diferente nos setores ferroviário e fluvial. Até lá, carregando a lembrança amarga do descabido processo de destruição das ferrovias brasileiras, até lá continuarão pendentes nas gargantas das pessoas, inconformadas com o desperdício de tantas oportunidades, as perguntas nascidas de nossa atormentada perplexidade. Por que o Brasil parou de investir em ferrovia?

Por que parou? Parou por que?

sexta-feira, 5 de abril de 2013



A emoção duradoura de dois musicais

Cesar Vanucci *

“Não deixo por menos ao definir
Bibi Ferreira: gênio da raça!”
(Antonio Luiz da Costa, professor)

O ano ainda não varou o primeiro quadrimestre e este desajeitado escriba não vacila um instante sequer em dizer, assinando embaixo da declaração e mandando reconhecer e autenticar firma em cartório, que nenhum espetáculo musical a ser exibido pelas redes de televisão em 2013 conseguirá se igualar, de leve que seja, em brilho, com o estupendo show “Bibi, histórias e canções”, levado ao ar, dias atrás, pela Rede Minas de Televisão.

Primorosamente encenado no Palácio das Artes, com a magistral participação da Orquestra regida pelo maestro Flávio Mendes, o espetáculo eletrizou a platéia que lotou as dependências do teatro e a multidão de telespectadores que acompanhou a transmissão ao vivo.

Esbanjando talento, charme, simpatia, Bibi Ferreira, incontrastavelmente a primeira grande dama dos palcos brasileiros – fato reconhecido pela própria Fernanda Montenegro, outra figura exponencial da vida cultural e artística nacional – mostrou que sua voz e presença gestual permanecem assombrosamente as mesmas, apesar de seus bens vividos 90 anos, dos tempos em que encantou o mundo com inesquecíveis performances em peças como “Alô, Dolly”, “Minha querida dama”, “O Homem de La Mancha”, “Gota D’água”, “Piaf, a vida de uma estrela”, para citar algumas.

Como um mundão de gente de minha e de outras gerações, sou fã de carteirinha de Bibi Ferreira. Desfrutei do privilégio de aplaudi-la no Teatro João Caetano, no Rio, nos anos 60, por ocasião do lançamento da versão brasileira de “Alô Dolly”. O mano Augusto Cesar Vanucci e o tenor Paulo Fortes compuseram com ela o trio central do musical. Recordo-me de que os produtores norte-americanos, tomados de fascínio diante do desempenho da artista e demais integrantes do elenco, registraram em entrevista, na ocasião, que a montagem da peça no Brasil nada ficara a dever ao espetáculo da Broadway.

Vi as demais encenações citadas. Quer dizer, tive o raro ensejo de aplaudir alguns dos mais belos momentos da história do teatro musicado mundial. Em “Piaf, a vida de uma estrela”, Bibi transcendeu. Mano Augusto, na poltrona ao lado, afiançou: “Isso tá parecendo incorporação mediúnica. A Edith Piaf baixou.” Eu, de minha parte, agarrei-me à definitiva impressão de que a atriz brasileira havia conseguido a façanha de interpretar Piaf melhor do que a própria célebre cantora francesa, se é que alguma coisa dessas possa realmente ocorrer.

No cinema, na dramaturgia, na televisão, como atriz, cantora, diretora, produtora, dançarina, autora de textos, Bibi perfez legendária trajetória. Uma trajetória de tal modo cintilante que bem poucas outras atrizes de grande projeção internacional terão, por certo logrado, percorrer.

Fixando-me no espetáculo no Palácio das Artes transmitido pela Rede Minas. Canções e histórias saborosissimas. Um repertório da mpb de tirar o fôlego. Árias de ópera com adaptações de letras extraídas de melodias famosas do cancioneiro popular brasileiro, em interpretações arrepiantes. No centro do palco, a emitir emanações luminosas cegantes, a colossal artista, gênio da raça.

A TV Minas bem que poderia incluir em sua programação um repeteco do show.

˜ Quem não foi, perdeu. O espetáculo montado no Teatro do Sesminas, no Centro Cultural “Nansen Araujo”, para celebrar os 80 anos de fecunda existência da Fiemg, foi um instante de raro esplendor artístico. Poucas vezes se nos foi dado a ver em palcos belorizontinos uma sincronização tão harmoniosa, tão perfeita, tão dentro dos trinques, envolvendo uma Orquestra, um Corpo de Dança e um Coral. Entrelaçando lindamente imagens dos feitos históricos da Fiemg com impecáveis orquestrações e vocalizações e soberbas coreografias, inspiradas em composições do cancioneiro popular brasileiro, os grupos artísticos do Sesiminas, comandados pelo Maestro Marco Antônio Maia Drumond e pela coreógrafa Cristina Helena Rios de Faria, valendo-se de recursos de criação, de imagem, argumento e pesquisa da Gerência de Cultura Sesi e Centro de Memória do Sistema Fiemg, levaram ao arrebatamento o público numeroso presente à solenidade comemorativa dos 80 anos.
Deixo aqui uma sugestão: a reapresentação por uma temporada desse espetáculo. Vale a pena ver de novo.


Os direitos “sagrados” dos caubóis

“Todo inventor de formação humanística tem seu momento
de depressão a la Santos Dumont, por causa do temor de que sua
invenção venha a ser desvirtuada dos propósitos originais.”
(Domingos Justino, educador)

Inimaginável impressora capaz de produzir artefatos em três dimensões, bolada por uma tecnologia de vanguarda destes tempos assombrosos, está sendo desvirtuada dos objetivos para os quais foi inventada, passando a atender a maquiavélicos e assustadores propósitos. O que se cogitava, de princípio, com a revolucionária técnica, era a produção de objetos de adorno ou de utilidade prática no ambiente caseiro, de forma a facilitar a vida das pessoas dotadas de habilidades mecânicas ou artesanais.

Mas eis que o instinto perverso de alguns descobre, de repente, outra linha de utilização para o instrumento: a fabricação de armas portáteis mortíferas de comprovada eficácia. Com a “vantagem” para os interessados na composição de “arsenais domésticos” de não terem que prestar contas a ninguém de suas “atividades” como fabricantes clandestinos de instrumentos de destruição. Testes promovidos por especialistas revelaram que armas de potente calibre nos moldes configurados em nada ficam a dever, quanto aos malefícios espalhados, aos produtos originais. E a munição tradicional é perfeitamente adaptável.

A descoberta desse macabro aplicativo da impressora de três dimensões levantou, naturalmente, enorme preocupação. Os órgãos competentes estão dando tratos à bola, nos Estados Unidos, com vistas a estabelecer normas de controle que possam impedir o invento de transformar-se numa ameaça social sem controle.

Já uma minoria barulhenta de caubóis que na terra de Tio Sam defendem, com tresloucados argumentos, o “sagrado direito” de cada cidadão em poder montar dentro de casa seu próprio arsenal bélico, mode proteger-se dos riscos urbanos, suburbanos e rurais, vale dizer, dos riscos da vida, vem celebrando com euforia a novidade. Em depoimentos, alguns desses personagens – hoje em conflito aberto permanente com o governo Obama, por sua disposição de regulamentar o negócio de armas no país – registram, com insano júbilo repita-se, que a geringonça tecnológica é um caminho apontado por Deus aos verdadeiros patriotas americanos. Um pessoal disposto a não renegar, sob pressão alguma, os “autênticos valores da nacionalidade” e que se insurge com destemor contra decisões que cogitem submetê-los a normas, como a da regulamentação de armas, que alvejam claramente seus sagrados direitos pessoais, ufa!

Isso mesmo que você acaba de ler, caro leitor. Nada de espanto prolongado. O jogo dos fundamentalistas estadunidenses é feito todo nessa base. O radicalismo dominante transpõe todos os limites razoáveis e imagináveis. O Presidente negro Barack Obama é considerado por essa gente perigoso agente da esquerda terrorista, com vinculações no mundo muçulmano.

Como as correntes integristas e racistas são ainda força política dotada de poderes na sociedade norte-americana, os argumentos empregados pelos seus porta-vozes geram certa ebulição. As ferozes resistências, inclusive na mídia, que a Casa Branca tem encontrado para fazer prevalecer uma legislação sensata de regulamentação do comércio de armas configuram bem o estado de espírito belicoso desses grupamentos, que bebem inspirações para seus atos nas idéias da Ku Klux Klan, da Sociedade John Bird e do Tea Party.



A SAGA LANDELL MOURA

Uma mulher rodeada de palavras

                             *Cesar Vanucci “Quem traz na pele essa marca Possui a estranha mania de ter fé na vida” (verso da canção “M...