sexta-feira, 18 de março de 2011

A luta pelos direitos da mulher é uma luta pela dignidade humana


Cesar Vanucci *


“As mulheres são seres humanos
 exatamente como os homens.”
(Lin Yutang)


A celebração do “Dia Internacional da Mulher” confere atualidade a alguns conceitos que andei expendendo em exposição feita num Fórum feminino, com participação de mais de mil pessoas, promovido alguns anos atrás pelo Lions Clube. Proclamando que as lutas da mulher são lutas em favor da dignidade humana, transmiti da maneira que se verá adiante o meu recado.

Sou um repórter. Exatamente isso, um repórter. Em tudo que aprendi a fazer, na vida profissional e atividades sociais, comporto-me, basicamente, como um repórter. Procuro, assim, me informar de um pouco de tudo. Mas devo confessar, em boa e leal verdade, que não sei senão muito poucas coisas.

Trago para aqui um pouco do que aprendi acerca do papel da mulher na sociedade, sobre as lutas e conquistas da mulher em sua ascensão humana. Às organizadoras deste Fórum, confesso também, desvanecido, que minha participação no evento constitui honra demais para um pobre repórter.

Peço permissão para dedicar a palestra à Addi, minha valorosa companheira, que me tem ajudado nesses anos todos a entender as idéias e conceitos que vou defender.


Evocação especial

Começo com uma evocação especial: o grande Papa João XXIII. Dele a declaração de que a luta da mulher pela obtenção de direitos representa uma das maiores revoluções empreendidas pela humanidade no século XX. O Papa, como sempre, sabia do que estava falando. A dolorida história da promoção da mulher simboliza, melhor do que qualquer outro esforço humano de crescimento político, cultural, social, econômico, a história por inteiro das lutas pela conquista dos direitos do cidadão.

Nos óbices defrontados nas lutas da mulher estão contundentemente inseridos abjetos preconceitos, aviltantes discriminações, asfixiantes camisas-de-força, presentes, todo o momento, na convivência humana, frutos malsãos do obscurantismo, do machismo castrador, da insensibilidade para se compreender o sentimento do mundo, o sentido cósmico da vida.

Não é difícil detectar, em instantes de trevas, decretadas pelo preconceito e pela discriminação, que a mulher é invariavelmente penalizada em dobro, em relação ao homem. O racismo a alveja por ser negra, por ser cigana, por ser judia, ou por não ser judia, e por ser mulher. Ela paga o pato, por assim dizer, por pertencer à etnia errada, em lugar ou momento errado, na concepção do radicalismo dominante em determinado cenário, e por ser mulher. Por pertencer à religião enjeitada, nas mesmas circunstâncias de ambiente e época, e por ser mulher. Assim por diante.

Recorramos a um outro pensador. Eis o que diz Lin Yutang: “As mulheres são seres humanos exatamente como os homens - iguais na capacidade de julgar e de cometer erros, se lhes derdes a mesma experiência do mundo e os mesmos contatos com este.”

Uma cena da infância

Numa terna cena da infância, extraída do baú das recordações, vejo desenhado o perfil da primeira líder feminista que fiquei conhecendo. Era uma moça de seus trinta anos, dona de semblante extremamente simpático e de corpo bem proporcionado. Trescalava obstinação pelos poros. A gesticulação exuberante, herança napolitana, nela reforçava as palavras ditas em tom de voz quase cantante. Durante um tempão, já adulto, alimentei sem poder concretizar o desejo de manter com ela um dedo de prosa. Até hoje carrego o dilema que um bom papo poderia certamente ter desfeito. Teve ela, a qualquer tempo, exata percepção do significado precursor dos gestos e ações que assumiu?

Todas as tardes, eu a avistava descendo a ladeira que dava num campo de futebol improvisado, onde a garotada tocava suas peladas movidas a bola de pano, brigas inofensivas e um que outro palavrão punido com chinelada. A sensação era de que Verlaine descobrira naquele gracioso desfile vespertino inspiração para os versos: “Quando ela anda, eu diria que ela dança.”

Pontualidade parecia atributo todo seu. Havia quem acertasse o relógio à sua passagem. Era o momento em que as janelas das redondezas se fechavam estrepitosamente, em sinal de zanga malcontida. Olhares e murmurações recriminatórios acompanhavam-lhe a trajetória graciosa por detrás das venezianas, até que escapulisse por completo do raio de visão do falso puritanismo entocaiado. Tudo compunha clima de excitante e novelesco mistério que aguçava demais da conta a cabeça da gente. Por que as coisas corriam daquela maneira? O que a nossa heroína andava aprontando?


Imaginem só o descaramento!

Prepare-se a benevolente platéia, notadamente da ala das fumantes, para um baita impacto. A nossa valente personagem, apenas e simplesmente, foi a mulher que primeiro ousou, naquela aprazível cidade do interior (Uberaba), fumar em público. Ousou mais - “imaginem só o descaramento!” - : foi também a primeira a andar de calça comprida pelas ruas. Tais lembranças, de simbólico surrealismo, chegam a propósito da temática que hoje nos reúne neste amorável encontro de confraternização e reflexão.

Engrenagens machistas

Periodicamente é realizada uma Conferência Internacional da Mulher. Encontros dessa envergadura são capazes de abrir efetivas condições para a quebra de novos elos na gigantesca engrenagem que aprisiona a mulher, em extensas áreas geográficas, sociais, profissionais e culturais, a figurinos de concepção morbidamente machista. Quantas dezenas de eventos iguais, na estrutura e aspirações, se farão necessários ainda, ao longo dos tempos, para facilitar-lhe o acesso por inteiro a direitos naturais, independentemente de sexo, inerentes à condição humana? Alguém poderá argumentar que se está a falar, na verdade, de direitos não desfrutados na integralidade pela grande maioria dos seres humanos. Perfeito. Mas, não há como negar que, também no desfrute dos direitos, a força invasora masculina chegou primeiro e se apoderou dos melhores pedaços nos espaços liberados.

Oceano de problemas

Embora estejam sendo significativos os avanços em conquistas associadas ao desenvolvimento pessoal da mulher, fruto da expansão da consciência coletiva quanto à verdadeira natureza do papel que toca a cada cidadão desempenhar no fascinante e complexo jogo da vida, existe ainda por aí um oceano inteiro de problemas a ser navegado na busca das soluções compatíveis com a dignidade humana.

É chegada a hora de colocar alguns itens do dia-a-dia nas reflexões. Homem divorciado e mulher divorciada. Homem adúltero e mulher adúltera. Têm, eles, as posturas avaliadas pela sociedade dentro de uma mesma ótica crítica? Desloquemo-nos para o capítulo dos métodos contraceptivos: alguém sabe dizer se o número de vasectomias equivale aos de ligaduras das trompas? E a pílula masculina? Já foi lançada? Se lançada, vai pegar rápido?

Em Estados do Nordeste, segundo denúncia da CNBB, existiam até bem pouco tempo processos de esterilização de mulheres pobres, sem que elas estivessem inteiradas do que se lhes acontecia. Algo inspirado em perversos esquemas importados da China, Índia e outros lugares. Outra denúncia da CNBB: existem penitenciárias – lugares em que já se vive tragédia inimaginável - onde as mulheres costumam se deparar com uma penalização extra. Na falta de absorventes femininos, utiliza-se miolo de pão. Hoje, a mulher já conquistou na maior parte dos países, seu espaço no mundo artístico. Não era bem assim antes. Artista e “rapariga”, para ficar com expressão mais branda, constituíam, na visão estrábica de muita gente, o verso e o reverso de uma mesmíssima moeda.

Por volta de 1580, Montaigne dizia que “a ciência e ocupação mais útil para a mulher é o governo de casa”. A grande maioria pensava assim. Tem gente que ainda pensa. Gente que não acaba mais. Homens e mulheres a procederem na lida cotidiana que nem se fosse o pessoal lá da rua da meninice. As janelas ficam trancadas e figuras espectrais se põem a acompanhar, com tiques paranóicos, pela fresta da janela, usando candeeiro para aguçar a visão, o esfuziante processo que corre solto lá fora em favor da emancipação feminina. Fazem ouvidos moucos a justos clamores nascidos do inconformismo, da inteligência e da sensibilidade diante dos paradigmas rígidos bolados pelo farisaísmo na avaliação do comportamento feminino. Paradigmas engessados no tempo. Para pessoal tão retrógrado têm a mesma inexpugnável consistência das muralhas incas de Machu Pichu. Esse tipo de gente não consegue enxergar que se trata de paradigmas irremediavelmente condenados pela doença letal de “certezas” trazidas de momentos obscurantistas que já se imaginava sepultados na voragem da história.

Briga braba e barulhenta

A briga pela derrubada de tais paradigmas é braba e barulhenta. São ainda fortes os ecos de certas palavras de ordem procedentes de eras remotas, sintetizadas na frase padrão: “Lugar de mulher é em casa”. Os preconceitos vigorantes apresentam, em muitos lugares, é bem verdade, efeitos atenuados em matéria de violentação à personalidade, se comparados com as inacreditáveis situações vividas em tempos antigos e em outros lugares de nosso próprio tempo. Mas conservam vestígios culturais rançosos, ainda que longínquos, daquelas épocas absurdas em que algumas coletividades aprendiam a absorver, em suas regras de vida e crenças, a idéia, por exemplo, de que a mulher não possuía alma. Ou de que, no plano dos sagrados deveres conjugais, como amorosa e dedicada esposa, devesse se preparar para fazer jus ao prêmio máximo da loteca dos deuses, consentindo em que a enterrassem viva com os pertences e despojos do pranteado marido, senhor seu amo, quando de sua (dele) partida desta para melhor.

Desfile de absurdos

Todos estamos seguros de que provêm de visualização desfocada da realidade, mesclada com flagrante injustiça social, os escandalosos problemas levados a debate pelas representações presentes aos conclaves promovidos periodicamente pela ONU. Ou por outras instituições das muitas que se ocupam benfazejamente dessa tormentosa discussão. O desfile de absurdidades é sempre composto de revelações sobre práticas escravagistas, tráfico de mulheres, prostituição forçada, processos de mutilação sexual, restrições ao acesso no mercado de trabalho a cargos e promoções, falta de oportunidades iguais às concedidas aos homens nas ações e decisões políticas, nos campos técnico e científico, no desfrute de bens educacionais. Coisas assustadoramente consentidas às vezes em nome de rançosos argumentos religiosos. E por aí vai. Os registros dão conta de que mesmo em países desenvolvidos, as políticas de salários revelam-se desiguais. A média da remuneração da mulher situa-se abaixo da metade da média da remuneração do homem. As possibilidades de ingresso em empregos, nesse mesmo tipo de confronto, são de 61% no Japão, 58% na Holanda e 16% nos países árabes. Sabe-se, ainda, que de 1,2 bilhão de pessoas que vivem em estado de pobreza absoluta (renda inferior a 370 dólares/ano), setenta por cento são mulheres. Outro levantamento revelador diz respeito às chances de participação no poder. As mulheres ocupam 20 por cento dos cargos de direção, algo equivalente nos chamados postos ministeriais. Tem mais: meio milhão de mulheres (99% do Terceiro Mundo) morrem, anualmente, vitimadas por patologias vinculadas à maternidade.

Não há como ignorar, por outro lado, o tratamento diferenciado, de modo geral desrespeitoso, com que a mídia, acionada por preconceitos milenares dominantes no inconsciente coletivo, se ocupa do fato trivial de uma mulher que, no exercício de função pública, resolva assumir ostensivamente um caso afetivo. A derrama noticiosa que isso suscita, vou te contar...

Está na cara que esses dados não esgotam o temário difícil e, sob incontáveis aspectos, doloroso da problemática enfrentada pela mulher. Mas servem para dimensionar as perturbadoras circunstâncias que envolvem essa questão prioritária no processo da construção humana. O Banco Mundial anota algo supra importante: “A desigualdade entre os sexos paralisa a produtividade e dificulta o crescimento econômico.”

Há avanços respeitáveis

Há avanços e respeitáveis. Há que celebrá-los. Mas os problemas continuam sendo de grande monta. As estruturas modernas ampliaram a faixa dos direitos, previdenciários, sociais. Persistem, todavia, ainda numerosos, difíceis obstáculos a serem transpostos. A sociedade rodeia de manifestações simpáticas, em boa parte das vezes da boca pra fora, a trajetória feminina. São manifestações poéticas, do tipo “Tirante a mulher, o resto é paisagem” (Dante Milano, 1898); com palavras que exprimem bons propósitos, mas que não são colocadas em prática, pelo menos em sua extensão ampla, como “A mulher é a grande educadora do homem”  (Anatole France, 1900); ou de exaltação terna e lírica, como “Mulher é uma graça, espanta melancolias e consola mágoas” (Livro dos Cantares). Apesar disso, o mundo continua a girar com suas imperfeições atávicas e com seus amalucados preconceitos e discriminações contra a mulher.

Mudanças são difíceis

Sabemos não ser nada fácil mudar as coisas. Numa passagem do clássico cinematográfico “O Leopardo”, estrelado por Burt Lancaster, o personagem central aconselha os nobres italianos, seus súditos, apavorados diante da ameaçadora chegada de Garibaldi ao poder, a que “mudassem alguma coisa, para não mudar coisa alguma”. A história das conquistas sociais costuma revelar que o Príncipe Salinas, o dito cujo personagem, podia ser um tremendo dum cínico, mas como entendia das imperfeições da alma humana, meu Santo Onofre!

O Papa João XXIII tinha razão. A batalha pela emancipação feminina é uma das mais importantes revoluções dos tempos modernos. Mas há muitas coisas ainda para serem feitas. Algumas óbvias, por demais. Aparentemente, banais. Mas de tremenda relevância na vida prática. Passam ao largo das preocupações rotineiras. A mulher do lar, em todos os segmentos sociais, precisa saber um pouco mais sobre os negócios do marido. As mulheres superprotegidas e complacentes do figurino tradicional se defrontam, no caso de viuvez, com cada problema! O mundo costuma desmoronar em horas que tais. Ela pensa que o marido cuidou de tudo, enquanto vivo. Vai ver, não cuidou nada. As apólices de seguro deixadas são de acidentes pessoais e ele morreu de infarte. Nunca se interessou por planos de complementação de aposentadoria. Não facilitou o acesso da cara-metade às transações que realizava, aos investimentos, às dívidas contraídas em nome da comunidade familiar. A realidade a enfrentar, em momentos assim, pode acabar sendo cruel para a viúva.

A quantas andamos

A quantas, nessa palpitante matéria dos direitos femininos, andamos em Lions? Alvíssaras! Já temos entre nós companheiras leão.

Posso confessar-lhes um receio? Vamos cuidar de exorcizar nosso ambiente para impedir que o tradicional preconceito machista, que rege tanta coisa na rotina social, possa entender, em dado momento, de distinguir “domadoras” de “companheiras leão”, como se isso pudesse fazer algum sentido. Em minha visão, uma e outra são rótulos diferentes de uma mesmíssima realidade. O que conta é a essência. E a essência do trabalho leonistico está consubstanciada na prática da solidariedade, do amor ao próximo, do companheirismo. O resto é o resto. Vivê-la com intensidade é um dever e um direito.

Anotem, por favor. Como sei que prevalece, no meio feminino, um apego muito grande à discrição, ao contrário do que o machismo tem por costume propalar por aí, vou contar-lhes um segredo. Em minhas observações de muitos anos, cheguei à conclusão, definitiva e inabalável, de que as mulheres, em Lions, como noutras instituições, trabalham muito mais e com bem maior eficiência do que os homens.

É bom que se diga, por derradeiro, que os problemas enfocados ou intuídos nesta descolorida exposição, antes de serem problemas exclusivamente da mulher, são problemas do ser humano. Quanto mais convicções individuais de sentido renovador puderem se reunir à volta de constatações óbvias como estas, maiores se tornarão as possibilidades de podermos, algum dia, todos juntos, construir um mundo melhor. Um mundo bem melhor para mulheres, homens, crianças, adultos, pretos, brancos, amarelos, árabes, judeus, sãos, enfermos, cristãos, budistas, maometanos, pobres, ricos, remediados e excluídos.

Mulher e negra

Quero deixar, registrados, ao final, um anseio e uma interrogação.
O anseio: assistir a disputas para governador de Lions só entre mulheres. (O anseio já se fez realidade).

A interrogação, danada de instigante: e se, de repente, no dia do Juízo, lá em cima, na hora crucial e decisiva da prestação de contas dos atos praticados em nossa peregrinação pela pátria dos homens, cara a cara com o Todo Poderoso, carregando bem nítida a imagem que Dele conservamos em função de amadurecidas convicções religiosas, e se nessa hora precisa, a gente descobrir, embargado pela estupefação, que Deus é mulher e negra? E então?

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

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