sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Celebrando o Dia da Consciência Negra

Cesar Vanucci

“Mas não se trata de raças, senão das variedades
de uma mesma raça, de uma mesma espécie...”
(Anatole France)

A cena, de fascinante simbolismo, ficou gravada na memória velha de guerra. Na entrevista na agência de empregos, preenchendo convencional questionário, a jovem negra, de altivo semblante, anota no quesito “raça” a expressão “humana”. Recusa-se, com polidez, mas firmeza, a alterar o registro feito, contrariando a insistente alegação do funcionário do atendimento de que estaria ocorrendo, no caso, uma quebra do protocolo burocrático.

Noutro lance, numa repartição de Registro Civil, o artista famoso confronta, com serena, mas inflexível determinação, objeção levantada por alguém, do lado de dentro do balcão, a respeito do nome dado à filha. “Sim, senhor. Este o nome de minha filha: Preta. Preta é um nome tão lindo quanto, por exemplo, Clara.”

Estes dois emblemáticos episódios remetem este desajeitado escriba, incorrigível caçador de quimeras, a evocar o “Recado de Zumbi”. Repetir o recado é preciso. Sobretudo em instantes confusos como os de agora, em que a intolerância racial se revela contundente, escancarada ou dissimulada. É só por tento no noticiário nosso de cada dia.

De tempos distantes chegam até nós, nesta hora, o clamor e a ânsia de liberdade de Palmares. A lendária figura de Zumbi se introduz nas atenções populares, em sua grandeza épica, carregando sonhos e esperanças de libertação. São sentimentos válidos não apenas para aquele momento vivido e sofrido do holocausto negro, em que o abençoado irredentismo do herói da raça cravou presença na história. Aproveitam a todos os instantes, épocas e lugares onde a insanidade encontra terreno propício para cultivar o germe da divisão dos homens pela cor e pela etnia.

A mensagem de Zumbi, tradicionalmente relembrada nas comemorações da "Semana da Consciência Negra", é de ofuscante atualidade. Aborrece o desvario radical, as posturas acomodadas, as reações hipócritas. As atitudes cotidianas que asseguram, em tantas partes e setores deste planeta azul, a cobrança implacável e interminável de um tributo de dor e humilhação às pessoas de epiderme escura. Contra elas, em nome de ostensiva ou encapuzada, mas sempre despropositada e falsa supremacia racial, são colocadas em movimento, mais exacerbadas aqui, mais brandas ali, as engrenagens do ódio, da ignorância e da opressão e, também, da indiferença e da omissão, que conseguem às vezes magoar e ferir tanto quanto.

Sendo de conteúdo universal, dizendo respeito a uma questão de essência no capítulo dos direitos fundamentais do ser humano, o recado de Zumbi dos Palmares foi feito para alcançar todos aqueles territórios do Atlas Geográfico em que se pratica discriminação, em que se cultiva racismo. Serve de reforço no combate ao segregacionismo em que se acha empenhada a poderosa sociedade democrática do país do saudoso Martin Luther King. Experimentando alívio diante dos bons resultados já alcançados e alguma expectativa quanto aos futuros desdobramentos, acompanha as evoluções no processo de integração conduzido na origem pelo sempre lembrado Nelson Mandella na África do Sul. Alenta e encoraja grupos minoritários perseguidos e ultrajados em largas extensões deste mundo de Deus onde o diabo costuma plantar seus indesejáveis enclaves. Confronta clima permanente e dolorido de desconfiança, a partir das inquirições e revistas de bagagens diferenciadas nos postos alfandegários, com que são recebidos em países da Europa e nos Estados Unidos turistas e imigrantes negros ou de outros segmentos discriminados. O recado de Zumbi convida a comunidade a uma séria reflexão. O que remete logo à necessidade de se conhecer nas exatas proporções os problemas enfrentados, nestes nossos pagos, pelos descendentes africanos.

Poderemos voltar a falar disso posteriormente. Mas, antes, que tal ligar os aparelhos de reflexão para anotar este impecável conceito de Anatole France a respeito do assunto? Assim falou o mestre: “Na maioria das vezes é tão difícil distinguir num povo as raças que o compõem como seguir no curso de um rio os riachos que nele se jogaram. E que é uma raça? Há realmente raças humanas? Vejo que há homens brancos, homens vermelhos, homens amarelos e homens negros. Mas não se trata de raças, senão das variedades de uma mesma raça, de uma mesma espécie, que formam entre eles uniões fecundas e se misturam constantemente.”

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