quarta-feira, 14 de junho de 2023

Barrados no baile


  

Cesar Vanucci *

 

“Não há nenhum problema negro.

O que há apenas é um problema branco”

(Richard Wrigth, escritor negro estadunidense)

 

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Na esteira do momentoso incidente racista envolvendo a figura do consagrado craque brasileiro Vinícius Jr., resolvemos recontar aqui uma história chocante, de preconceito por causa da cor, ocorrida a mais de meio século, tendo como vítimas atletas famosos do basquetebol.

Finalzinho dos anos 50. O Palmeiras acabara de conquistar o sul-americano de basquete. O Jockey Club de Uberaba, possuidor de imponente complexo de lazer e desporto, convidou os campeões para exibição em seu ginásio. Evento prestigiadíssimo. Público vibrante compareceu à partida de basquete, fazendo coro com o Jockey nas homenagens prestadas na quadra aos visitantes.

À delegação do Palmeiras ofereceu-se, depois, no salão de festas, baile de gala. Só que com estridente porém. Numa demonstração inacreditável de racismo, deu-se a conhecer que não seria permitida a presença dos atletas negros. Dois. Um deles, principal astro, cestinha do time, conhecido por Rosa Branca. Cruel e ironicamente, o Rosa, chamado de Branco, foi barrado no baile justamente por não sê-lo.

O gesto foi acompanhado, da parte da comitiva do Palmeiras, de outo ato de pusilanimidade. Os palmeirenses brancos deixaram os colegas alvo da odiosa discriminação no hotel. Compareceram maciçamente à festa, embasbacados com os rapapés, como se nada de singular tivesse rolado. Extrai-se daí medida exata da falta de sensibilidade social que, de forma talvez até mais intensa que hoje, prevalecia naquela época nesses domínios perturbadores da convivência racial.

Fiz questão fechada de abrir espaço, no diário “Correio Católico” e na rádio Difusora, em que atuava como editor geral, para criticar com veemência o sucedido. Os responsáveis pelo absurdo procedimento, tentando tapar o sol com peneira, contestaram as evidências. Veladas ameaças foram postas a circular. Falou-se até em eliminar-se dos quadros de sócios do clube a "cambada de jornalistas", todos "extremistas", comprometidos com as denúncias. Alguns diretores do clube, mais sensatos, não só se opuseram à tresloucada ideia, como se animaram, até mesmo oferecendo a mão à palmatória, a procurar-me no jornal e na rádio, pedindo desculpas pela besteira. As contestações e ameaças motivaram o jornal e a emissora a desnudar outros aspectos dolorosos do problema da discriminação racial.

Os desdobramentos do assunto permitiram-me também anotar uma manifestação incrível, reveladora dos surpreendentes disfarces de que a discriminação racial costuma se valer de modo a expor-se menos ao crivo da consciência social comunitária. Entre os registros de solidariedade recolhidos pela posição que tomei figurou o de um dirigente destacado de outro clube da cidade. Cidadão muito simpático trazia definidos na epiderme amorenada traços de sua ancestralidade negra. Ao cumprimentar-me efusivamente "pela atitude assumida no incidente Rosa Branca", ele esclareceu que "em seu clube, absurdo desses jamais ocorreria." Acrescentou triunfante: "– Lá, não proibimos pretos de frequentar bailes. O que eles não podem é sair dançando. Cada um no seu devido lugar..."

Isso aí. Como diz o escritor norte-americano mencionado no intróito, fixando o assunto da segregação no enfoque correto, o que existe não é um problema negro. Mas, simplesmente, "um problema branco."

Ao ficar sabendo que Rosa Branca e companheiros haviam sido barrados no baile, deixei o salão de festas do clube impelido por justa indignação, dirigindo-me ao hotel onde a delegação do Palmeiras achava-se hospedada. Percebi, de cara, que os atletas, recolhidos em resignado sofrimento, mostraram-se um bocado espantados com minha reação. Ou seja, com a palavra de solidariedade que levei, anunciando a firme disposição de fazer pública nos instantes seguintes a denúncia sobre a violência racista de que tinham sido inocentes vítimas.

 

Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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