sexta-feira, 26 de novembro de 2021

 

Ainda os Intocáveis

 

Cesar Vanucci

 

“Nosso grande drama é a discriminação

 entre as castas superiores e os dalits e adivasis.”

(Pe. Stanny Jebamalai, indiano)

 

 Reportando-me às grandes tragédias dos tempos modernos de certo modo ignoradas pela humanidade, procurei retratar aqui o drama, de origens milenares, dos “intocáveis” indianos. Como já explicado, eles correspondem numericamente a quase duas vezes a população do Brasil. Carregam, passando-o de pai para filho, o “estigma da impureza”, adquirido de acordo com amalucados conceitos pseudorreligiosos em más ações que teriam praticado em vidas pretéritas...

Foi na estação ferroviária da deslumbrante cidade de Jaipur que vi estampada, de modo mais impactante, essa pungente tragédia. Visitava pela segunda vez o território indiano, um trecho do Atlas que abriga manifestações de arte e cultura catalogadas entre as mais portentosas da história da civilização. Estava chegando de Madupan, imediações da fronteira com o Paquistão, local em que se acha plantada a casa matriz da benemérita Brahma Kumaris, um Shangrilá transbordante de sabedoria e espiritualidade. A viagem de trem, de um ponto a outro, espichou por quase 12 horas. Durante o trajeto, resolvi percorrer os vagões de passageiros, da primeira à terceira classe. Protegendo-me dos solavancos do trem, circulei desembaraçadamente pelos corredores do interminável comboio. De repente, recebi uma ordem de guardas uniformizados para não seguir adiante. Os vagões seguintes não poderiam ser visitados. Eram de destinação exclusiva aos intocáveis. Esperei pelo final da viagem para ver, de ponto estratégico, os passageiros que desembarcariam dos “vagões proibidos”. Eles desceram por último, evitando aproximarem-se dos demais viajantes. Um cortejo chocante. Nas vestes andrajosas, nos escassos pertences transportados, na postura vergada pelas humilhações de vidas inteiras aqueles pobres coitados compunham um retrato falado da miséria humana na feição mais contundente que meus olhos jamais contemplaram. 

O padre jesuíta indiano Stanny Jemabalai, que elegeu a luta pela inclusão social dos intocáveis como profissão de fé, criando uma ong para desenvolver ações nesse sentido, descreve com exato conhecimento de causa, a dolorosa odisseia dos componentes das subcastas em sua terra. Confessando haver buscado inspirações em Ghandi, “nosso herói”, e no educador brasileiro Paulo Freire, na ajuda prestada aos dalits e advasis, lembra que essa gente não dispõe nem de dinheiro, nem de poder. Mas por serem numerosos, estão criando, com o correr dos tempos, uma forte consciência de comunidade. “Incentivando isso, a transformação até que se torna possível.” Trabalhando de cima da recuperação da autoestima dos intocáveis, o sacerdote procura estimular sua organização como grupo social, de modo a que possam batalhar por direitos milenarmente sonegados. A estratégia adotada, na linha pacífica de Ghandi, prevê o apelo às cortes judiciais nos casos rotineiros das lesões aos direitos individuais. Para que as coisas funcionem razoavelmente, a ong vem formando batalhões de “advogados de pés descalços”, como são conhecidos elementos recrutados no próprio segmento estigmatizado, graduados em cursos que fornecem noções fundamentais de direito. Esses advogados tão singulares integram um sistema não-oficial de Justiça, criado pela própria ong, com o intuito de acelerar decisões. Os mais qualificados são contemplados com bolsas de estudos em Universidades. Tais ações vêm favorecendo a aglutinação dos membros das “castas inferiores” numa mesma plataforma de reivindicações, de maneira a que os “indesejáveis” indianos possam enfrentar as odiosas discriminações de que são alvo. O jesuíta Stanny declara-se esperançoso quanto aos resultados do trabalho, conquanto reconheça as dificuldades quase intransponíveis dessa caminhada de libertação do opróbrio social a que os intocáveis são, há milênios, submetidos.

 

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