A milenar tragédia dos intocáveis
Cesar
Vanucci *
“A sensação é que ninguém se importa com eles.”
(Stanny
Jemabalai, jesuíta, defensor dos intocáveis)
Como estão em condições de testemunhar os que acompanham estes mal datilografados escritos, ocupo-me com frequência de descrições sobre tragédias de certo modo ignoradas. São listadas por organizações beneméritas da categoria da “Organização Mundial de Saúde”, “Médicos Sem Fronteiras” e outras. Muitas das calamidades verificadas em pontos diferentes deste Planeta Azul permanecem olvidadas por parcelas expressivas da sociedade. Parecem incorporadas ao cotidiano das pessoas, embora contundentes e dolorosamente injustas. Esses flagelos deveriam ser divulgados com maior ênfase, de maneira a permitir conscientização capaz de erradicá-los definitivamente, em nome da dignidade humana.
O foco de minha atenção está centrado hoje num drama milenar, de enraizamento cultural profundo, poucas vezes mencionado nos veículos de comunicação de massa. Estou falando do drama inenarrável, que abarca todas as elegias do sofrimento humano, dos “intocáveis” da Índia. Em termos numéricos, esses párias equivalem a quase duas vezes a população brasileira. Padecendo de generalizada e cruel discriminação, com origens fincadas em ideologia dita religiosa, mas que atende sintomaticamente nefastos propósitos de servidão humana, eles estão praticamente fora da base da pirâmide social em que se alojam as classes sociais daquele belo país. A pobreza a que se acham inapelavelmente condenados fica situada, pode-se dizer, ao rés do chão. São ignorados, desprezados, permanentemente vilipendiados em tudo e por tudo. Colocados à margem de todas as aquisições sociais coletivas, mesmo as mais elementares. Os olhares, as palavras, as posturas ao seu redor são reveladores de um estado de espírito comunitário aterrorizante. No entendimento das parcelas majoritárias da população, os intocáveis devem ser considerados criaturas desprezíveis. O melhor a fazer é não tomar o mínimo conhecimento, definitivamente, a pretexto algum, de sua desventurada existência. O estigma que carregam nas costas, por conta do preconceito, vira legado familiar. Passa de pai para filho, de forma irremediável, para todo o sempre. Não há como desvencilhar-se do fardo. Há milênios, a “herança maldita” vem sendo transferida de uma geração para outra.
O inflexível regime de castas vigente na Índia, país de (tantas) outras tradições culturais admiráveis – que divide as pessoas desde o nascimento e as classifica como brâmanes, kshatriyas, vaistyas ou sudras – confere aos dalits e aos adivasis, estes últimos descendentes do primeiro povo a habitar o território indiano, condição de integrantes de uma sub casta. A eles fica reservado na estrutura econômica e política - e isso vem ocorrendo há mais de três mil anos - um lugar bem abaixo de qualquer outro estamento social. Vistos como subumanos, são submetidos a regimes de trabalho degradantes. As rotineiras violações aos seus direitos fundamentais são recebidas pelos representantes das castas superiores com fatalística indiferença. A expressão intocável abriga o apavorante conceito, vastamente disseminado, de que o contato com elementos desse segmento, até mesmo com sua sombra, torna o contatado impuro, algo apontado como verdadeiro sacrilégio. A “impureza” decorre, numa interpretação alucinante de textos supostamente sagrados, de pecados cometidos em vidas passadas. É complexo, diria mais, impossível, para um vivente identificado com as crenças humanísticas estender esse revoltante sistema de castas que segrega, com assustadora naturalidade, milhões de seres humanos. E logo num país de cultura tão pujante quanto a Índia.
Essa,
provavelmente, é a tragédia de maior envergadura, pela sua permanência no tempo
e impossibilidade de soluções de alcance próximo, dentre todas as grandes
tragédias que o mundo, de certo modo, ignora.
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