quarta-feira, 14 de agosto de 2019


A “hierarquia da riqueza”, segundo Yuval

Cesar Vanucci

“Tal hierarquia é produto da imaginação humana”.
(Yuval Noah Harari)

Como prometido, para apreciação do distinto leitorado, vamos dar continuidade, nas ligeiras anotações de hoje, ao repasse de mais alguns conceitos expendidos na obra de Yuval Noah Harari. Trata-se, como já dito, de talentoso escritor israelense, catapultado, por força da crítica e da franca acolhida de seus livros nas livrarias, à crista da onda literária contemporânea.

Em “Sapiens – Uma breve história da humanidade”, publicação de quase 600 páginas, o autor proclama que a ordem imaginada constituída pelos norte-americanos em 1776, com a “Declaração da Independência”, para dar sustentação às redes de cooperação em massa organizadas pelos seres humanos com vistas ao relacionamento em comunidade, caracterizou-se pela incoerência e hipocrisia. Embora pregando, teoricamente, a igualdade de todos os homens, a referida ordem estabeleceu como regra, na prática, uma divisão social contundente. Consagrou – sublinha ele – “a hierarquia entre ricos e pobres”.

Palavras de Harari: “A maioria (...) quase não tinha problemas com a desigualdade causada por mais ricos que passavam seu dinheiro e negócios para os filhos. Na visão deles, igualdade significava apenas que as mesmas leis se aplicavam a ricos e pobres. Não tinha nada a ver com seguro-desemprego, educação integrada ou seguro-saúde. A liberdade também tinha conotações muito diferentes das que tem hoje. Em 1776, não significava que os desprivilegiados (negros, índios e muito menos, mulheres) podiam conquistar e exercer o poder.”

Yuval assinala que a “ordem norte-americana” veio endossar “a hierarquia da riqueza”, que alguns pensavam ter sido ordenada por Deus e outros viam como representação das leis imutáveis da Natureza. A Natureza, dentro dessa visão de mundo, recompensaria o mérito com riqueza, penalizando o demérito, rotulando-o de indolência.

O pensador israelense sublinha que as distinções entre homens livres e escravos, entre brancos e negros, ricos e pobres se fundamentam, na verdade, em meras ficções. Mas, mesmo assim – lembra ele –, uma lei férrea da história estabelece que a hierarquia das desigualdades negue flamejantemente tais origens ficcionais, afirmando-se natural e inevitável. Registros históricos indicam, por exemplo, “que escravidão não é uma invenção humana”. O Código de Hamurabi “reconhece” a escravidão como algo – vejam só! - emanado de Deus. E não é que o próprio Aristóteles – recorda o autor – garantia que os escravos tinham uma natureza “escrava”, ao passo que os homens livres tinham uma natureza livre”?...

Fortalecendo a argumentação em torno da tese de que a “hierarquia da riqueza”, com seus dramáticos efeitos sociais, é coisa dos homens, fruto da ganância dos homens, não um preceito divino, nem tampouco uma norma ditada pela natureza, Yuval envereda, na análise crítica, para uma outra vertente comportamental da cultura universal. Coloca na mira o apavorante regime de castas vigorante no cenário hinduísta. Acusa: “Os hindus que aderem a um sistema de castas acreditam que forças cósmicas fizeram uma casta superior a outra”. As diferenças sociopolíticas passam a ser, de acordo com esse atordoante entendimento, “tão naturais e eternas quanto as diferenças entre o sol e a lua”. Assinalando também que a cultura chinesa antiga admitia a distinção entre humanos pela implacável vontade dos deuses, já que “os aristocratas foram moldados em bela argila amarela e o restante dos homens em barro marrom”, o escritor reitera que “essas hierarquias são produto da imaginação humana”. Acrescenta: Brâmanes e Sudras não foram realmente criados por Deus. A distinção de castas – esclarece também -nasceu de leis e normas inventadas por humanos. Leis e normas humanas transformavam alguns em escravos e outros em senhores. Entre negros e brancos existem diferenças biológicas objetivas, como cor da pele e tipo de cabelo “mas não há nenhuma evidência de que essas diferenças se estendam à inteligência ou à moral”.

As considerações acima projetadas são pequeníssima amostragem de um relato eletrizante proporcionado pelo escritor numa obra que se tornou um dos maiores fenômenos editorais dos últimos tempos. São bastante numerosas as abordagens a respeito dos passos cruciais dados pelos seres humanos em sua extensa caminhada pela pátria terrena. Têm como foco tanto os avanços tecnológicos extraordinários contemporâneos, quanto as práticas horripilantes, ininterruptas no trajeto percorrido, que alvejam impiedosamente a dignidade e a nobreza da vida.

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