sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020


Rogério Faria Tavares *



Essa gente, de Chico Buarque




Vencedor do respeitado Prêmio Camões de 2019, Chico Buarque será lembrado como um dos mais notáveis artistas brasileiros de todos os tempos. Sua densa e vasta produção como compositor inclui canções eternas como “Pedropedreiro”(1965), “A banda” (1966), Apesar de Você” (1970), “Construção” (1971) e “Cálice” (1973). São de sua lavra peças teatrais como “Roda Viva”(1968),“Calabar”(1973),“Gota D’água”( 1975), e “Ópera do Malandro”(1979), quando apresentou ao público a travesti Geni, um de seus tipos inesquecíveis.

Fundamental para entender a cultura brasileira da segunda metade do século vinte, o estudo de sua obra exige um olhar profundo e elegante, que seja capaz de alçar-se à altura em que se situa. Filho de Sérgio Buarque de Holanda, autor do clássico “Raízes do Brasil” e sobrinho de Aurélio Buarque de Holanda, filólogo e lexicógrafo inesquecível, que nos legou o famoso ‘Dicionário Aurélio’, Chico  herdou de sua linhagem uma aguda habilidade para compreender as estruturas sociais e políticas, uma inegável sofisticação vocabular e um absoluto  domínio de seu ofício. Seu trato com as palavras – como acontece com os grandes criadores – acaba por renovar a potência do idioma em que se comunica, confirmando a imensa capacidade de expressão da língua.

A dedicação à música e ao teatro, no entanto, não o impediu de também enveredar, com êxito, pelos caminhos da literatura.A estreia de Chico em livro se deu em 74, com a novela “Fazenda Modelo”. Depois, vieram os romances “Estorvo” (1991), “Benjamim”, (1995), “Budapeste”, (2003), “Leite Derramado” (2009), “O irmão alemão” (2014), e, agora, “Essa Gente”, que li em poucos dias, como se passou com os demais livros.

Sedutor, “Essa gente” conduz os leitores pelo universo de Manuel Duarte, um escritor às voltas com duas ex-mulheres, algumas namoradas, um filho pré-adolescente e problemas financeiros decorrentes de uma carreira literária em decadência. O pano de fundo é formado pelo bairro do Leblon e a paisagem urbana do Rio de Janeiro, em toda a sua complexidade. Não ficam de fora referências à violência (em suas diferentes formas e seus múltiplos agentes), à desigualdade social, à expansão do poder das igrejas e ao acirramento de ânimos que caracterizam o país hoje, dividido entre a aposta na civilização e o poder da barbárie. É antológica a cena em que o personagem Fúlvio Castello Branco, advogado de prestígio, espanca um mendigo encostado no muro do Jockey Clube, de onde é sócio: “Acerta-lhe um pontapé nos rins, e depois de um chute nas fuças deixa o homem estatelado e arquejante no meio da calçada. Mal o Fúlvio vira as costas, o índio velho rola devagar no chão e volta a se ajeitar com a bunda no muro do clube” (pp. 47- 48).

A narrativa não é contada de modo linear. Ela vai e volta no tempo. Não há apenas um narrador, mas vários, incluindo um que fala em terceira pessoa. Os textos são reunidos sob as datas de sua elaboração, quase todas de 2019, o que comprova o quanto o livro fala do Brasil contemporâneo. Vários deles são apresentados como se fossem cartas. Uma das reflexões principais do livro é justamente sobre o processo da escrita e as fronteiras, muitas vezes embaralhadas, que ela estabelece entre ficção e realidade.


*  Jornalista e Presidente da Academia Mineira de Letras



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