sexta-feira, 28 de março de 2014

A Primazia é da Vida

“A vida é tudo que se tem
Assim, vamos tê-la” (Anon).

 Não deixo por menos. Fico simplesmente estarrecido diante da revelação de que um portador de doença pertinaz viu-se forçado, em dado instante, a recorrer à Justiça para poder fazer uso de medicamentos receitados, de valor elevadíssimo, inacessível à sua capacidade financeira. O preço da droga (R$36mil, neste preciso caso), composta de drágeas para consumo no período de apenas um mês, uma a uma, é de tamanho a levantar justificada indignação. Custo de remédio nessas altitudes everestianas nem milionário “guenta” ...

Dou-me conta ainda, a proposito de tão candente questão, que os valores extorsivos dos remédios são geralmente vistos, por quase todo mundo, de autoridades a incautos consumidores, com surreal naturalidade. Essa espantosa indiferença face a coisa tão séria estende-se ainda à circunstância de ser habitualmente encarado como situação normal o custeio de remédios de alto valor, eventualmente bancado pelo governo para atender a quem não tenha dinheiro para adquiri-lo. Por lastimável equivoco de interpretação das regras fundamentais da vida poucos ousam apontar quem é e quem não é vilão nessa atordoante e desconcertante historia. Afianço, com convicção, que não são os governos (pelo menos exclusivamente) e nem tampouco os consumidores. Algo definitivamente funciona errado num processo que seja capaz de estipular, ao gosto exclusivo das altamente lucrativas multinacionais atuantes no ramo de medicamentos, a prerrogativa de definir preços escorchantes e jogar todo o ônus para o consumidor, ou para o Erário Público.

Hoje, mais do que nunca, estou solidamente convencido da justeza dos conceitos expressos em artigo publicado há mais de um decênio neste mesmo espaço. O que defendi com ardor e volto a defender, com a republicação que vou fazer do tal comentário em minha próxima participação nesta página, é a tese de que a vida moderna, ancorada em preceitos de justiça social, nos direitos humanos essenciais, aconselha - mais do que isso reclama - a reformulação com urgência urgentíssima dos critérios universais que andam norteando a comercialização de remédios capazes de salvar vidas.

Aos inventores e fabricantes dessas fórmulas prodigiosas sejam assegurados, para todo o sempre, todos os aplausos e reverencias, todas as honras, glorias e recompensas pecuniárias que façam por merecer. Esse procedimento é correto. Mas, por outro lado, o acesso livre, sem obstáculos de qualquer natureza de todos os cidadãos aos benefícios proporcionados pelos produtos farmacêuticos derivados de ações criativas, amparadas em louvável conhecimento cientifico e aplaudido conhecimento profissional, terá que ser garantido imediatamente, assim que anunciada a descoberta dos mesmos. Sem essa, por conseguinte de explorar à exaustão as vantagens comerciais por tempo a perder de vista. Medicamento que salva vidas é um bem precioso que carece ser incorporado de pronto ao patrimônio comum da humanidade. O mundo vai ter que caminhar inapelavelmente na direção de compor uma sistemática de comercialização de remédios que assegure a quem precise, a tempo e a hora, sem ônus abusivos, o produto farmacêutico indicado no receituário como essencial ao restabelecimento da saúde do paciente. A primazia sobre tudo que existe e acontece deve ser sempre da Vida.

Genoma, encantamento e preocupação

Cesar Vanucci *

Daí ser a venda de remédio um negócio de primeira ordem”
(Antônio Callado)

Este desajeitado escriba, com suas prosaicas e quiméricas interpretações do jogo da vida, entende que as ideias expendidas neste artigo, publicado há 15 anos, conservam frescor de atualidade: Hollywood já fez uma penca de filmes explorando o filão. Alguns deles interessantíssimos, sobretudo se levada na devida conta a espetaculosa pirotecnia bolada pelos craques em efeitos especiais que enxameiam os estúdios. Numa das fitas, aquele ator com panca de halterofilista olímpico e talento duvidoso, que se tornou depois governador, de nome Arnold e sobrenome difícil de pronunciar e escrever, vive papel marcante como herói galáctico.

Ao recobrar a lembrança de acontecimentos passados, escondidos no inconsciente por efeito de manipulações químicas provocadas por desafetos, o protagonista desencadeia uma ação justiceira contra os todo-poderosos donos de um sinistro esquema detentor do controle do oxigênio que abastece uma colônia terráquea em Marte. Noutras histórias, igualmente ambientadas num futuro dominado por tipos, maquinário e paisagens surrealistas e também estreladas por intérpretes de bilheteria certa, vilões da pior espécie aprontam pra cima da coletividade, controlando com o objetivo do poder e de ganhos financeiros, as fontes de fornecimento de bens vitais, como a água e o combustível. Assumem postura imperial na condução dos destinos da “ralé”. A peleja dos mocinhos encaixados nos enredos dos filmes refaz a ordem de coisas, de modo a poder redistribuir os benefícios por todo mundo.

Se é que já não aconteceu, fazendo com que este aplicado cinemeiro tenha passado batido, não vai demorar muito para a tormentosa questão dos medicamentos de cura não aplicados em enfermos que não possam pagar, acabar virando filme. Será uma continuidade natural da saga agourenta dessa categoria de películas, fantasiosas ou não, onde se projeta uma temática explosiva dentro dos descaminhos trilhados pela ambição e egoísmo humanos.

O Projeto Genoma, tão decantado em verso e prosa nestas horas de grande efervescência científica e tecnológica, tem muito a ver com o assunto. Pelo andar atual da carruagem, já dá pra perceber que as conquistas resultantes de tão fulgurante realização não vão ser colocadas ao dispor, pelo menos de imediato, de todas as criaturas. São indisfarçáveis os sinais de uma movimentação frenética dos grupos responsáveis pelo monopólio dos bens voltados para saúde no sentido de, a partir do conhecimento exclusivo das fórmulas de cura das doenças, abocanhar ganhos polpudos e ininterruptos sobre a produção dos remédios, criando assim uma nova escala de privilégios e prioridades no acesso da população a eles. Por isso mesmo, a um só tempo que fascina, o Projeto Genoma não deixa também de amedrontar.

O lado do encantamento decorre das infinitas e promissoras possibilidades que começam a ser pressentidas pelo homem, em sua busca infatigável de novos níveis de conforto e bem-estar, com fundamento nas luminosas descobertas anunciadas. Os avanços poderão ser de tal magnitude que alguns estudiosos, entregando-se a voos extremamente ousados de esperança e imaginação, vaticinam possa o homem chegar, no espaço de poucas décadas, à decifração completa do código genético, de maneira a alcançar, até mesmo, a imortalidade física. E, junto, surgirão curas impossíveis, a regeneração de órgãos e tecidos, a recuperação para a vida de indivíduos condenados ao sofrimento perene por conta de males hoje sem remédio.

O outro lado da moeda exibe o temor de que venha a acontecer com os esplêndidos frutos da ciência moderna o mesmo que acontece, aqui e agora, em tantos lugares, com outros bens vitais indevidamente apropriados pela cobiça de grupos econômicos desapartados do sentido social das atividades produtivas. Os remédios que garantem sobrevida aos portadores de HIV positivo, até que surja a vacina ou o antídoto salvadores, só são assegurados hoje a parte das populações atingidas pela epidemia. Dispõe do medicamento, em boa parte do mundo, quem possa comprá-lo ou quem consiga obtê-lo junto a organizações públicas ou privadas dotadas de recursos para adquiri-lo no mercado. (Abra-se aqui parênteses para lembrar que o Brasil não deixa de ser, auspiciosamente, nesse capitulo especifico, uma magnifica exceção, já que a Saúde Pública garante acesso aos medicamentos que combatem o mal a todas as pessoas). O resto, a esmagadora maioria, impedida de receber a medicamentação por falta de dinheiro em dezenas e dezenas de países, fica na fatídica fila de espera dos registros obituários. A situação da doença na África, que se transformou em verdadeira pandemia, é amostra cabal e suficiente do que costuma ocorrer por esse mundo do bom Deus onde o diabo costuma fincar seus enclaves.

Ficamos a imaginar se já não está passando a hora de se introduzir nos códigos a obrigação de se colocar sob a égide da sociedade um ditame de convivência social, segundo o qual todo e qualquer bem considerado vital, como é o caso dos medicamentos que comprovadamente salvem vidas, se incorpore, imediatamente, assim que comprovada sua eficácia, ao patrimônio dos benefícios comunitários a serem desfrutados por toda humanidade. Aos descobridores das fórmulas salvadoras, todas as honras, todas as glórias e uma recompensa material justa, conferida por governos e sociedade. Mas, jamais, a outorga ilegítima, a eles, através do controverso esquema das patentes, de poderes para atuar como deuses do Olimpo interferindo no processo de estender, reduzir, salvar ou condenar vidas.  Medicamento que cura é que nem oxigênio. É pra todo mundo. Sua distribuição não pode ser seletiva, ao arbítrio ou capricho de interesses mesquinhos, situados além e mesmo contra o espírito da solidariedade humana e da justiça social.








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