sábado, 1 de março de 2014

Melou a festa
Cesar Vanucci *

"Uma ocorrência escabrosa!"
(Palavras do presidente do clube a respeito
dos preservativos largados no reservado feminino)

Sacumé, uma coisa puxa outra.
Leitor assíduo destas maldatilografadas, reportando-se às trapalhadas do moleque Candinho, contadas na crônica de sábado retrasado, 22,, lembrou-me de uma outra ocorrência aqui relatada, anos atrás, com foco no ex-impublicável vocábulo “preservativo”. Vocábulo esse que em tempos de antigamente era mais conhecido por “camisinha de vênus”.  Vocábulo que ninguém, por pudor e respeito aos tímpanos pudicos da época, ousava pronunciar em ambientes familiares e rodas sociais ajuizadas e respeitosas. Vocábulo ainda que, nos dias tumultuados de hoje - mas que baita mudança nos costumes, minha Santa Engrácia!- frequenta intensamente anúncios institucionais na televisão, com prudentes aconselhamentos a moças e rapazes para que conservem sempre ao alcance nas mãos os aplicativos de látex a que se refere.
A história citada pelo leitor, colocando em estridente confronto costumes de épocas bastante distanciadas, é esta aqui.
A batucada carnavalesca ia à toda no suntuoso clube, "frequentado pela nata de nossa progressista sociedade," segundo a abalizada opinião do festejado colunista do jornal da cidade. A moçada rodopiava pelo salão  ricamente decorado, entregando-se com animação às relativamente bem comportadas brincadeiras, típicas dos folguedos, toleradas nas posturas morais dominantes. Das mesas, ao redor da regurgitante pista de dança, pais zelosos acompanhavam as graciosas evoluções das filhas donzelas, com suas fantasias multicoloridas, de apurado gosto. De súbito, percorreu o salão, de mesa em mesa, trazido pelo vento do espanto e da indignação, um chocante relato. A esposa do diretor social, dama de peregrinas virtudes e de inatacável respeitabilidade moral, acabara de testemunhar, entre soluços e lágrimas, na sala de estar do reservado feminino, algo "deveras escabroso". A "indecente ocorrência", tomando emprestadas palavras do presidente do clube na reunião de emergência montada para uma tomada enérgica de providências, consistiu na descoberta, largadas sobre o confortável divã onde madame se refestelava depois de haver retocado a maquiagem, de algumas "camisinhas de vênus" com indícios de uso recente. A primeira versão extraída dos fatos dizia que um casalzinho "prafrentex" havia resolvido mandar pra cucuia, na cara e na coragem, valendo-se de momento de distração da vigilância, as sadias regras da moral e dos bons costumes. Chegou-se mesmo, com certo açodamento, à citação de nomes de supostos autores da "sórdida proeza". O que acabou acendendo comentários maledicentes e, mais tarde, malquerenças familiares insanáveis. Outra versão posta nas especulações arguia a hipótese de que "aquelas indecências" houvessem sido lançadas por estudante de maus bofes de cidade vizinha rival, depois de tomar umas e outras.
O auê à volta do "ato de depravação", cujos pormenores restaram inexplicados para sempre, tirou a graça dos carnavalescos. Melou a festa. Chefes de família, batendo duro os calcanhares, convocaram as distintas consortes e amuados rebentos para se recolherem mais cedo aos domicílios. O baile seguinte, "terça-feira gorda", sem intenção de trocadilho, foi magro. Bem aquém das expectativas.
O incidente rendeu outros ruidosos desdobramentos. Numa assembleia religiosa, dias depois, devotos piedosos acompanharam, compenetrados, incandescente prédica tendo como foco o "abominável caso", com citações das passagens bíblicas que se ocupam das depravações acontecidas em Sodoma e Gomorra.
Isso tudo nos remete inevitavelmente a instigante reflexão: quem, dentre as testemunhas oculares do bololô armado no salão, ousaria imaginar que os "pecaminosos artefatos de látex", mercadoria clandestina incogitável nos hábitos de consumo das pessoas de bem, passariam a ser maciçamente distribuídos pela Saúde Pública num futuro não tão distante? Mais ainda: quem conceberia num exercício mental tresloucado a hipótese de que a inimaginável distribuição sob a égide oficial pudesse vir a ser ainda acompanhada de expressas recomendações paternas, aos mancebos e moçoilas em flor, para que os conservassem sempre à mão, guardadinhos nos bolsos e nas bolsas, pra atender situações de emergência geradas pelas circunstâncias efervescentes do tríduo carnavalesco?

País do carnaval

 “O carnaval é a única festa nacional
que consola a gente (...) da queda do mil-réis,
da política, dos programas de salvação pública!”
(Ribeiro Couto – 1898-1963)

Brasil, país do carnaval! Há quem demonstre forte desagrado com a designação. Franzindo a testa em sinal de que comeu e não gostou, coloca desdém na voz sempre que chamado a falar sobre a grandiosa celebração popular. Considera a manifestação um baita despropósito. Algo que, em seu distorcido parecer, empobrece pra valer a cultural nacional.
É claro que a turma partidária desse ponto de vista está rotundamente equivocada. Como também é notório que parte dessa minoria de viventes preconceituosos em relação ao carnaval não é de se rejubilar com a circunstância de nos fazermos também reconhecidos como país do futebol. Não é improvável, também, que se sintam mais à vontade na comemoração, por exemplo, do “halloween” do que de uma festa junina tipicamente roceira. Ou até que achem naturalíssimo o emprego pedante e amiudado, no bate-papo com conhecidos, de expressões em “inglês moroless”, como “feedback”, “brunch”, “feeling” (e por aí vai...), para classificar situações obvias do cotidiano.
Não nos importemos, todavia, com o que alguns poucos pensam e dizem do carnaval. As vibrações feéricas, magnéticas, contagiantes desse inigualável festejo, aqui por estas bandas, são únicas. Exprimem admiravelmente, como acontece também no reino do futebol, o modo de ver e sentir de nossa gente. Estampa, de forma magistral e exuberante, as múltiplas faces da genuína cultura nacional.
Disponho-me a contar, em seguida, coisas amenas de outros carnavais. Naquele tempo, sabe seu moço, a criação musical era mais pujante. O carnaval era época geralmente reservada para lançamento de belos sambas e marchas, boa parte deles até hoje com lugar assegurado na memória das ruas.
“Ala la ô”, “Chiquita Bacana”, “A Jardineira”, “Não me diga adeus” são alguns clássicos da incomparável canção popular brasileira nascidos nos teatros-revistas e nas rádios, por ocasião do então chamado “tríduo momesco”. Essa expressão aí, por sinal, acabou caindo em desuso em todas as partes do país, mas, na verdade, um pouco mais mesmo na Bahia, já que o carnaval da boa terra costuma começar bem antes e acabar muito depois, como é sabido por todos e desfrutado por muitos.
Autores e intérpretes musicais se preparavam, então, para o carnaval com o mesmo capricho e cuidado de qualquer artista na antevéspera de uma temporada de espetáculos. O concurso das melodias carnavalescas fazia parte do show. Servia de trampolim para a glória.
Naquele tempo, lança-perfume não era considerado esguicho alucinógeno. Todo folião digno do nome trazia-o sempre ao alcance da mão, nos salões e nas ruas. Os mais abonados adquiriam caixas de artefatos metálicos. Outros já consumiam os de vidro, mais baratos. Tinha-se por certo, na consciência coletiva, que o dano extremo que o emprego do lança-perfume conseguia produzir era um ardor incômodo, quando o gélido jato do conteúdo das bisnagas atingia o olho de algum desprevenido folião. Vez por outra, alguns poucos carnavalescos, debaixo da reprovação da maioria, se compraziam em promover duelos de lança-perfume. Contrariavam, assim, a regra pacificamente aceita de que o lança-perfume nada mais era do que uma forma galante de aproximação.
O carnaval bem diferente dos tempos de hoje projetou, nos últimos anos graças sobretudo à cobertura da televisão, uma visão panorâmica impressionante da capacidade artística brasileira. A alegria, que costuma explodir franca e espontânea em tudo quanto é espaço ocupado pelos foliões, serve de pano de fundo para que sejam expostas – repetimos - as múltiplas e exuberantes faces da cultura nacional.
As tradições, os símbolos folclóricos, os mitos, os costumes de cada região, trabalhados por carnavalescos criativos, ganham colorido, ritmo e vibração nas manifestações. E deixam no espírito popular a certeira certeza de que, seja no Rio, ou em São Paulo, nas cidades históricas de Minas, na Bahia, em Pernambuco, ou no Amazonas, vive-se, todos os anos, nessa época, em todo o Brasil, uma festa popular incomparável em matéria de promoções a envolver multidões. Produto pra desfrute turístico que nenhum outro país do planeta tem condições, vontade e capacidade de oferecer.

País do carnaval, sim! Com orgulho.

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