sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Homenagem a Francelino

Cesar Vanucci*

“A repetição é a melhor retórica”
(Napoleão Bonaparte)

Num encontro de congraçamento que reuniu representantes de dezenas de instituições culturais, a Federação das Academias de Letras e Cultura de Minas homenageou, dia 14 de dezembro, no Automóvel Clube/BH, o ex-Governador Francelino Pereira. Designado pelo Presidente da entidade, escritor Aloísio Garcia, dirigi ao homenageado a saudação reproduzida na sequência.

“O que tenho para dizer, em boa e leal verdade, a respeito do cidadão no foco desta carinhosa celebração constitui um somatório de edificantes informações. Todas do conhecimento, certeiramente, não apenas dos que se acham neste recinto, como também de um mundão de gente lá fora, Uns e outros convencidos, por óbvios motivos, de que Francelino Pereira é um cara que faz parte do mundo invejável dos corações fervorosos. Um ser humano que sabe das coisas. Que vive com intensidade e sabedoria os lances de cada momento da fascinante aventura humana. Alguém que compreende perfeitamente, nas ações executadas, qual o dever primordial do ser humano. Qual seja, ser apenas, unicamente e suficientemente, ele mesmo, e mais ninguém, como propõe Ibsen, pela fala do personagem Peer Gynt, em “A comédia do amor”.

Tem importância não, por conseguinte, que as palavras endereçadas ao ilustre patrício, mineiro nascido no Piauí, um mestre na interlocução política, que aprendeu a introjetar nas palavras energia, generosidade, idealismo e sonhos, sintonizado sempre com o sentimento nacional; tem importância não, repita-se, que estas singelas palavras repitam registros já feitos, conceitos já expendidos, certamente com brilhantismo que me seria impossível reproduzir, nas outras numerosíssimas ocasiões em que Francelino Pereira foi merecidamente festejado. A repetição é a melhor retórica, como proclamava Napoleão. A melhor forma, talvez, de garantir a fixação na memória das ruas de figuras e feitos realçantes na história da construção humana.

O chão percorrido por Francelino se entrelaça, por largo espaço de tempo, com o chão de Minas Gerais. Chão a perder de vista. Chão áspero desbravado com indômita vontade por alguém predestinado a desempenhar missão relevante na história. Chão que, a partir de Angical, nas lonjuras piauienses, se encomprida pelas vastidões montanhosas do país das Gerais. Avança, ao depois, pelos chapadões sem fim do Planalto Central. Embica, adiante, por tudo quanto é canto do deslumbrante continente brasileiro. Chão palmilhado por Francelino Pereira. Um homem que se encantou, desde cedo, com a nobreza da ação política, abraçando-a como ideal de vida inteira, cobrindo percurso extenso, pontuado de cintilações.

Pouco tempo atrás, os jornalistas Kao Martins, Paulino Assunção e Sebastião Martins, ancorados em esplêndido trabalho de pesquisa, compuseram essa bela trajetória do “menino, jovem e adulto que teve a audácia de sonhar um sonho impossível, a determinação de persegui-lo e – contra todas as previsões e evidências – realizá-lo integralmente”. O livro “O chão de Minas”, que na verdade fala do chão de Francelino, ocupa-se de uma saga inspiradora. E que saga! Descreve, com riqueza de pormenores, trazendo um numero sem conta de revelações inéditas, os caminhos trilhados por esse cidadão nascido no Piauí, mas mineiríssimo quanto os que mais o sejam, que por meio século afora desempenhou papéis de magnitude no palco dos acontecimentos. O pano de fundo da jornada projeta pedaço de tempo de forte impacto na história brasileira. Tempo sacudido por turbulências ideológicas, entrechoques ferozes, emoções arrebatadas. Por clamorosas perdas de direitos essenciais, em instantes trevosos. E, em momentos posteriores, tempo também marcado, recompensadoramente, pela reconquista preciosa do regime democrático, com seus valores e imperfeições humanos, mas com suas insuplantáveis vantagens sobre quaisquer outras formas de governos. Como Vereador, Deputado Federal, dirigente partidário, Governador de Estado e Senador, Francelino viveu intensamente a ebulição desse processo histórico carregado de transformações.

Cuidou de escrever com lisura ética, espírito público, bom senso, disposição progressista, o capítulo correspondente à sua participação. Bem dotado intelectualmente, hábil e conciliador, construiu pontes de relacionamento com correligionários e adversários, nas diferentes correntes políticas. Essas ligações se revelariam extremamente valiosas em horas cruciais. Dono de sólida formação humanística, com seu jeito de ser afável, simples e descontraído, ele nunca se desapegou nas culminâncias do poder, de hábitos que lhe garantiram, vida pública adentro, apreço e admiração em todos os segmentos da comunidade. Eu sei que, nos tempos de Governador, Francelino costumava tomar do telefone para mensagens pessoais que, não poucas vezes, surpreendiam o contatado. Bate-me aqui, na memória, historinha que ouvi contar. A esposa de um executivo atende, na manhã de um domingo, o telefone e diz com voz meio desconfiada para o marido: - Tem alguém aí dizendo que é o Governador. Quer falar com você. Cumprimentá-lo pelo aniversário. Tou achando que é mais uma brincadeira de seu irmão... Era brincadeira, não.

Há episódios pouco conhecidos na atuação do homenageado que só fazem enriquecer-lhe a lenda pessoal, colocando à prova sua vocação cívica. Um deles: frente a frente com Costa e Silva, que o convidou para encontro no palácio presidencial, Francelino recusou-se a seguir a orientação dada pelo Governo no caso da pretendida cassação do mandato do Deputado Márcio Moreira Alves. Seu nome, por conta disso, chegou a ser incluído numa lista de cassações elaborada pouco depois da edição do dolorosamente célebre AI-5. Misteriosos desígnios impediram fosse a violência consumada. Adiante, Francelino empenhou-se de corpo e alma, como era costume dizer-se em tempos antigos, na batalha pela almejada distensão política, à hora da transição do regime autoritário para o estado de direito. Em todas as funções exercidas, primando-se sempre pela austeridade, deixou evidenciada singular capacidade empreendedora. Atos marcantes de sua trepidante movimentação política anotam que ele sempre fez uso correto e harmonioso, nas intervenções e articulações, de uma boa dose de energia e outra de jeito.

Tomando posse, por força de significativa contribuição cultural, na Academia Mineira de Letras, confessou sua enternecida paixão por Minas: “Nesta terra construí minha vida e meu destino. (...) A esse espírito e a essa alma mineira dediquei toda a minha vida e o melhor da minha capacidade.” Pura verdade.

A trajetória pessoal de Francelino documenta magistralmente tudo isso. Sua disposição para servir, sua vida e obra, vinculadas à história do desenvolvimento político, econômico e social de Minas, com benfazejos reflexos no plano nacional, asseguram-lhe lugar na galeria dos grandes vultos mineiros que, nas ultimas décadas, tanto contribuíram para que o Brasil pudesse cumprir em plenitude sua indesviável vocação de grandeza”.



Revendo um filme maldito

Cesar Vanucci *

“ Os vícios de outrora são os costumes de hoje”
(Sêneca)

De princípio, uma baita curiosidade. Ao depois, certa surpresa, quase derivando para aturdimento. Junto, sorrisos e, pra arrematar, irrefreável riso. Correu assim, sem tirar nem por, o meu reencontro agora com um filme visto com mistura de deleite e sobressalto há mais de meio século. Minha Nossa Senhora da Abadia D’Água Suja, como os costumes se alteram no cotidiano da vida!

Noite dessas, revi na telinha o “ Les Amants”, de Louis Malle, filme apontado como “maldito” quando do lançamento em 1958. Recordo-me bem, vasculhando a jeito as ladeiras da memória, da pororoca de registros desairosos que a fita acumulou em curto período de projeção. A fúria do ultra puritanismo foi de tal monta que as autoridades competentes, de um governo (JK) considerado o mais aberto a manifestações culturais de vanguarda que o País ao longo de sua história já havia experimentado, não tiveram outra alternativa senão a de proibirem a exibição nos cinemas. Uma leve insinuação de cena erótica supostamente nunca dantes mostrada deu origem às reações. Nas portas das salas de projeção fileiras de pessoas de mãos dadas, algumas carregando terços, exprimiam sua zanga com relação àquela obra blasfema, herética, demoníaca, que agredia, segundo se propagou, a moral, os bons costumes, os valores familiares e religiosos mais sagrados. Em púlpitos, tribunas, colunas de jornais essas reações coléricas também explodiam. Apreciadores de cinema que ousaram, naqueles momentos turbulentos, desafiar o veto dos autoproclamados censores de plantão, assistindo ao filme no curto espaço de tempo em que em foi mantido em cartaz, eram mimoseados com ensurdecedores apupos. Colocaram-se sob ameaça mesmo de constrangimentos físicos. O Chefe de Polícia, que detinha poderes quase equivalentes aos de um Ministro militar, veio a público para assegurar sua total disposição de resolver a pendência, se preciso na marra, caso tardasse a sair a decisão judicial desfazendo aquela pouca vergonha.

Creio chegada a hora de fornecer ao distinto público, sobretudo aos que não viram “ Les amants”, algumas informações acerca da fita. Drama francês, como já dito, dirigido por Louis Malle, expoente da chamada “Nouvelle Vague”, e estrelado pela fascinante Jeanne Moreau, com Alairr Cunn, Jean-Mare Bory e Judith Magre nos demais papéis de realce, o filme, rodado em preto e branco, narra a história de uma relação amorosa extraconjugal. Do ponto de vista estético e das interpretações é uma obra, ainda hoje, digna de louvor, o que explica o “Leão de Ouro” conquistado no Festival de Veneza, um dos muitos prêmios que conseguiu arrebatar.

A “cena escandalosa”, de cunho amoroso, que provocou a ira santa levada às ruas pode ser apontada hoje, em comparação com as cenas de qualquer filme romântico exibido em vesperais infantis, como uma singela referência pudica enquadrada na mais edulcorada concepção de relacionamento afetivo bolada na literatura de madame Delly. Oportuno relembrar, como outro indicador da atmosfera puritana então vigente, que à mesma época uma reação nesse mesmo tresloucado figurino cercou também outro filme, este brasileiro, “O Padre e a moça”, de Joaquim Pedro de Andrade.

Depois de haver revisto “Les Amants”, tantos anos decorridos, sinto-me tentado, com absoluta tranqüilidade de espírito, a registrar aqui uma sincera recomendação. Em eventual seleção de fitas visando proporcionar saudável entretenimento a religiosas reclusas, sugiro, respeitosamente, às dignas e zelosas Superioras das congregações que refuguem produções fílmicas românticas produzidas nestes confusos tempos atuais, substituindo-as por sessões corridas dessa terna e lírica criação artística de Louis Malle, por seu conteúdo mais edificante.

* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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