sexta-feira, 3 de junho de 2011

Baboseiras emergentes


Cesar Vanucci *

"Civismo é (...) zelar pela pureza
do idioma e dos costumes herdados"
(Coelho Neto)


Um dos vinte e cinco leitores assíduos destes maldatilografados escritos abastece-me de informação que serve, alentadoramente, para enriquecer as considerações a propósito das agressões contínuas sofridas pela economia e cultura brasileiras.

Segundo ele, os restaurantes que mais faturam na praça, vale dizer, que mais fregueses atraem, são os de denominação – às vezes, tão saborosa quanto os pratos do cardápio – com som, jeito e cara de Brasil. O leitor explica que na avaliação pessoal procedida deixou de levar em conta, como estabelecimentos classificados na "lista estrangeira", as casas típicas cujos nomes fantasia se mostrem vinculados, por óbvios motivos, à natureza essencial do negócio. E tira animadora conclusão para quem se disponha a defender, com espírito cívico, o apreço na lida cotidiana ao idioma do país: o povo sabe assumir, instintivamente, a proteção dos valores culturais da nação. Imagino seja mesmo assim que as coisas rolem nos redutos populares. E me ponho a pensar quão proveitosa poderia vir a ser em revelações uma pesquisa aprofundada das preferências comunitárias, nessa linha de averiguações seguida no caso dos restaurantes.


As desfigurações e o achincalhe linguísticos, bem como outras habituais modalidades de agressão cultural, têm origem no pauperismo intelectual subjacente a ambientes sofisticados onde a falsa erudição reina e onde muitos se entregam, embriagadoramente, ao  jogo  fantasioso de pertencer às chamadas "elites emergentes". Nesse território de pedantismo elevado ao cubo é de bom tom o emprego de estrangeirismos no papo trivial. Não se trata aí do uso pertinente de vocábulos ainda não traduzidos, indispensáveis ao entendimento de um processo tecnológico relevante. Nem de citações, perfeitamente compreensíveis, em idioma alheio, capazes de definirem com melhor precisão uma circunstância típica ligada a realidade cultural de outros lugares. Nada disso. O que merece condenação é o emprego de estrangeirismos forçados, roçando o desrespeito. A expressão decorada fica engatilhada no canto da língua ou armazenada na gaveta da memória, aguardando hora e vez de ser lançada, com pernosticismo, em manifestações orais e escritas.

Correspondências, convites, discursos, entrevistas, painéis de rua, folhetos e volantes contendo ofertas de ocasião: a situação é de puro surrealismo, concorre para a poluição sonora e visual, sendo vivenciada na indigência cívica e intelectual de uns e outros.

Dia desses, uma comerciante da praça recebeu carta de fornecedor, salpicada, como é de praxe em certas áreas, de frescurinhas vocabulares. Do impresso, bem cuidado do ponto de vista gráfico, cores harmoniosamente distribuídas, caracteres de letras sugestivos, o escambau, constou proposta à destinatária para cooperar com o missivista no sentido de que, juntos, pudessem "alcançar nossa gestalt". A dama agraciada com a desconcertante proposta, pessoa muito temente a Deus, desafeiçoada à terminologia alienígena solta por ai, só se tranquilizou mesmo quando a filha, estudante de Psicologia, rindo à bandeiras despregadas, explicou o significado da instigante palavra. Constatou-se, então, que gestalt, expressão alemã, sem tradução no vernáculo, de conteúdo substancioso, identifica uma técnica utilizada em Psicologia, transmitindo idéia aproximada de totalidade, abrangência, por aí. Descobriu-se, também, que o termo vem trafegando com crescente desenvoltura pelos descaminhos das incontinências verbais. Foi adotado, com entusiasmo iconoclasta, para o uso impróprio costumeiro, pela turma que considera o máximo, em matéria de saber, a capacidade para introduzir de enfiada num diálogo de cinco minutos as palavras "book", "inside", "feeling", "feedback" e outras do gênero. Ou que considere uma suprema bem-aventurança receber em casa, com o nome grafado de próprio punho pelo anfitrião, um "emergente" qualquer, convite para um "brunch" ou "happy hour".

Carradas de razão assistia a Schiller, quando asseverava que "com a tolice os próprios deuses lutam em vão".

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

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