sexta-feira, 24 de junho de 2011

Um certo Mia Couto


Cesar Vanucci *


"Onde restou o homem, sobreviveu
semente, sonho a engravidar o tempo."
(Mia Couto, escritor moçambicano)


Espera fatigante em aeroporto estrangeiro, para pegar conexão de vôo que me trouxesse de volta ao Brasil, proporcionou-me a descoberta de um autor que escreve maravilhosamente bem no idioma falado em nosso país. E que, à parte ligeiras diferenciações, mais de forma que de conteúdo, é o idioma também falado em sua terra natal, Moçambique. Com certeira segurança, apreciadores da boa prosa literária, melhormente informados do que rola nesses domínios encantados da arte feita em letra de forma, já terão chegado, muito antes, às mesmíssimas conclusões a que este retardatário e desavisado amigo de vocês só agora está conseguindo chegar, depois da leitura embevecida das "Estórias abensonhadas", de Mia Couto. Consola-me o adágio das ruas: antes tarde do que nunca.

O modo de Mia Couto se exprimir, como craque titular do escrete da palavra, desperta no leitor um redemoinho de emoções. A começar pela forte impressão que passa de ser um apaixonado apreciador e seguidor, com brilho próprio natural, da escola de recriação da linguagem instituída por mestre Guimarães Rosa. A comparação não implica em desdouro pro escritor. Muito antes, pelo contrário. Na verdade, adiciona louvação a mais em cintilante trajetória literária. O texto destila poesia a mais genuína. As interpretações líricas dos flagrantes da vida moçambicana retratados nos contos são de lindeza única. Mia soube captar com mestria a fala sábia do povo, ditos regionalistas de extremo sabor. Transpôs para o livro experiências vividas e sofridas de sua gente, "entre as margens da mágoa e da esperança", depois da guerra que devastou o país.

Seu parentesco espiritual com Guimarães Rosa é revelado, igualmente, de forma bastante nítida, no tratamento místico dispensado aos personagens, paisagens e coisas. Por conta disso ocorreu-me até, após a leitura inteira e a releitura de alguns capítulos mais absorventes de "Estórias abensonhadas", a idéia de pedir, qualquer hora dessas, ao Professor José Maria Martins, autor de esplêndido e instigante estudo sobre a obra de Guimarães ("O alquimista do coração"), uma avaliação desses escritos e de outros mais do autor, enfeixados sob os títulos "Vozes anoitecidas", "Cronicando", "Cada homem é uma raça", "Terra sonâmbula", "Cantos do nascer da Terra".

Com seu transbordante lirismo, no toque mágico que imprime às palavras na linha do realismo fantástico, no humanismo permanentemente aflorado e no estilo arrebatante no contar causos e no desenhar perfis humanos, Mia Couto se mostra escritor com lugar de realce garantido na literatura portuguesa. Suas estórias falam de um território "onde nós vamos molhando de esperança o rosto da chuva, água abensonhada". Um território "onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta".

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)


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