quinta-feira, 15 de outubro de 2020

 São Francisco de Assis - vida e obra

O trabalho vindo na sequência, de autoria da Acadêmica Marilene Guzella Martins Lemos, da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais, foi preparado para uma assembleia da entidade que seria realizada no dia 6 de outubro passado. Por causa da quarentena o trabalho não pôde ser apresentado presencialmente. O Blog do Vanucci tomou a iniciativa de aqui estampá-lo, como já fez na edição passada com o trabalho do acadêmico Jair Barbosa da Costa.

Acadêmica Marilene Guzella *

                        SÃO FRANCISCO

                                   

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     "São Francisco é um dos santos mais carismáticos da Igreja Católica. Com misticismo pessoal é amado e muito representado na arte popular.  Suas imagens são reproduzidas aos montes: São Francisco rodeado de animais, de aves, em contato com a natureza. Até em posição de Lotus.   

A atualidade de São Francisco é considerada porque o mundo despertou para a importância da preservação ambiental com proteção à flora e fauna.  Nada mais natural do que ele tornar-se um padroeiro ecológico.

Sua simplicidade e despojamento consegue despertar sentimentos de ternura.  Sua universalidade    habilitou-o a ser aceito por outras religiões. No sincretismo brasileiro foi adotado pela Religião Espírita e pelo Candomblé.  Algumas fontes mediúnicas fazem menção de que seria uma reencarnação do apóstolo João, o Evangelista e que teria deixado mensagens através de Chico Xavier. O Candomblé o identifica a Xangô. Sua mensagem é abrangente e sua atitude foi original quando afirmou a bondade da criação num tempo em que o mundo e o homem eram vistos como essencialmente maus. Filósofos e filosofias que grassavam na época assim o diziam.  Sua visão positiva estava de acordo com as forças primeiras que levaram à formação da filosofia da Renascença. Dante Aligheri disse que ele foi “uma luz que brilhou sobre o mundo”.

A santidade de Francisco foi reconhecida quando ainda era vivo e permanece inabalada, mesmo quando alguns cristãos dizem que é necessário um olhar crítico com base mais científica e fazer uma distinção entre apreciações emocionais e textos realistas.  Porque verdade e lenda se entrelaçam de maneira tão magnífica e ao mesmo tempo tão pitoresca que torna-se difícil separar o mito do Francisco real.

Vejamos o personagem histórico. Ele nasceu na Itália, na cidade de Assis e não se chamava Francisco. Seu nome era Giovanni Pietro di Bernardone, nome de dois santos também muito carismáticos.  Francisco era uma espécie de apelido. Sua família tinha raízes francesas por parte da mãe.  Dizem que o pai não estava presente ao seu nascimento, estava na França e foi a mãe que lhe deu o nome de Giovanni Pietro. O pai, quando voltou, chamou-o de Francesco, francês, e o filho foi crescendo admirando a cultura francesa, o modo de vida dos franceses, falando francês. Foi descrito como:

“Aparência extremamente agradável refletindo a pureza de seu coração. Estatura abaixo da média, cabeça proporcionada e redonda, face alongada, testa plana e curva, olhos negros e límpidos. Cabelos castanhos, orelhas pequenas, voz forte e sonora, dentes unidos, alinhados e brancos, lábios pequenos e delgados, barba preta e rala, ombros direitos, braços curtos, mãos delicadas com dedos longos, pernas delgadas, pés pequenos, pele fina e muito magro. “

Mas ele descrevia-se como “um franguinho preto”.

Em Assis, o pai de Francisco era um alto comerciante, riquíssimo. A família pertencia à alta burguesia.

Assis fica na Úmbria, região central da península Italiana. A Itália não existia como nação, só foi unificada muito mais tarde, quase em nossos dias.  Era dividida em cidades-estados independentes, rivais, sempre em disputas umas com as outras.  

Francisco era um jovem de seu tempo, perfeitamente engajado no modo de vida dos jovens da época.

Agregava Indisciplina, extravagância, paixões, bebidas, aventura, roupas na moda, liberalidade com o dinheiro da família, interesse pelas histórias de cavalaria que levavam os jovens a procurar aventuras. Mas nele sobressaiam as qualidades: pureza de coração e bondade.

Sabemos que os jovens são sempre os mesmos.  Mudam os adereços inseridos pelo tempo, pela moda, pelos costumes. Nos jovens de todos os tempos prevalecem a inquietação, a revolta contra as autoridades constituídas, a busca pelo novo, num borbulhar de ideias que deixam os mais velhos perplexos e desconcertados. Costumam quebrar a cara ao arremessarem-se nos muros do formalismo, da incompreensão e dos conceitos enraizados. Mas não desistem, vão em frente. E aí do mundo se não fossem esses inconsequentes visionários. O mundo estaria inerte, estagnado, preso nas teias do conformismo.

São Francisco não fugiu à regra. Era um jovem e como todo jovem não concordava com muitas normas de seu tempo. E rebelou-se. São Francisco foi movido por um misticismo exacerbado e em fervor religioso muito grande. Rebelou-se contra uma sociedade endurecida pelo egoísmo.  Outros Franciscos existiram antes e depois dele: Ghandi, Luther King e tantos mais cujo anonimato nega-lhes a nossa reverência.

Vejamos o cenário em que nasceu Francisco. Como era o seu mundo?

Francisco nasceu em 1182 e morreu em 1226, com 44 anos.  Viveu na virada do século XII para o século XIII. Na Itália, como na maior parte da Europa, vivia-se o esplendor da riqueza proporcionada pelo comércio com o oriente próximo.  Passara a época das invasões dos Bárbaros e o continente ainda não havia sido assolado pela Peste Negra que viria em meados do século 14.

  A Europa vivia em estabilidade, as nações já se delineando. O período feudal da servidão já vinha terminando. Antigos servos foram atraídos pelo espaço urbano em novas atividades. As cidades aumentavam em população e assistiam ao nascimento da burguesia através do comercio e movimentação proporcionada pelas riquezas que os cruzados traziam do Oriente.

 A Europa vivia a Era das Cruzadas e sabemos perfeitamente o que as motivou. A desculpa era libertar o Santo Sepulcro em Jerusalém, cidade dominada pelos muçulmanos. Estes proibiram a entrada de peregrinos europeus. Como os nobres viviam brigando entre si, o papa pensou: _ vamos gastar esta energia lutando contra os turcos muçulmanos. Foram então realizadas 8 Cruzadas, desde 1096 até 1270.

Se Francisco viveu entre 1182 e 1226, foi em plena época destas expedições.  Seu pai era o exemplo típico do burguês enriquecido com o comercio proporcionado por este intercâmbio com o oriente próximo.

A época era de grande intolerância religiosa.   Na Espanha judeus e mouros eram perseguidos. O pensamento religioso há muito se afastara dos ensinamentos daquele de Jesus de Nazaré. O Cristianismo, com mais de mil anos, já via distante o cisma entre católicos e ortodoxos.   A igreja de Roma se firmara com um poder extraordinário.  O cerimonial do Vaticano com sua legião de cardeais e bispos representava um esplendor nunca visto. A igreja já criara doutrinas, liturgias, dogmas e hierarquias. O domínio sobre os Estados Papais conferiam ao papa um status de imperador. Já instituído, o Tribunal do Santo Ofício iria considerar hereges todos que discordassem de suas proposições. Em vez de paz e amor aos semelhantes, a igreja ditava: _ vamos lutar e matar mouros. O lema dos cruzados era: “Deus o quer”

Se havia ordens religiosas que viviam em mosteiros numa vida de trabalho e oração, marcavam presença os Templários, cujo poder e riqueza ameaçavam os reis. Os Templários se tornaram tão ricos que viraram banqueiros quando acabaram as Cruzadas.  O fervor religioso era demonstrado através da construção de catedrais com torres altas _” mais alta a torre, maior a fé”. E essas catedrais abrigavam sempre relíquias que atraiam peregrinos levando esmolas generosas.

Enfim, tudo girava em torno do dinheiro.  Como se deu a mudança na alma de Francisco?

Como disse, as cidades viviam em guerra e Francisco, em 1202, aos 20 anos alistou-se para lutar na guerra entre Assis e Perúgia. Foi ferido, feito prisioneiro, resgatado só um ano depois. Ficou muito doente e teve uma longa convalescença, permanecendo problemas de visão e digestivos. Na verdade, ele contraiu malária e tuberculose e elas deixaram sequelas.

Esse período de reclusão levou-o a pensar, notar as diferenças entre as pessoas, a pobreza de muitos, o sofrimento da maior parte da população. Recuperado, ainda participou, junto com o exército papal na luta com Frederico II, imperador Romano Germânico. Foi quando teve um sonho, um chamado para uma missão. Intensificou-se sua preocupação com os pobres e desinteresse pelos antigos hábitos. Claro que viveu períodos de hesitação entre arroubos de devoção e o caminho natural de seguir o ofício do pai.

Aí aconteceu um fato que talvez tenha sido decisivo, seu encontro com um leproso.   Era costume esses doentes carregarem um sino avisando sua presença para as pessoas se afastarem. Francisco, em vez de se proteger, aproximou-se e cobriu o leproso com seu manto. Foi então que venceu a vontade de ajudar os pobres e passou a agir de forma diferente.  Foi taxado de louco. Tornou-se perdulário, começou a usar a fortuna do pai para ajudar aos mais necessitados.

Na igreja de São Damião onde entrara para rezar, ouviu um apelo para reconstruir uma igreja em ruínas nos arredores da cidade.  Vendeu tecidos da loja do pai para usar o dinheiro na reconstrução. O pai, desesperado, levou-o ao bispo. Foi quando aconteceu a cena que se tornaria marcante em sua vida. Tirou suas vestes, devolveu-as ao pai e foi viver nas ruinas da igreja.  Outros jovens aderiram à causa e foram viver lá também. Formaram uma comunidade, vivendo na maior pobreza, carregando pedras para reconstruir a igreja.

Uma jovem da cidade, Clara, com quem manteve a vida inteira uma parceria em sua missão de ajudar os pobres, também juntou-se ao grupo. Outras moças uniram-se a ela, marcando o início da futura Ordem   Religiosa das Clarissas.

Havia entre eles um amor místico, sublimado. Nada proibiria que eles tivessem uma relação normal. Francisco não era um sacerdote sujeito ao celibato e nem Clara fizera votos de castidade. Apenas pertenciam a um grupo de jovens que optaram por levar uma vida de pobreza e ajuda aos necessitados. As ordens religiosas foram criadas depois, com regulamentos e proibições. Mas eles deram ao afeto que os unia uma realização maior do que a de sentimentos puramente humanos.

Leonardo Boff diz em seus livros sobre Clara e Francisco de Assis:

“Clara junto com Francisco – nunca devemos separá-los, pois se haviam prometido, em seu puro amor, que “nunca mais se separariam” segundo a bela legenda da época – representa uma das figuras mais luminosas da Cristandade”

.” Ela, de família nobre de Assis, dos Favarone, e ele, filho de um rico mercador de tecidos, os Bernardone.Com 16 anos de idade quis conhecer o então já famoso Francisco com cerca de 30 anos. Bona, sua amiga íntima, conta, sob juramento nas atas de canonização, que entre 1210 e 1212 Clara “foi muitas vezes conversar com Francisco, secretamente, para não ser vista pelos parentes e para evitar maledicências”.
“Destes dois anos de encontro nasceu grande fascínio um pelo outro. Como comenta um de seus melhores pesquisadores, o suíço Anton Rotzetter em “Clara de Assis: a primeira mulher franciscana” (Vozes 1994):

“...neles irrompeu o Eros no seu sentido mais próprio e profundo  pois sem o Eros nada existe que tenha valor, nem ciência, nem arte, nem religião, Eros que é a fascinação que impele o ser humano para o outro e que o liberta da prisão de si mesmo” - (p. 63).

“Esse Eros fez com que ambos se amassem e se cuidassem mutuamente, mas numa transfiguração espiritual que impediu que se fechassem sobre si mesmos. Francisco afetuosamente a chamava de a “minha Plantinha”. Três paixões cultivaram juntos ao longo de toda vida: a paixão pelo Jesus pobre, a paixão pelos pobres e a paixão um pelo outro. Mas nesta ordem. Combinaram então a fuga de Clara para unir-se ao seu grupo que queria viver o evangelho puro e simples sem glossas e interpretações que lhe tirariam o vigor.”

Como teriam sido vistos nos dias de hoje? Seriam uma espécie de hippies com as devidas diferenças. Não havia drogas e nem liberação sexual.  Um bando de hippies usando andrajos, mas diferentes, porque em seu protesto diante uma sociedade injusta fizeram esta diferença ajudando aos necessitados, doentes e leprosos. Não apenas ajudando, mas vivendo como eles.

E ele quis criar uma ordem religiosa pobre, mendicante, voltada para a pobreza, pregando o evangelho de forma itinerante.  E para isso precisava da autorização do papa. E lá se foi Francisco e seus companheiros a pé para Roma.

Quem assistiu ao filme “Irmão Sol, Irmã Lua” pode visualizar a situação. Embora num filme os fatos sejam romantizados e mostrados sob uma ótica bem ficcional, o fato real é que Francisco e sua turma, depois de muitas negativas, foram recebidos pelo papa e tiveram deste a aprovação para a fundação da Ordem Franciscana que vem perdurando através dos séculos.

 Não foi fácil estruturar a Ordem Franciscana. Francisco queria regulamentos tão rígidos para seus participantes que o papa considerou-os impossíveis de serem praticados. Muitas normas foram abrandadas e Francisco teve de aceitá-las por obediência ao papa. Muitas viagens de evangelização foram empreendidas por ele e seus companheiros enfrentando situações as mais adversas.

Em seus últimos anos Francisco foi se isolando, passando a maior parte do tempo em um lugarejo próximo, Porciúncula, tornando-se cada vez mais místico. Consta que ele adquiriu as estigmas de Cristo, isto é feridas nos mesmos locais das feridas de Jesus, feridas estas que ele procurava esconder.  Surge a indagação, teria ficado leproso?

Sobre o filme “Irmão Sol Irmã Lua”, trata-se de um musical e mostra um Francisco idealizado ao lado de Clara, enfatizando já pelo nome “Irmão Sol Irmã Lua”, o jeito de Francisco referir-se a animais e coisas como irmãos. Ele queria dizer que tudo pertencia à obra divina do Criador

A cena de Francisco e seus companheiros, todos eles maltrapilhos, descalços, sendo esmagados pela pompa da corte do papa é fantástica.  Este reinava, sentado majestosamente num trono, no alto de muitos degraus. A cena é chocante, mostrando o contraste entre as duas concepções de religião.  Francisco foi visto com desdém pelos altos prelados. O que fazia ali, num lugar tão suntuoso, aquele bando de maltrapilhos? Eles estavam conspurcando a casa de Deus.

De repente, o inusitado. O papa, depois de ouvir Francisco, foi tomado de uma iluminação mística, um transe divino e sua atitude deixou todos boquiabertos. Ele desceu do trono, caminhou até Francisco e beijou-lhe os pés.  A estupefação geral foi encerrada quando alguém, tomando as rédeas da situação, fez o papa voltar a sua postura e sinal a Francisco que poderia se retirar.

Francisco deixou um legado, uma revolução na maneira de viver a religião. Foi canonizado apenas dois anos após sua morte, fato raro na história das canonizações.

Morreu o homem. Desenvolveu-se a lenda. A figura de Francisco chegou a substituir personagens de Contos de Fada. Quando Ítalo Calvino escreveu o livro “Fábulas Italianas”, uma coletânea de contos populares recolhidos na região da Toscana e da Sicília, muitos com enredos semelhantes aos contos de fadas no resto da Europa, muitos destes contos tinham sido cristianizados pela população.  Fadas madrinhas, velhos sábios, figuras benfazejas haviam sido substituídas por Nossa Senhora, São José, São Pedro e São Francisco.

 São Francisco é uma união de várias figuras: o homem, o santo e o mito. Tornou-se um arquétipo, uma referência do ideal humano."

*
* Membro da Amulmig, Afemil, escritora, pesquisadora, memorialista,  palestrante, contadora de histórias.

 

 Mensagem dos leitores


- Cel   Klinger   Sobreira   de   Almeida, membro   da

Academia “João Guimarães Rosa” da Polícia Militar

de Minas Gerais: “Caro confrade Cesar Vanucci, boa tarde!

Seu Blog, sempre de conteúdo renovado, continua

nosso guia. A palestra do confrade e amigo Jair Barbosa da

Costa, que você divulgou, é magistral. Merece,

realmente, uma audiência de qualidade.

Abraços, Klinger Sobreira de Almeida”.

 

- Cel Acadêmico Jair Barbosa da Costa:

“Mui-prezado Presidente Vanucci, boa-noite.

Agradeço, lisonjeado, a distinção que você conferiu

a   meu   texto sobre   o   Patrono   Acadêmico   da

AMULMIG.

Continuo ao dispor de nossa Casa Franciscana, sob

sua batuta.

Fraternamente, Jair Barbosa da Costa”

 

 

 

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