sexta-feira, 9 de outubro de 2020

 

DIA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS

 Palestras dos Acadêmicos Jair Barbosa da Costa e

Marilene Guzella Martins Lemos

 O 4 de outubro é dia dedicado, no calendário litúrgico, a São Francisco de Assis. A AMULMIG (Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais), que tem Francisco de Assis como patrono, programou para o dia 6 de outubro um encontro cultural comemorativo da data. Os acadêmicos Jair Barbosa da Costa e Marlene Guzella ficaram incumbidos de proferir palestras a respeito do fascinante personagem. A reunião presencial não pôde ser realizada em razão da quarentena recomendada pela Saúde Pública. O “Blog do Vanucci” pediu aos autores dos trabalhos permissão para publicá-los. Na edição de hoje, vamos tomar conhecimento do que foi preparado por Jair Barbosa da Costa. Na semana vindoura se dará a divulgação do trabalho de Marilene Guzella Martins Lemos. Temos convicção plena de que, com a divulgação, os leitores serão brindados com textos de excelente conteúdo literário, humanístico e espiritual.


           Oração de Francisco de Assis (*)

Semântica à luz da Bíblia Sagrada

                          Jair Barbosa da Costa (**)


 

Senhor, fazei-me instrumento da vossa paz.

Onde houver ódio, que eu leve o amor.

Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.

Onde houver discórdia, que eu leve a união.

Onde houver dúvida, que eu leve a fé.

 

Onde houver erro, que eu leve a verdade.

Onde houver desespero, que eu leve a esperança.

Onde houver tristeza, que eu leve alegria.

Onde houver trevas, que eu leve a luz.

 

Ó mestre, fazei que eu procure mais:

consolar que ser consolado;

compreender que ser compreendido;

amar que ser amado.

 

Pois é dando que se recebe.

É perdoando que se é perdoado.

E é morrendo que se vive para a vida eterna.


Macroestrutura

Há duas ou três formas(ô) poemáticas na internet para a composição transcrita. Preferi essa às outras, por facilitar este estudo, não obstante as duas primeiras estrofes poderem ser fundidas numa só por conter o mesmo assunto.

A súplica está distribuída em duas invocações: no verso 1 da primeira estrofe – “Senhor, fazei-me instrumento da vossa paz.” – Francisco se apresenta para o apostolado que se propõe na obra de Deus, assim como fez Isaías, o maior profeta do Antigo Testamento que, ao ouvir “a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei...?”, ele se apresenta: “...eis-me aqui, envia-me a mim.” (Isaías 6:8); a segunda invocação do poverello di Assisi  constitui o verso 1 da última estrofe – “Ó mestre, fazei que eu procure (ser) mais...”

No primeiro apelo, é como se dissesse: Eis-me aqui, Senhor, usa-me. Francisco, diferentemente de Isaías, não é provocado, mas, de modo espontâneo, apresenta-se para servir à seara divina. No segundo, suplica o equipamento espiritual, o caráter de servo de Deus, para desempenhar-se a contento – a oferta de si, o que pode desprender-se em benefício do Outro.

 Ora, não se dá o que se não tem, mas, uma vez tendo (ou na possibilidade de tê-lo), a maior parte seja para o semelhante, e não para si mesmo. “Ó mestre, fazei que eu procure mais...” consolar, compreender e AMAR – são os núcleos desse segundo apelo.

O lugar-onde (ainda que virtual) se faz refrão nas duas primeiras estrofes e núcleo-significativo espacial na concretização da obra missionária do religioso. Sua missão, ao fim e ao cabo, é pacificar, mas, para isso, precisa destruir o obstáculo que se apresenta na primeira parte de cada sentença: ódio, ofensa, discórdia, dúvida.

Só Deus possui e dispõe aos homens de boa vontade a única arma eficaz para dissipar todos os sentimentos contrários à paz – o amor em suas variadas formas de manifestação:

AMOR, pois, é a palavra solar, em plenitude semântica de todo o poema, transfeita (ou compreendida) em “perdão, união, fé, verdade, esperança, alegria, luz”, e mais, na estrofe conclusiva: “consolar, compreender e amar”, palavras, estas, a constituírem o foco desejável da mensagem-prece.

 Todavia, não é em qualquer das acepções conhecidas ou em todas elas. Não, porque a oração franciscana é inspirada no AMOR ÁGAPE – aquele que se doa, se entrega, desinteressada e incondicionalmente ao Outro. Esse amor cujo paradigma está na Bíblia Sagrada:

 “Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”. (João 3:16)

Exemplo de amor ágape, que pontifica reluzente na história dos homens, é o amor sacrificial, representado na crucificação de Jesus Cristo por todos nós, e está, assim na terra como nos céus, eternamente, no Filho unigênito do Pai, “o pão da vida”, “a fonte de água viva”, “a luz do mundo” (Evangelho de João)

Todos os significantes abstratos, no texto sob análise, traduzem o amor ágape, fruto de identidade espiritual, imitação – possível – do amor de Jesus pela humanidade. Por isso, diferente do amor carnal, cupidinoso, ou do amor como sinônimo de empatia. Este último, denominado pelos gregos de philos, amor-amizade por alguém ou alguma coisa. Daí a palavra filósofo, por exemplo (philos [amigo] mais sophos [saber]), significar amigo da sabedoria.

Esse sentido-temático, objeto de toda a súplica da mensagem, ressuma, de forma simétrica, no início e no fim do alopoema: “Onde houver ódio, que eu leve o amor” (2º v da 1ª estrofe) e “Procure mais // Amar que ser amado” (último verso, em itálico, antes da conclusão).

Pode-se inferir dos quatro versos da penúltima estrofe que Francisco se tenha dirigido desta forma ao Senhor Deus: “Mesmo em minhas aflições, ó Pai, “Fazei que eu procure mais consolar que ser consolado”, eu tenha só o mínimo de consolo para não sucumbir, mas seja de tal modo dotado desse nutriente espiritual que possa aquinhoar meu semelhante com a melhor porção.

A sublime palavra amor perpassa os dois testamentos da Sagrada Escritura como genetriz de toda bondade e misericórdia de Deus para com os homens. O apóstolo Paulo, ao ministrar aos irmãos das igrejas da Galácia, na região da Ásia Menor, mostra-lhes como a liberdade é limitada pelo amor:

“...não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros pelo amor”. (Gálatas 5:13), para concluir: “Porque toda lei se cumpre em um só preceito, a saber: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. (Idem, 14 e 15)

Ao final do capítulo treze da Primeira Carta aos Coríntios, Paulo afirma que o amor é o maior dos dons. Bem antes, a partir do versículo quatro, o apóstolo ensina:

O amor é paciente, é benigno, o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece; // não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; // tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. 1Coríntios 13:4, 6 e 7)

A dimensão do querer amar fraternamente o Outro, no poema-súplica de Francisco, encontra ressonância nesta passagem do Evangelho:

Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás (a remissão em Levítico diz ‘repreenderás o teu inimigo’) o teu inimigo. / Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem, para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste... / Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes?...” (Mateus 5:43 a 46)

Pode-se vislumbrar Francisco de Assis a encarnar todo esse sentimento de fraternidade humana em sua mensagem, desejoso ardente que estava de servir ao próximo, despojando-se em favor do Outro, convicto de que, como conclui sua oração: “...é dando que se recebe / é perdoando que se é perdoado...”.

 Duas lições, a seguir, de dependência da misericórdia, do perdão e bondade do Pai celeste (ou de sua provisão) na vida de todo aquele que se entrega à obra de Deus para o cumprimento de uma delegação de poder, como a de Salomão, herdeiro do trono de Davi, seu pai (citação abaixo) ou de uma jornada apostólica, como a do próprio frade de Assis:

Ouve a súplica de teu servo e do teu povo de Israel, quando orarem neste lugar, sim, ouve tu no lugar da tua habitação; ouve e perdoa”. (1Reis 8:30).

 

Na extensão do objeto do verbo “fazei”, a prelibar o poema, Deus é clamado por provisão de seu servo:

Onde houver ódio, que eu leve o amor// Onde houver ofensa, que eu leve o perdão”.

Ao evocar, páginas atrás, a recorrência a Gálatas, imagino Francisco contemporâneo de Paulo e seu coadjutor na ministração da Palavra aos discípulos, a ensinar-lhes sobre As obras da carne e o fruto do Espírito. Quanto às primeiras, destacaria:

 “prostituição, lascívia, iras, discórdia, inimizade, dissensões, inveja”; as últimas: “o amor, a alegria, paz, benignidade, fidelidade, bondade, mansidão”. E concluiria ao afirmar não haver lei contra estas ‘coisas’ finais, ou seja, contra o fruto do Espírito. (Gálatas 5: 19 a 23)

Apostolar é renunciar, e o cântico poético franciscano transmite a mensagem de apelo à autotransformação do Autor em prol da humanidade. A penúltima estrofe revela sua incompletude – donde o pedido para que aprimore sua capacidade de consolar, compreender e amar.

Um dos versículos-frásicos do Sermão do Monte diz: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”. (Mateus 5:7) Francisco não apenas se mostra misericordioso, por índole vocacional, como ainda se torna exemplo cristão dessa virtude para com seu semelhante.

Ao reportar-nos ao Capítulo Quinto de Gálatas, enxergamos ali o bem contra o mal. Por essa reflexão, seremos convencidos de que Francisco se entregou à luta contra esse antagonismo espiritual, e sua oração exprime exatamente a busca de força do Espírito de Deus para que ele possa combater o mal onde ele estiver, levando o seu sucedâneo – o bem, para o reencontro de seu irmão com a paz e a alegria.

 

 Corolário

E é morrendo que se vive para a vida eterna”. Verso-fecho do canto franciscano a desempenhar dupla função – a de corolário dos apelos do frade, a tarefa clamada a Deus, seu apostolado e a consequência eterna, ou a recompensa; o aspecto recolectivo de toda a mensagem – a cadeia dos significados, da 1ª. à última estrofe, da concordância bíblica que sustém o destrinçamento semântico, ao sentido de transcendência constante da mensagem.

O galardão, entanto, pressupõe o condicionamento à lei do plantio e da colheita: é plantando que se colhe, ”...é dando que se recebe”. A oferta de si, com a renúncia da própria vida em benefício do Outro, representa a semente geradora da vida eterna.

Belo horizonte, seis de outubro de 2020



(*) Trabalho programado para a sessão literária da Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais (AMULMIG), dia 6.10. 2020, mas sustado por cautela sanitária (covid).

(**) Evangelista-capelão, autor de três livros cristãos: Missões locais, Missões transculturais e Homilia Matutina.

 


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