sexta-feira, 17 de julho de 2020


Não precisava ser assim

 Cesar Vanucci

“Esse nosso infernal cotidiano!”
(Domingos Justino Pinto, educador)

Carga pesada. Isso tudo e a um só tempo. Essa infinidade de mazelas, que enxameiam de aflição e angústia a pedregosa caminhada humana, confere algum sentido a desnorteante observação do pensador Aldous Huxley. E se, meio assim de repente, a gente descobrisse que a Terra é o inferno dos demais planetas da Via Láctea?

Tudo isso acontecendo junto, neste preciso momento, neste mundo repleto de inexplicabilidades onde o tinhoso costuma armar barraca e aprontar baitas confusões. Pandemia desenfreada de Covid-19, vírus de origem desconhecida, contaminando e matando milhões, disseminando pânico e estrangulando o desenvolvimento econômico. Hospitais de menos para pacientes de mais, numa extensão territorial que vai de Bangladesh aos Estados Unidos, passando naturalmente pelo Brasil. Escassez de leitos em enfermarias e unidades de terapias intensivas. Almoxarifados desfalcados chocantemente de aparelhos respiratórios e doutros apetrechos de proteção indispensáveis, até mesmo anestésicos. Fila pra tudo. Fila por boias de sobrevivência em mar encapelado, enquanto se aguarda pelo barco de socorro moroso. Fila pra maca, ambulância, atendimento de urgência, tratamentos paliativos, leitos, terapia intensiva, respiradouros, medicamentação. Correndo paralelo à crise humanitária, os custos dos remédios escalam altitudes himalaianas. Por outro lado, parte considerável dos necessários auxílios pessoais de emergência fica retida no emaranhado burocrático. O mesmo sucede com os estímulos financeiros destinados a socorrer empreendedores, tendo por causa a tradicional insensibilidade social do sistema bancário, que nestes nossos pagos brasileiros habituou-se a operar com os juros mais escorchantes da já citada Via Láctea.

Indícios de deslavada corrupção nas aquisições exigidas pelas circunstâncias de produtos essenciais no combate à enfermidade. Incompetência manifesta de lideranças políticas institucionalmente incumbidas de comandarem as ações de enfrentamento do flagelo que assola a humanidade.

Em outras frentes da batalha pela vida, mais sinais alarmantes são emitidos do irremediável descompasso geral, flagrado a mancheia por aí, entre o que é feito usualmente, mundo afora, e as legítimas aspirações da sociedade. Aspirações hauridas em propostas humanísticas e espirituais capazes de recobrirem de dignidade a aventura humana. Personagens de proa nos escalões do poder decisório alegam, com certa frequência, que os insucessos ocorridos em seus bem-intencionados projetos de universalização do bem-estar social potencialmente garantido pelos avanços tecnológicos e científicos esbarram sempre em fatores fortuitos, alheios à vontade. A “explicação” remete a uma fala famosa de São Bernardo, quando diz que de boas intenções e desejos o inferno está cheio...

A carga pesada despejada nos ombros dos indefesos viventes abrange mais incontáveis itens. Corrida armamentista frenética. Guerras insanas geradas por nebulosas conveniências geopolíticas-econômicas e por ideologias incendiárias. Aplicação leviana de recursos públicos em gritante menosprezo às prioridades sociais. Concentração aviltante nas mãos de poucos da riqueza produzida pelo labor coletivo. Clamorosas desigualdades sociais. Miséria ao rés do chão em fatias consideráveis de chão intensamente povoadas. Epidemias grassando em lugares aonde ainda não chegaram serviços de infraestruturas básicas, tipo rede de esgoto, água canalizada e por aí vai... Surtos de cólera dizimando populações inteiras por falta de - imaginem só! - soro fisiológico, uma simples mistura caseira de água e sal.

Redes sociais na contramão de sua relevante missão, ocupadas, boa parte do tempo, com mórbida assiduidade, por hordas de fanáticos e insensatos empenhados na propagação de falsidades, conteúdos destorcidos da história, interpretações amalucadas do sentido das coisas. Racismo repugnante. Intolerâncias, discriminações, fobias, alvejando impiedosamente etnias, crenças, gêneros, faixas etárias, estabelecendo regimes de castas institucionalizados ou não. Agressões sistemáticas ao meio ambiente. Aquecimento global, devastação florestal, como consequências funestas do excesso de ganância, ignorância, prepotência. Desemprego também em proporções pandêmicas. Transtornos climáticos ameaçadores: tsunamis, ciclones, terremotos, degelo nas calotas polares, crateras gigantescas na camada de ozônio que envolve o Planeta.

Coisas demais. Não precisava ser assim. É o caso até de se lançar no ar uma pergunta mesclada de dúvida, inquietude e temor. Será que a intrigante observação de Aldous Huxley não está provida de (alguma) pertinência? 



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