sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017


Jogo que conta ponto

Cesar Vanucci

A democracia pode cambalear quando entregue ao medo!”
(Barack Obama)

Treino é treino, jogo é jogo! Esta máxima futebolística, de autoria ora atribuída ao Didi da “folha seca”, ora ao mitológico Neném Prancha, foi muito lembrada após a eleição de Donald Trump, para exprimir a cândida expectativa de muitos no sentido de que o estouvado animador de “realities shows”, subitamente catapultado à condição de homem mais poderoso do planeta, não viesse a colocar em prática, ao assumir o poder, as promessas inseridas em sua fanfarronice retórica. Em tudo quanto é canto, um mundão de pessoas externou, de outra parte, sérios temores quanto à possibilidade de o novo mandatário da Casa Branca vir a cumprir efetivamente a plataforma radical de campanha.

Em atos promulgados que ganharam ressonância mundial e nas designações dos colaboradores mais próximos, Trump já deixou exuberantemente demonstrado que suas ameaças à paz e convivência universal harmoniosa são mesmo pra valer. A truculência registrada no treino vem sendo transportada, sem disfarces, para jogo que conta ponto. Mais uma provação à vista para os aturdidos habitantes deste maltratado planeta azul!

O tom belicoso, o estilo populista vulgar, o ego exacerbado das manifestações de Trump na fase pré-eleitoral geraram, é bom recordar, encrencas monumentais. Rebatendo crítica da famosa Meryl Streep à política prometida para imigrantes, o magnata teve reação totalmente incompatível com a postura de um chefe de Estado. Alvejou a atriz com palavreado de “bas-fond”, dizendo ser ela amante de sua oponente Hillary Clinton. Criou baita e gratuito incidente com a China, a propósito de Taiwan. Atacou com incomum ferocidade a imprensa, acusando-a de conspiração para impedir-lhe a eleição. Espalhou ódio contra muçulmanos e imigrantes, em comícios e redes sociais. Suas vociferações racistas e xenófobas reabasteceram de vibração e entusiasmo os setores mais retrógrados do pensamento ideológico incendiário. Nos Estados Unidos, a Ku Klux Kan e congêneres ganharam alma nova. Correntes minoritárias radicais em todos os continentes exultaram com sua ascensão, alimentando o desejo de poderem contar com seu apoio em projetos hostis aos avanços civilizatórios.

Seguiu, no exercício do cargo de Presidente, a toada assustadora do candidato. Fez da solenidade de posse “um momento nacional de devoção patriótica”. Inspirou-se, por certo, em tirada demagógica de algum dirigente político não afinado com o sentimento democrático. Retirou os Estados Unidos, de supetão, sem aviso prévio aos parceiros, do chamado “Tratado Transpacífico”. Acenou com a possibilidade de fazer o mesmo em relação à “Nafta”, tratado que congrega em atividades negociais comuns Canadá e México. Congelou a implantação do Programa de Assistência à Saúde às parcelas socialmente mais vulneráveis do país. Esse programa, conhecido como uma espécie de SUS estadunidense, foi instituído no Governo Obama, recebendo o apelido de “Obamacare”. Mandou suprimir do sitio da Casa Branca registros sobre temas como assistência à saúde, mudança climática, direitos de minorias, bem como quaisquer textos em espanhol. Ordenou a retomada da construção de dois oleodutos, considerada por respeitáveis organizações humanitárias como hostil ao meio ambiente. Proibiu órgãos do governo de divulgarem informações a respeito do aquecimento global. Defendendo o emprego da tortura para arrancar confissões, mandou reabrir centros de detenção onde esse processo chegou a ser oficialmente tolerado. Mandou suspender a acolhida de refugiados e a concessão de vistos para países muçulmanos. Dentre as restrições anunciadas a imigrantes existe uma que afeta até detentores do “green card”. Definiu a exclusão no repasse de verbas das cidades que não cooperem com sua política de imigração. E para quem ingenuamente supôs que sua disposição em erguer um novo “Muro (da vergonha) de Berlim” fosse mero blefe eleitoreiro, assinou os primeiros atos para que seja erguida, com urgência, na fronteira com o México, uma muralha de 3.200 quilômetros de extensão. Complementou o gesto com uma decisão inimaginável: a conta terá que ser paga pelo México, direta ou indiretamente. A forma indireta consistirá, provavelmente, ao que se prenuncia, na cobrança fiscal de taxa extra de 20 por cento sobre toda a mercadoria do país vizinho que entre nos Estados Unidos. As nomeações para postos importantes no alto comando governamental não deixam dúvidas, por outro lado, quanto ao propósito de Trump de rodear-se sintomaticamente de elementos com visão obscurantista e perfil fundamentalista.

A situação surgida com sua chegada ao poder mete medo. “A democracia pode cambalear quando entregue ao medo”. Frase de Barack Obama. Dá o que pensar.


O escândalo do 
sistema penitenciário


Cesar Vanucci

“Nós não temos políticas públicas,
temos política de encarceramento.”
(Elaine Mara da Silva, pesquisadora do regime penitenciário)

Depois de nos ocuparmos do escândalo das desigualdades de renda, que pode perfeitamente ser definido como “mãe de todos os escândalos”, pra valer de expressão muito ao gosto de lideranças árabes notabilizadas pelas fanfarronices retóricas, vamos tratar de acontecimentos escandalosos registrados noutras vertentes da atuação comportamental. Todos, obviamente, de influência impactante no dia a dia comunitário.

O presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos vem garantindo, em reiterados pronunciamentos, que mais de 50 por cento dos indivíduos recolhidos às superlotadas e degradantes cadeias brasileiras poderiam estar cumprindo penas alternativas fora do sistema, em razão da natureza branda dos delitos. A mudança de enfoque no procedimento punitivo em nada colide com as normas legais. São numerosos os casos de encarcerados que já cumpriram as penas impostas pela Justiça.

De outra parte, as audiências de custódia, implantadas a partir de 2015, previstas em tratados internacionais, têm mostrado, registra o Conselho Nacional de Justiça, que 50 por cento das prisões preventivas decretadas são desnecessárias. Deduz-se daí que a implementação em plenitude de tais audiências concorreria para que as penitenciárias deixassem de ser meros depósitos de detentos.

Tais informações escancaram um estado de coisas escandaloso. Deixam patente a existência de meios infinitamente mais eficazes no enfrentamento da questão penitenciária do que os comumente utilizados com resultados inocultavelmente insatisfatórios. E nem é o caso de listar como ações descabidas os “argumentos” do gênero: “as chacinas são previsíveis”, “o ideal seria uma chacina todo dia”, “entre as pessoas degoladas não tem nenhum santo”, “bandido bom é bandido morto”...

A proliferação das audiências de custódia, junto com mutirões permanentes para avaliação das situações dos presos, priorizaria a melhoria das condições dos presídios, evitando investimentos, de imediato, em novas construções. De par com essas medidas e outros atos administrativos exequíveis, os responsáveis pelas políticas de segurança bem que poderiam largar mão, também, daquilo que o jornalista Élio Gáspari, em arguta análise, apelida de “síndrome da reivindicação sucessiva” e “síndrome da responsabilização regressiva”.

Cuidaremos de explicar isso melhor noutra hora. 




                  O PRODUTO CINEMATOGRÁFICO 

Guido Bilharinho *
                                             
Em cinema, mais do que em qualquer outra manifestação artística, confunde-se comumente técnica, profissionalismo e habilidade com arte.
A realização fílmica pressupõe determinada infraestrutura, conquanto muito inferior ao que se alardeia, mas, sempre, de qualquer modo, necessária, por mínima que seja.
Por sua vez, toda infraestrutura exige recursos financeiros, os quais, reunidos, deflagram processo técnico-industrial.
Quanto maiores e mais bem administrados esses recursos, mais amplo o poder de contratação dos melhores técnicos e profissionais do ramo, como acontece nos demais empreendimentos industriais.
Requer-se, também, no caso, como em qualquer caso semelhante, sucessão e acúmulo de experiências individuais e coletivas que, com o tempo, compõem, e, em muitas circunstâncias, cristalizam-se numa tradição.
O cinema estadunidense reúne esses elementos em alto grau de desenvolvimento, não sendo, pois, nenhuma surpresa ou fenômeno o estágio (ou estádio, como preferem os puristas) atingido por sua indústria cinematográfica.
Alude-se propositadamente à indústria e não a cinema, já que, com as exceções de praxe - uma delas ocorrente em vários, não em todos, os filmes do cinema independente dos Estados Unidos - não se realiza mais cinema, porém, produzem-se filmes, que saem dos estúdios como qualquer outro artefato procedente das fábricas, a exemplo de sabonete, sapato, pasta dental, etc.
Evidente que, à semelhança dos demais produtos, sua “qualidade” é extremamente variada e variável, não se podendo esquecer que a referida “qualidade” configura-se a partir do objetivo proposto. Como, na hipótese, a finalidade é agradar o público para faturar, esses, pois, seus parâmetros e medidas.
Realizam-se, então, filmes embasados por alta proficiência técnica e elevado grau de profissionalismo.
Em consequência, nessa perspectiva, existem os filmes apropriados e os inapropriados e toda a gama intermediária entre tais padrões, incluindo-se também os que os extrapolam para mais ou para menos.
Como a maioria absoluta dos espectadores encara o cinema apenas como mero desfrute diversional, seu critério de julgamento pauta-se também por essa concepção. Apropriados, pois, seriam os filmes técnica e profissionalmente bem feitos e conduzidos, com estória atraente, recheada dos ingredientes destinados a alegrar, seduzir e emocionar. Além dessa categoria de espectadores, boa parte do jornalismo cinematográfico − não confundi-lo com a crítica − ao procurar atender a essas preferência e expectativa, incessantemente alardeia esse tipo de produto (industrial) cinematográfico, propositadamente ressaltando e valorizando os aspectos e elementos que o caracterizam como espetáculo e não como arte. O produto é o espetáculo, resultado do processo fílmico industrial. O espetáculo é o negócio.
Esse tipo de jornalismo cinematográfico insere-se nos desdobramentos da indústria do entretenimento e existe também em outras áreas, a exemplo, principalmente, da música. É confundido com crítica de cinema, quando, na realidade, não passa de marketing promocional.
Daí a razão de filmes absolutamente inexpressivos sob o ponto de vista artístico e cultural, mas, possuidores de virtualidades técnico-profissionais, que os tornam grandes espetáculos, ocuparem excessivos tempo e espaço nos meios eletrônicos de comunicação e nos cadernos de variedades dos jornais, alimentando, mantendo e procurando ampliar o mercado para tais produtos, que rendem, em suas às vezes gigantescas campanhas promocionais, grandes verbas publicitárias. Negócios, comércio, renda e lucro são, pois, os objetivos principais. De quebra, como poderoso e eficiente efeito colateral, a manutenção da inconsciência coletiva.
Poucas são ainda as pessoas que conseguem se livrar da imensa cortina de desinformação e enganos que os meios ditos de informação produzem na sociedade moderna, cada vez mais dominada, mesmerizada e condicionada por sua insidiosa, eficaz e permanente campanha deformadora e enganosa, a serviço da grande engrenagem industrial-comercial.  

                                                              (do livro inédito Ficção e Cinema)

* Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de Literatura (poesia, ficção e crítica literária), Cinema (história e crítica), História (do Brasil e regional).

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