Os
“perniciosos” quadrinhos
“Eles eram, despropositadamente, considerados atentado violento à moral e bons costumes!”(Antônio Luiz da Costa, educador, relembrando os tempos de rejeição inquisitorial aos gibis)
Tomo
conhecimento, apoderado de nostálgica amargura, de que neste ano da graça de
2014 edições antigas de revistas em quadrinhos vêm sendo arrematadas em
leilões, nos Estados Unidos, por uma nota preta. Uma simples historieta,
narrando espetaculosa aventura do “Super Homem”, rendeu indoutrodia 6 milhões e
500 mil reais para o feliz proprietário do exemplar.
A
sensação amarga embebida de saudosismo desloca-me para tempos de uma meninice
até certo ponto risonha e franca. Naquele tempo, saibam todos, os quadrinhos já
exerciam fascínio muito grande no espirito infantil. Mas uma avaliação
educacional distorcida, obscurantista mesmo, equivocadíssima – insista-se –
quanto ao verdadeiro significado cultural das revistinhas, apontava tal gênero
de publicação como deletério à moral e aos bons costumes. Juizado de Menores,
Inspetorias de Ensino, direções das escolas, muitos professores e alguns pais
entenderam de firmar, num dado momento, consenso em torno do fato de que os
gibis causavam danos irreparáveis à boa formação escolar. Lançando mão de
expedientes inquisitoriais, resolveram por conta disso colocar o “malsinado”
produto “fora da lei”. Diziam-se persuadidos de que com atitude tão saudável
estariam preservando valores éticos e intelectuais muito caros à sociedade.
Acenavam com severas punições para os alunos que, desavisadamente, ousassem
transportar nas pastas os conteúdos impressos pecaminosos.
Os
pertences da garotada eram alvo, na entrada da sala de aula, de sistemática e
rigorosa revista. Ái do pobre coitado que fosse flagrado com a mercadoria
proibida no meio dos cadernos e livros! As iras dos encarregados em zelar pelas
boas regras disciplinares instituídas desabavam estrepitosamente sobre sua
cabeça. Em tempos de palmatória, o menino podia ser convocado ao temido
gabinete da diretoria para receber implacável castigo. Noutros momentos,
poderia ser exemplarmente punido com milhares de “linhas” após o expediente
escolar, ou ser impedido de deixar a sala de aula no recreio ou, ainda, até
mesmo, ganhar uma suspensão. Adicionalmente, teria que enfrentar o vexame de
avisar aos pais a respeito da intenção da diretora da escola de levar um papo
legal com eles, para comentários críticos alusivos ao seu comportamento
indisciplinado. O combate sem tréguas aos quadrinhos atingia seu ponto
culminante quando a comunidade escolar, os pais convidados, o inspetor de
ensino infalivelmente presente, era chamada a participar no pátio de um ato
cívico reparador: a destruição pelo fogo do “material inconveniente”. Ou seja,
os gibis apreendidos. As labaredas andaram consumindo preciosas historietas que
o neto aqui de dona Carlota cuidava de colecionar. As historinhas narravam,
tanto quanto me recordo, feitos assombrosos do “Super Homem”, do Flash Gordon e
do Buck Rogers, pioneiros astronautas, do Tarzan, do “Sombra”, do Dick Tracy e
de tantos outros “heróis”.
Inadvertidamente,
na mais santa ingenuidade, deixei o valioso acervo, montado com capricho e
sacrifício, parar um dia nas mãos dos implacáveis guardiões da conduta
estudantil careta recomendada pelos ditames disciplinares vigentes. Recordo-me
muitíssimo bem de que as lágrimas a escorrerem copiosas pela face não foram
provocadas, jeito maneira, pela fumaça desprendida do fogaréu.
Nasce
aqui uma interrogação. Se aqueles exemplares devorados pelas chamas houvessem
sido conservados, como algumas outras publicações da infância ainda hoje
existentes na biblioteca lá de casa, será que eles estariam figurando agora
nessa relação de preciosidades que colecionadores apaixonados passaram a
adquirir por somas elevadas? Dá pra manjar por aí o baita prejuízo que sofri
por culpa do pessoal da escola primária que frequentei...
Mas,
verdade dita, o prejuízo amargado em consequência daquele lance recuado da
escola da meninice tinha conotações diferentes. Não se tratava de perda
material. O que se esvaiu, como bolha de sabão, deixando marca de sofrimento na
alma, foram sonhos. Sonhos maravilhosos inspirados nos desenhos e dizeres
produzidos pela imaginação fecunda dos autores dos “abomináveis” quadrinhos,
com suas propostas ousadas despertando fantasias, antecipando o futuro e
alargando as fronteiras do conhecimento.
Ainda bem
que o tempo – senhor eterno da razão – se encarregou de desfazer o monumental
equívoco contido nas restrições apostas naquela época a essa modalidade de
expressão cultural tão pujante.
A
semântica das urnas
“Descubra como separar o joio do trigo – ou entender o que é verdade e o que é só interesse no calor da temporada eleitoral.”(Nirlando Beirão)
Nirlando
Beirão, titular absoluto no escrete do jornalismo de qualidade comprometido com
o sentimento nacional, herdou do pai (dirigente empresarial de saudosa
lembrança), além do nome, a inteligência arguta e a verve faiscante. Deixa isso
evidenciado num saboroso texto publicado na “CartaCapital”. Intitulado
“Dicionário Eleitoral (para ingênuos)”, o trabalho fornece dicas que ajudam a
decifrar a semântica das urnas, ou, conforme frisa, “entender o que é verdade e
o que é só interesse no calor da temporada eleitoral”.
Abaixo,
de forma adaptada e resumida por este desajeitado escriba, alguns “verbetes” do
divertido “dicionário”. 1)Alternância de Poder – só é essencial à
democracia quando o nosso adversário está no poder. 2) Aparelhamento do
Estado – os adversários nomeiam apaniguados. Nós, os melhores quadros
técnicos. 3) Corrupção. Os outros a praticam de forma perene. Nossos
aliados cometem apenas pequenos deslizes. 4) Visão de Deus. Todos os
candidatos dizem ter fé. Os mais fervorosos são aqueles que não acreditam. 5) Delação
premiada. Ela só tem valor se vazada para atingir o concorrente. Se no meio
do lamaçal, surgir o nome de um aliado, o correto é dizer que as denúncias são
açodadas e precisam ser apuradas a fundo, doa a quem doer. Quanto ao fato de o
vazamento da delação premiada constituir também crime (...), bem esqueça.” Cenário
internacional. Se uma administração aliada vai mal, a culpa é do cenário
externo. Inverte-se a lógica no caso dos adversários. Se a gestão inimiga vai
bem, as condições internacionais a favoreceram. 7) Marquetagem. Se o
adversário sobe nas pesquisas isso se deve a ação mistificadora dos
marqueteiros. Sem essa de lembrar que o nosso candidato igualmente possui um
exército de especialistas em marquetagem. 8) Ano eleitoral. As ações do
adversário não passam de medidas eleitoreiras. As nossas ações são decisões de
governante seriamente comprometido com suas funções. 9) Velha política.
Só os adversários a praticam. 10) Coligações. Promovidas por nós, deixam
estampada aguda sensibilidade política, negociação de fino trato. Promovida
pelos outros, denotam falta de escrúpulos, atroz barganha de princípios por
conveniências.
Tamos
falados.
·
Dinheirama desviada para “paraísos”.
Anotem
a cifra: 77 bilhões e 500 milhões de reais. Segundo a “Global Financial
Integrity”, tal valor representa estimativa confiável do dinheiro ilicitamente
amealhado (evasão de impostos, emissão ilegal de divisas para o exterior,
atividades negociais clandestinas, corrupção e por aí vai) desviado pela
bandidagem que opera no Brasil para os assim denominados “paraísos fiscais”.
Com destaque especial, evidentemente, para o sistema bancário suíço,
reconhecidamente um refúgio de “altíssima confiabilidade”, ao longo dos tempos,
para fortunas adquiridas em inimagináveis patifarias. Essa dinheirama toda
circulante fora dos controles legais equivale, presumivelmente, a 1,5% da
produção econômica brasileira. Ajuda a “explicar”, no entendimento de muita
gente, o motivo pelo qual o CPMF foi tão ferozmente combatido até a extinção.
Tolerância
zero
“Nenhuma qualidade humana é maisintolerável na vida comum (...) que a intolerância.”(Leopardi)
Incidentes
de teor antidemocrático, indicativos de gestos repudiáveis de intolerância,
criaram ainda recentemente ensancha oportunosa, como diziam os antigos, para
saudáveis lições de cidadania.
A
suprema boçalidade de um grupo numeroso de torcedores presentes ao estádio do
Grêmio, em Porto Alegre, no jogo com o Santos, desencadeou reações contra o
racismo que poderão perfeitamente, daqui pra frente, desestimular a prática
asquerosa da ofensa a atletas negros, tão disseminada por aí. Sabe-se que a punição
aplicada pela Justiça Esportiva, implicando na exclusão do clube da Taça Brasil,
foi encarada em respeitáveis ambientes jurídicos como demasiadamente severa.
Mas, cá pra nós, não se pode negar à decisão o mérito de haver fixado uma advertência
clara no sentido de que acaba de ser instituída a “tolerância zero” mode
interromper a sequência de atos racistas em nossas arenas futebolísticas. De
outro lado, a fulminante ação da polícia, identificando os responsáveis pelas
agressões verbais ao atleta Aranha, também merece ser reconhecida como elemento
pedagógico com relação às deploráveis manifestações racistas de intolerância em
competições esportivas.
Anotamos
adiante outro episódio desagradável com desfecho bastante positivo. Referimo-nos
à pronta reação da Casa Civil da Presidência da República ao instaurar sindicância
e apontar, sem titubeios, o autor daquelas alterações feitas, com intuitos indesculpáveis,
por meio da utilização de equipamentos públicos, dos perfis de jornalistas na
Wikipédia. Assim que levantada a questão, rodeada de compreensível repercussão,
o Governo Federal determinou a constituição de um grupo de investigação,
estipulando prazo para parecer final. O grupo atuou com rapidez, trazendo ao
conhecimento da opinião pública a identidade do responsável pelo delituoso procedimento.
Nota da Casa Civil esclareceu também que o servidor, afastado do cargo
comissionado, responde a processo administrativo disciplinar, o que pode levar
à sua demissão do serviço público.
Há
mais caso a registrar, dentro dessa linha reveladora do salutar inconformismo expresso
pela sociedade diante das atitudes radicais de pessoas e grupos lesivas à boa
convivência humana. Numa carta aberta à Presidenta da República, estampada na
primeira página dos jornais, o Grupo Santa Casa de Belo Horizonte apresentou pedido
formal de desculpas por “lamentável ato de sabotagem ocorrido na Clínica de
Olhos da instituição”. A sabotagem consistiu na ampla divulgação de um refrão
de cunho político pejorativo à figura de Dilma Rousseff, distribuído a
pacientes em material impresso com o timbre da instituição. A veemente reação
provocada por esse ato radical constitui também louvável gesto de exaltação da
cidadania. Pelo teor do pronunciamento, percebe-se, que os dirigentes da Santa
Casa se dispõem a transmitir à opinião pública informações complementares
concernentes ao detestável incidente, tão logo encerrada a sindicância aberta
para a apuração dos fatos e identificação do responsável pelo malfeito.
Isso
aí. A construção democrática exige das lúcidas lideranças da sociedade posicionamentos,
a exemplo dos mencionados, que denotem inarredável compromisso com o sentimento
nacional. O sentimento das ruas rejeita posturas radicais de toda e qualquer
origem.
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