sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Atletas barrados no baile


“Não há problema negro. Há apenas um problema branco”(Richard Weigth, escritor negro estadunidense)

Este incidente de cunho racista vem relatado em “Um certo Dom”, livro em que conto a história de Alexandre Gonçalves Amaral. Bispo mais novo à época da sagração, ele era, ao falecer, o prelado mais idoso da Igreja em todo o mundo.

Idos de 60.

O Palmeiras acabara de conquistar o campeonato sul-americano de basquetebol. O feito do clube paulista ganhou repercussão nacional. O Jockey Club de Uberaba, possuidor já naquela época de um dos mais belos e imponentes complexos destinados ao lazer e desporto no país, resolveu convidar o sexteto vitorioso para uma exibição em seu ginásio. Evento prestigiadíssimo. Público vibrante compareceu à partida de basquete, fazendo coro com o Jockey nas homenagens prestadas na quadra aos atletas visitantes.

À delegação do Palmeiras e aos associados do Jockey ofereceu-se, depois, no assim denominado "palácio encantado", salão de festas do clube, na Praça Rui Barbosa, um baile de gala. Só que com um porém. Numa demonstração inacreditável de intolerância racial, deu-se a conhecer aos palmeirenses que não seria permitida a presença no baile dos atletas negros. Eram dois. Um deles, principal astro, cestinha do time, conhecido por Rosa Branco, desfrutava na época de admiração popular assemelhada a que veio a ter, muitos anos depois, o famoso Oscar. Ironicamente, o Rosa, chamado de Branco, foi barrado no baile justamente por não sê-lo. O abominável gesto foi acompanhado, da parte da comitiva do Palmeiras, de um ato de pusilanimidade equivalente. Os palmeirenses brancos, dirigentes e atletas, deixaram os colegas alvo da odiosa discriminação no hotel e compareceram maciçamente à festa, embasbacados com os rapapés programados, como se nada de singular tivesse ocorrido. Os atletas discriminados mostraram-se, por outro lado, aparentemente resignados com a revoltante situação. A ponto de demonstrarem grande espanto quando os procurei no hotel, sem conhecê-los pessoalmente, para levar-lhes uma palavra de solidariedade e de revolta diante do ocorrido.

Extrai-se daí uma medida exata da falta de sensibilidade social que, de forma talvez mais intensa que hoje, prevalecia naquela época nesses domínios perturbadores da convivência inter-racial.

No "Correio Católico", diário que contava com 13 mil assinantes, e na Rádio Difusora o episódio ganhou denúncia e críticas veementes. Os responsáveis pelo absurdo procedimento, tentando tapar o sol com peneira, contestaram as evidências. Veladas ameaças foram postas a circular. Falavam em eliminar dos quadros de sócios do clube a "cambada de jornalistas", todos "extremistas", este desajeitado escriba em plano destacado, comprometidos com as denúncias. Uns dois diretores mais sensatos do clube, não só se opuseram à tresloucada ideia, como se animaram, até mesmo oferecendo a mão à palmatória, a procurar o jornal e a rádio, pedindo desculpas pela besteira. As inconsistentes contestações e ameaças motivaram o jornal e a emissora a desnudar outros aspectos dolorosos do problema da discriminação racial.

Tudo quanto se fez, nesse trabalho de desmantelamento de imposturas aceitas sem maiores questionamentos por parcelas ponderáveis da comunidade, contou com o respaldo integral do então Bispo da Diocese, Dom Alexandre Gonçalves Amaral, que resolveu ocupar-se do episódio nos rodapés diários assinados nas páginas do diário católico. Levei a Alexandre, como subsídio para avaliação dos acontecimentos, um registro incrível, revelador dos surpreendentes disfarces que a discriminação racial costuma utilizar alimentando o desejo de expor-se menos ao crivo da consciência social comunitária.

Entre as inúmeras manifestações de solidariedade chegadas ao jornal figurou a de um dirigente destacado de outro clube da cidade. Cidadão muito simpático trazia definidos na epiderme amorenada traços de sua ancestralidade negra. Ao cumprimentar efusivamente o pessoal do "Correio" "pela corajosa atitude assumida no incidente Rosa Branco", ele esclareceu que "em seu clube um absurdo desses jamais ocorreria." Acrescentou, triunfante: "– Lá, não proibimos pretos de frequentar bailes. O que eles não podem é sair dançando. Cada um no seu devido lugar..."

Como assinala o escritor norte-americano mencionado no introito, fixando o assunto da segregação em seu enfoque correto, o que realmente existe é "um problema branco."


O convite desfeito

“O preconceito é filho da ignorância.”
(Willian Hazlitt, escritor, citado por Paulo Rónai)

 

 Trago mais um relato de manifestação racista. A historieta não foi vivida em Berlim, Londres, Paris, Viena, Washington ou Pretória. Coisa nossa mesmo.

Um líder comunitário de Uberlândia, progressista cidade do Triângulo Mineiro, recebeu em sua residência a visita de luzidia delegação de benfeitores de um clube da maior projeção na vida citadina, dono de um dos mais imponentes complexos de lazer existentes no país. O cidadão em causa, de notória expressão social e econômica, dava início na época, idos de 60, a uma cintilante carreira política que acabaria conduzindo-o a numerosas funções públicas de relevo. Os visitantes, recepcionados com tapete vermelho, explicaram logo a que chegavam. Haviam procedido recentemente a exaustivas consultas, envolvendo o quadro de associados, chegando por tal processo à conclusão de que o anfitrião reunia, no conceito geral, as qualificações requeridas para assumir, no próximo mandato da diretoria, a presidência da agremiação. Por causa de seus méritos pessoais, de sua evoluída percepção dos acontecimentos e coisa e loisa... Estavam ali, por conseguinte, para obter aquiescência ao lançamento de seu nome como candidato à honrosa investidura. Desvanecido com a lembrança, aceitando a indicação debaixo de aplausos, o futuro presidente do clube, pessoa de reconhecida sensibilidade social, falou de seus planos, por sinal muito bem acolhidos na hora. Pediu permissão, na sequência, para um registro a mais sobre seus projetos: gostaria de franquear o acesso ao quadro de sócios, na gestão que lhe tocaria comandar, de pessoas da comunidade negra. Frequentador assíduo das magníficas instalações da agremiação, intrigava-o o fato de não ver cidadãos de cor presentes aos eventos e rodas de amigos, nos fins de semana. Baixou no recinto, naquele preciso instante, um silêncio de tumba etrusca. O gelo não foi quebrado nem mesmo quando o garçom deixou escorregar do balde, nos copos abastecidos do legítimo, as pedras de gelo restantes. Entre os visitantes, alguns deram pressa de se mandar.

Convite solenemente formulado e explicitamente aceito, o diálogo findou ali. Poucas semanas passadas, o ilustre convidado a assumir a presidência tomou conhecimento, atônito, pelo noticiário, de que as eleições no clube haviam sido realizadas. E que seu nome não havia figurado, nem como suplente de vogal, na chapa única vitoriosa.

Os relatos de que nos ocupamos, nestes últimos artigos, retratam flagrantes exemplares do preconceito racial vigente em tantas partes. O racismo é tão ou mais repulsivo quanto outras manifestações de intolerância detectadas por aí afora. Dá voz ao egoísmo, ao radicalismo, à prepotência e ambição de grupos e pessoas avessas à convivência fraterna dos integrantes da sociedade humana.


Num mundo regido pelas leis da sabedoria universal, onde os direitos fundamentais não fossem pisoteados, não conseguiriam, por certo, sobreviver tantas condições propícias a esse exercício rotineiro dessas práticas discriminatórias. São ações que alvejam a mulher, a criança de rua, o índio, os despossuídos, as pessoas marginalizadas por preconceitos raciais, étnicos, religiosos e de gênero. Revelam-se mais intensas nuns lugares, menos noutros. Mas, para a desventura humana, resistem, raivosamente, em tudo quanto é parte, a todo tipo de censura e de condenação nascidas do bom senso e dos ideais humanitários. O genocídio de que os judeus foram alvo na era nazista representa símbolo tétrico da insensatez e fanatice que tiranizam os procedimentos de tantos em muitos rincões. E nem é o caso de admitir, para se combater racismo, a adoção, como justificativa, de posturas de igual caráter intolerante, que nem fazem, estranhavelmente, com morbidez, alguns grupos étnicos que se sentem marginalizados. Racismo é sempre racismo. Preconceito é sempre preconceito. Algo abominável, não importa as motivações e origens.



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