sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

A vida é uma telenovela

Cesar Vanucci *

"A televisão, portadora do dom da ubiquidade, dá a milhões de
 telespectadores a impressão de real participação na vida do mundo."
(Fraser Bond)


O Brasil sempre para na hora em que a dramaturgia televisiva, quebrando às vezes um suspense de meses, resolve lançar no ar os epílogos eletrizantes da novela das oito. Novela que, simbolicamente, neste país em que a impontualidade costuma se revestir de toque charmoso, começa todos os dias entre oito e quarenta e nove horas. Voltando aos desfechos das tramas. Na hora, o movimento de veículos nas ruas cai. Os barzinhos da moda são deixados às moscas. Os papos telefônicos entre amigos ficam reduzidos ao mínimo e o ddd funciona com capacidade sensivelmente reduzida. O volume de assaltos decresce. Consta, até mesmo, que quadrilhas rivais do Morro do Boréu, na conflagrada Guanabara,  concordam, nesses momentos, em deixar prouta ocasião a tradicional troca de tiros com que assinalam sua tétrica presença nas noites cariocas.

Desfeitos os insondáveis mistérios novelescos, objeto em dias anteriores de ruidosas especulações nas filas de ônibus, repartições, reuniões familiares, nas pausas parlamentares para o cafezinho, tudo retorna à rotineira normalidade. Se é que a expressão normalidade se apresente adequada para definir nosso efervescente dia-a-dia!

Para imensa maioria, inseridos aí alguns estudiosos do comportamento humano, essa singular paixão brasileira por novelas, detectada em todas as categorias sociais, é fenômeno característico da trepidante era televisiva. Proporcionando entretenimento de acesso fácil, a TV brasileira é tocada com inegável talento. Produz programação reconhecidamente superior à das demais estruturas que operam no gênero em outras partes do mundo. No capítulo da dramaturgia então, graças a um excepcional time de atores, autores, diretores e técnicos, que conhecem de cor e salteado tudo do ofício abraçado, conseguiu estabelecer um padrão de espetáculo, pra falar verdade, inigualável. A boa qualidade do produto ajuda a explicar o hábito devocional do público com relação às histórias levadas ao ar em sequência que se arrasta por infindáveis meses.

Mas o que nem todos sabem é que essa fissuração do brasileiro por enredos seriados antecede em alguns anos a chegada da televisão. Os sinais mais remotos dessa singular inclinação vêm dos tempos da fita-em-série, comecinho do cinema falado. A tendência ganhou força muito grande na época luminosa da radionovela. No iniciozinho dos anos 40, mais precisamente no dia 12 de julho de 1941, brotou no país, por obra e arte da Nacional – uma espécie de Rede Globo em versão radiofônica -, a mania da novela de rádio. A emissora recorreu, inicialmente, a textos adaptados de autores cubanos e mexicanos, na base do dramalhão. A partir de 1947, abriu espaço para tramas boladas por autores nacionais. A radionovela galvanizou as atenções dos ouvintes. Igualzinho ocorre hoje em certos horários sagrados da televisão, viventes de todas as esferas comunitárias ficavam antenados nos capítulos da novela das dez, das 14 horas, das 19 horas, das 22 horas. As reações eram semelhantes às de agora. Sofria-se muito com o drama das heroínas perseguidas por vilões inescrupulosos. As situações vividas por radioatores famosos acabavam se incorporando às emoções do cotidiano da gente do povo. E isso gerava reações inacreditáveis, com a ficção assumindo, às vezes, contornos de realidade no imaginário dos mais simples.

Como não poderia deixar de ser, em se tratando deste tema, ficam para o próximo capítulo outras informações acerca da mania das novelas.


A radionovela nasceu em 47

"O que o rádio faz é devolver à voz humana
 o relato das histórias e a narração dos acontecimentos".
("Saturday Review of Literature")


Abro o capítulo de hoje sobre novelas informando que a primeira radionovela com texto genuinamente brasileiro, de autoria de Oduvaldo Vianna, o pai, foi lançada pela Rádio Nacional em 1947. E para os que hoje tanto se espantam com as tramas seriadas intermináveis da televisão vai aí outra revelação curiosa. O dramalhão "Em busca da felicidade", de autoria de Leandro Blanco, adaptação de Gilberto Martins, que garantiu a escalada da celebridade a vários radioatores e radioatrizes nos tempos dourados do rádio, espichou-se em capítulos diários por três anos. Vejam só a que altura inimaginável chegou a vibração do radioouvinte com a tal novela! Numa determinada passagem da folhetinesca narrativa, a heroína ganhou bebê. Antes do “parto” a emissora foi bombardeada com milhares de sugestões de nomes a serem levados à pia batismal pelos "pais" e "padrinhos". Quando do "nascimento" do menino surgiu a necessidade de se montar um depósito para guardar os presentes, de procedências as mais variadas, encaminhados à "mamãe jubilosa", protagonizada por Isis de Oliveira. Roupinhas, fraldas, cueiros, brinquedos, por aí. Sem falar nos telegramas de felicitações aos felizes "genitores", extensivos aos "avós"...

Temos visto e ouvido, com frequência, atores comentando a maneira surpreendente com que são, por vezes, recebidos em locais públicos por parte de vibrantes telespectadores. As reações relatadas vão do olhar de reprovação ou palavra de "repreensão" por alguma "atitude condenável" tomada pelo personagem vivido na telinha, ao aplauso encorajador pela "firmeza" ou "destemor" por ele “demonstrados” no desempenho do papel.

Já era assim na época da radionovela. No início dos anos 60 integrei, por indicação dos Professores Cristiano Barsante e Isabel Bueno, titulares da Seccional de ensino do Triângulo Mineiro, o primeiro grupo de trabalho composto no Brasil, em iniciativa do Ministério da Educação, para fazer estudos sobre a estruturação de uma rede de rádio e televisão educativos. Éramos 25 pessoas atuando sob a coordenação do educador Pe. Montezuma. Caçula da equipe, minha designação nasceu do fato de atuar como professor no curso de jornalismo da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Santo Tomaz de Aquino, da Ordem Dominicana, o primeiro implantado em Minas, ser dirigente de um colégio, editor geral do diário católico de Uberaba (13 mil assinantes), diretor da sucursal regional de um jornal de BH e produtor radiofônico.

Travei contato, na prazerosa atividade, com alguns craques da radionovela. Inteirei-me de casos inacreditáveis. Trago alguns deles ao conhecimento de meus 25 confessos leitores. Rodolfo Mayer, muito celebrado também como ator teatral pela performance em "Mãos de Eurídice", peça que percorreu notável trajetória nos palcos brasileiros, "azucrinou" a mais não poder a "paciência" da doce, meiga e ingênua "heroína" Zezé Fonseca, numa trama de larga audiência. Algo parecido com o que outros protagonistas de “mau caráter” andam aprontando, constantemente, nos folhetins da tevê. Algumas respeitáveis senhoras de meia idade, parece que do Andaraí, combinaram de visitá-lo nos camarins da Rádio Nacional. Em lá chegando, devidamente identificadas como fãs do excelente radioator, "mimosearam-no" com toda sorte de impropérios, chegando a ameaçá-lo de coça com sombrinhas, o que só não ocorreu devido a pronta intervenção de seguranças. Tudo por causa dos "ardis" e "maldades" insistentemente cometidos.

Minhas lembranças das novelas radiofônicas rendem adiante mais capítulos.


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