sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Ficção e realidade


Cesar Vanucci 

"Surpreendi-me noveleiro depois de aposentado.
Não perdi um só capítulo de'O direito de nascer'."
(Antônio Luiz da Costa, professor)

A televisão herdou, no capítulo das novelas, alguns macetes do rádio. Junto com outro tipo de herança: a absorção, pela telenovela, de talentosos autores, atores e diretores consagrados na radionovela. A radionovela distinguia-se, nos áureos tempos do rádio, do radioteatro. Era de duração longa, apresentação diária. Assim que acabava uma história, o horário passava a ser ocupado por outra radiofonização. A radionovela que deixava o ar e a que entrava mereciam, na programação, insistentes e persuasivas chamadas. Já o radioteatro podia ser definido como uma novela de tamanho menor, transmitida esporadicamente. Tá na cara que esse modelo inspirou a televisão, quando criou, junto com a telenovela, a minissérie. Essa, também, novela de curta duração.

Retomemos o relato sobre as emoções desenfreadas dos ouvintes nos bons tempos das novelas de rádio. Nélio Pinheiro era costumeiramente escalado para papéis de galã, diferentemente de Rodolfo Mayer, convocado sempre para vilão nos folhetins radiofonizados da Nacional. Dono de voz expressiva e envolvente, exercia no público um fascínio comparável ao que se percebe hoje na televisão, em relação ao desempenho de Tony Ramos, Antônio Fagundes, por aí.

Numa trama determinada, seu personagem "descendia" de uma família da Beira, em Portugal. Tomado de estupefação, Nélio recebeu um dia nos estúdios um grupo de cidadãos lusitanos, todos oriundos daquela região, radicados no Rio de Janeiro. Os entusiasmados visitantes, exibindo documentos, fotos, transmitindo depoimentos em viva voz procuraram, com vigoroso empenho, estabelecer com o ator um vínculo de parentesco próximo. Até passagens da "infância", pródiga em "traquinagens" dos tempos em que "viveu" na Beira, foram "relembradas". Deu trabalhão danado explicar que os personagens e fatos retratados na novela eram pura ficção. Não passava de mera coincidência toda e qualquer semelhança com nomes e lugares da vida real.

Noutro seriado, a mocinha do papel central, defendido com competência pela radioatriz Zezé Fonseca, comeu o pão que o diabo amassou por culpa das armações inimigas. Mas como diz o ditado, não há mal que sempre dure. Veio dai que no desfecho a jovem acabou recompensada por tanto sofrimento. Encontrou seu príncipe encantado, filho obviamente de seu principal algoz. A ele se uniu pelos laços indissolúveis do matrimônio, sendo feliz para sempre. Nas imediações do casamento de mentirinha, pipocou algo fora do enredo. Um mundão de ouvintes entendeu de participar, à sua maneira, da celebração. A heroína recebeu felicitações e presentes à pamparra. Enxovais, eletrodomésticos e outros utensílios para o lar. Além, está claro, de hospedagens em locais paradisíacos para desfrute da merecida lua de mel...

Como dá pra ver, o desconcertante entrelaçamento da ficção com a realidade no imaginário popular, traduzido em episódios jocosos, não é coisa de agora, destes tempos televisivos. A história do rádio de antanho, quando a radionovela e os programas de auditório abriam as portas da fama para artistas, igualzinho faz hoje a televisão, é pródiga em registros reveladores desse descompassado estado de espírito de alguns viventes.

Volto à radionovela no capítulo vindouro.


Não sobrou ninguém

"É prá já!"
(João David, autor de novela,
 instado a apressar o desfecho da trama)

A mania nacional da radionovela levou, na década de 50, muitas PREs do interior a criarem esquema próprio de produção. Os radioatores, radioatrizes, autores ou adaptadores de textos eram recrutados no meio artístico local. Cumpriam as tarefas ou por desprendido amor à arte, ou em troca de módicos cachês semanais. As radiofonizações saiam ao vivo. Nada de gravações, artifício técnico inacessível aos minguados orçamentos das emissoras. No Rio e em São Paulo, pequenas empresas dedicavam-se à elaboração de textos melosos para suprir as necessidades da radionovela interiorana. O estilo lembrava romance de madame Delly, autora de grande aceitação junto ao público leitor feminino. Funcionava também nas capitais como opção, implicando em custos evidentemente maiores, uma central de produção, que se valia do concurso de radialistas consagrados. Ela garantia capítulos prontos, gravados.

A PRE-5, Rádio Sociedade do Triângulo Mineiro, de Uberaba, pioneira nos Vales dos rios Grande e Paranaíba, naqueles vastos e férteis chapadões do Triângulo, apostou na radionovela própria. A emissora, ligada ao grupo "Lavoura e Comércio", que deixou de circular há poucos anos depois de uma trajetória centenária, abriu caminho, no mundo da comunicação e do espetáculo, para um punhado de celebridades. Entre muitos outros: Urbano Vanucci Loes, que compôs com Cesar Ladeira, Carlos Frias, Celso Guimarães e Luiz Jatobá o time dos grandes locutores do rádio; Gontijo Teodoro, futuro "Repórter Esso"; e Augusto Cesar Vanucci, que veio a conquistar no teatro, cinema e televisão expressivos prêmios, inclusive o "Emy", nos Estados Unidos, e o "Ondas", na Inglaterra. O seu “Emy”, em 1981, foi por sinal o primeiro da série de dez arrebatados por artistas da Globo até o ano de 2013, quando o laurel foi conferido à fabulosa Fernanda Montenegro.
O "cast" da E-5, como era de bom tom dizer-se na época, agregava gente de valor. Alguns deles: Altiva Glória Fonseca, dona de lindíssima voz; Silvia Riccioppo, cantora lírica e atriz teatral de méritos; Jonas Garret, José Vianna, Raul Jardim, Sebastião Costa, que acumulava as funções de contrarregra. Do elenco infantil faziam parte o já citado Augusto Cesar; este locutor que vos fala; e a talentosa Valia Vieira, filha do diretor da emissora, o saudoso Waldemar Vieira, que aliava ao perfil de humanista incomum capacidade de ação.

Se a memória não tá a fim de me trair, "Armadilhas do destino" o nome da novela. João David, o autor, tabagista inveterado, cigarro pendurado nos lábios, pigarro constante, dedos amarelecidos pela nicotina, aprendera do ofício na Excelsior, de São Paulo. Numa Remington manipulada freneticamente ia desovando com talento os capítulos de cada dia. As cópias, em papel carbono, com uma ou outra correção a lápis, eram distribuídas pouquinho antes do capítulo ser jogado no ar, tempo às vezes insuficiente para os radioatores treinarem as inflexões corretas das falas. Seja como for, o público parecia gostar da coisa. Muitos ouvintes compareciam, assiduamente, ao auditório, conhecido por "majestoso salão grená", para acompanhar de perto a trama "encenada" no palco, se é que assim possa ser dito. Em "Armadilhas do destino", as tragédias pessoais com óbitos frequentes, se acumulavam. E como a novela já se espichasse por longo tempo, o patrocinador recomendou a João David que apressasse o desfecho. O autor não se fez de rogado. Anunciou, resoluto: "É pra já!". Botou os personagens remanescentes num ônibus em viagem tumultuada por estrada coalhada de precipícios e engendrou um derradeiro desastre. Não sobrou ninguém pra contar história.




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