sexta-feira, 6 de julho de 2012

A arte de engolir sapo

Cesar Vanucci *

“Não estou a fim. Estou cascando fora!”
(J.S. Rodrigues da Cunha, saudoso homem público uberabense,
ao reagir a uma proposta política de correligionários)


“Dizem por ai que política é a arte de engolir sapo. Não estou a fim. Estou cascando fora!” Quem me dizia isso, botando desencanto na fala, na varanda de seu palacete, no cair da tarde de uma sexta-feira de agosto no distante ano de 1959, era o saudoso J.S. Rodrigues da Cunha. Ele estava anunciando, em primeiríssima mão para o jovem repórter a intenção de descalçar as chuteiras no futebol da política. Combativo vereador à Câmara de Uberaba, líder da bancada da UDN, partido de penetração reduzida nas faixas populares do eleitorado, o farmacêutico Joanico, como se fazia conhecido na roda dos amigos, havia construído uma bela legenda de vivência cívica e de conduta ética em sua trajetória política.

Convocaram-no, tempos antes, a integrar grupo de trabalho, composto de outros personagens ilustres da comunidade uberabense, Gentil Afonso de Almeida e Argeu do Carmo Russo, com a incumbência de investigar maracutaia de proporções denunciada pelo desassombrado “Correio Católico”, diário com 12 mil assinantes criado pelo inolvidável Arcebispo Alexandre Gonçalves Amaral. Conhecida como “panamá dos terrenos”, a maracutaia configurava “ação entre amigos do rei”, processada no âmbito da administração municipal, que redundou clamorosamente na transferência fraudulenta de vastas glebas urbanas pertencentes ao patrimônio público a espertalhões de alto coturno, garantindo-lhes fortunas apreciáveis.

JS conseguira levar a termo a missão, em quase dois anos de estafante trabalho. Num relatório corajoso expôs, tintim por tintim, toda a tramóia, relacionando os culpados pelo malfeito, vários deles “cidadãos acima de qualquer suspeita”. Agregou com esse posicionamento um registro dignificante a mais em seu reluzente currículo como servidor público. Uma reviravolta inesperada no cenário das composições político-partidárias, naquele período pré-eleitoral, operada na véspera de seu depoimento-desabafo, deixara-o transtornado, impelindo-o à decisão de cascar fora. Os personagens políticos acusados no relatório, até então adversários ferrenhos da UDN, pelos dirigentes desta legenda alvo permanente de ferinas criticas, resolveram de uma hora para outra transferir-se de mala e cuia, como resultado de estranhíssimos arranjos de bastidores, para a corrente partidária de JS. Um senhor despropósito! A cúpula da UDN, mandando às urtigas coerência e ética, estava a exigir-lhe, agora, que botasse um “fim honroso” ao (a esta altura) “malsinado” inquérito. Afinal de contas, os “inimigos inconciliáveis”, tão detestados, estavam sendo acolhidos fraternalmente no seio udenista como “companheiros de infância”. JS não se conteve. Disse poucas e boas aos correligionários que o procuraram em sua casa. Alguns, por sinal, parentes próximos. Na sequência, renunciou à atividade partidária. Dominado por compreensível indignação, temeroso quanto à possibilidade de as conclusões do inquérito permanecerem pra sempre ocultas, tomou a corajosa deliberação de entregar cópia do relatório ao deputado Mário Palmério, do PTB. O parlamentar levou pros comícios os pormenores do escândalo, tornando o candente assunto o mote de uma campanha sucessória memorável. Com o estrondoso apoio dos eleitores, fez como se costumava dizer em tempos de outrora “barba, cabelo e bigode”, ao conquistar na eleição todos os cargos relevantes em jogo. O “panamá dos terrenos” ficou conhecido da população em consequência desse expediente e das divulgações do “Correio Católico”. Mas, verdade seja dita, os ilícitos cometidos jamais, em tempo algum, foram devidamente examinados nas esferas competentes. Aos seus autores restou a confortável certeza de que, naquele episódio trevoso, ao contrário do que proclama famoso adágio, o crime realmente compensou.

Estou retirando dos escaninhos da memória este episódio, relembrando reverentemente a figura impoluta de JS, para sublinhar algo momentoso e especial. Observador atento das tricas e futricas da vida pública, cansei-me de ver que, realmente, em não poucas ocasiões, a política - que é, na essência, a mais nobre das artes - costuma mesmo influenciar pessoas, apostando pesado em suas fragilidades e incoerências, para que engulam sapos. Como, agora, vem de acontecer, lamentavelmente, com Lula, no instante em que nosso mais festejado líder político assume a questionável atitude de selar entendimento, em troca de alguns minutos de televisão, com o notório Paulo Salim Maluf. Estou calvo de saber que se ele, Lula, não o fizesse, seus adversários em São Paulo iriam substituí-lo, sem vacilações, nesse mesmíssimo desconfortável acerto partidário. Sei ainda que a crônica política está abarrotada de histórias parecidas, igualmente deploráveis, envolvendo figuras de realce de diferentes correntes políticas. Mas, sinceramente, acho que teria pegado bem melhor pra Lula, caso houvesse se comportado, nesse lance, como o Joanico se comportou no episódio lá de Uberaba, recusando-se altivamente a engolir o sapo trazido na bandeja pelos correligionários.



Conchavos ao rés do chão

“Os conchavos em troca de tempo no horário eleitoral precisam ser revistos.”
(Marco Antônio Carvalho, da Fundação Getulio Vargas)

O aperto de mão de Lula e Maluf permaneceu por mais tempo sob os holofotes da mídia, mas não pode ser enxergado, de maneira alguma, como amostra isolada de pactos políticos desconcertantes – pra se rotular, obviamente, de forma bastante benévola os fatos -, envolvendo figuras políticas de proa no contexto pré-eleitoral. Para tudo quanto é canto que se voltem os olhares, observadores dão-se conta de alianças tidas como impossíveis, celebradas em clima artificial de euforia cívica, reunindo adversários figadais de campanhas passadas.

Nesse verdadeiro vale-tudo por adesões, um bocado de próceres políticos e candidatos chutam pra escanteio, descerimoniosamente, valores éticos e coerência ideológica. E, na sequência, transformam em aliados incondicionais adversários separados por divergências que se supunham insanáveis. Tudo isso em prol da construção de um processo de chegada a qualquer preço ao poder. Tudo, também, naturalmente, dentro do propósito de servir com acendrado espírito público às mais nobres causas da coletividade, salve, salve...

Os arranjos esdrúxulos de bastidores enxameiam o noticiário. Em São Paulo, adeptos da candidatura Haddad venceram o páreo disputado no olho eletrônico com adeptos da candidatura Serra pelo discutível apoio de Paulo Salim Maluf, cidadão procurado pela Interpol. Na capital paulista, ainda, Alfredo Nascimento, do PR, defenestrado do Ministério dos Transportes no Governo Dilma por motivos sobejamente conhecidos, foi recebido como parceiro, com pompas e galas, pelo concorrente tucano à Prefeitura. Levou consigo o companheiro Waldemar Costa Neto, acusado em processos do “colarinho branco”, articulador festejado, por sinal, da aproximação do PR com o PSDB. A respeito desses novos companheiros de ideais, o senador Aloysio Nunes, do PSDB, criticando a permanência do PR no Governo Federal, disparava indaoutrodia o seguinte: “Mudam as moscas, o fedor é o mesmo”. Repetia, com outras palavras, o que outros líderes tucanos, registraram a respeito dos antigos desafetos, agora companheiros de jornada. “É como matar os ratos da casa, mas não dedetizá-la” (deputado Fernando Francischini”, ou “junto com o afastamento de Alfredo Nascimento tem que haver punição” (Sergio Guerra, presidente do PSDB).

São reações que relembram a troca de acusações recíprocas, tempos atrás, entre Lula (“O símbolo da pouca-vergonha nacional está dizendo que quer ser presidente”) e Maluf (“Quem votar em Lula vai cometer suicídio administrativo”).

Enquanto isso, no Rio de Janeiro a surpreendente aproximação de antigos inimigos permitirá a subida no mesmo palanque do ex-prefeito César Maia, do DEM, e do ex-governador Anthony Garotinho, do PR. A aliança selada entre os dois, que já travaram acalorados embates pontilhados de acusações de corrupção, assegura sustentação às candidaturas de seus filhos a Prefeito e a vice-Prefeito.

Deslocado o foco para outras paragens, temos o caso de Gustavo Fruet. Quando pertencia às hostes tucanas, de onde bandeou para o PDT, destacou-se no Congresso pela crítica contundente a Lula e seu partido. Tendo resolvido concorrer a Prefeito de Curitiba, conta com a decisiva colaboração pra chegar lá, adivinhem só de qual partido? Exatamente, o PT. Escusado dizer que sua opinião a respeito dos antigos adversários passou por radical alteração. Antes, cobras e lagartos. Agora, louvações no capricho.

Duas outras figuras emblemáticas que também resolveram, de modo “pragmático”, como se diz por ai, rever os conceitos desairosos que permutavam, em nome dos interesses superiores da comunidade, são os alagoanos Fernando Collor (PTB), ex-presidente que se notabilizou, entre outros feitos, pelo confisco de poupança de viúva, e Ronaldo Lessa (PDT), ex-governador. Os raivosos entrechoques de outrora foram “elegantemente” deletados, na junção das forças que comandam, ora empenhadas na conquista da Prefeitura de Maceió.

Esses exemplos – amostra mínima do que rola por ai – de conchavos estranhos, ao rés do chão, indigestos pelo seu caráter fisiológico, clamam pela urgência de uma reforma política nos devidos trinques. Uma reforma que, entre outras coisas, limite o número de agremiações, elimine siglas de aluguel e obrigue as correntes políticas a nutrirem de conteúdo sua mensagem ideológica e suas propostas de trabalho.

* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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