sexta-feira, 8 de julho de 2011

A espantosa tragédia de Madre Maurina


Cesar Vanucci *

“Você sabe que praticamos torturas. Mas para você
não é difícil de suportar, porque a vida de freira já é uma tortura.”
(Frase ouvida por Madre Maurina durante um de seus “interrogatórios”)

Deu-se em junho de 1956. O “Correio Católico”, diário vinculado a Arquidiocese de Uberaba, com 12 mil assinantes – o que lhe assegurava, certeiramente, a condição de um dos jornais mineiros com maior poder de influência junto ao público leitor –, divulgou reportagem a respeito de uma família de Perdizes, município do Triângulo Mineiro, que se notabilizava pela especial circunstância de abrigar em seu seio quatro irmãos (dois homens e duas mulheres) que haviam optado pela vida religiosa.

Um deles, Manoel, frade dominicano, veio a assumir o cargo de Superior na congregação. Outro, Vicente, integrante do clero regular, exerceu funções paroquiais na Província Eclesiástica de Uberaba. As duas mulheres ingressaram na ordem franciscana, consagrando-se a meritórios trabalhos com menores desamparados. Foi nessa ocasião que fiquei conhecendo pelo nome, editor-chefe que era do jornal, Madre Maurina Borges da Silveira. Seus pais, Antônio Borges da Silveira e Francelina Teodoro Borges, pequenos sitiantes, pessoas simples, rodeadas de estima e apreço no lugarejo em que viviam, criaram condições perfeitas para que a vocação religiosa dos filhos pudesse florescer. Nutriam com relação ao fato justificável sentimento de orgulho. A família era tida por todos, lembro-me bem, como um edificante modelo de virtudes no meio comunitário.

Em 1970, 14 anos passados, ouvi pela segunda vez, de forma inesperada e num relato extremamente chocante, menção ao nome de Maurina Borges da Silveira. Conto como foi. Visitava, naquela manhã de sábado, como fazia todas as vezes em que ia a Uberaba, o Arcebispo Dom Alexandre Gonçalves Amaral. Apoderado de santa indignação, o ilustre e saudoso Prelado, uma das inteligências mais fulgurantes do Episcopado, articulando-se com outros membros da Igreja na busca de uma solução para o caso, colocou-me a par dos hediondos pormenores de uma violência inimaginável, cometida por agentes do governo contra a referida religiosa, à época diretora de uma instituição assistencial em Ribeirão Preto, o “Lar Santana”. Contando então com 43 anos, a freira franciscana foi arbitrariamente detida por truculentos membros da tristemente célebre “Operação Bandeirante”, sob a falsa acusação de apoiar um grupo armado hostil à ditadura militar. O orfanato de Madre Maurina cedia na ocasião, uma sala, para reuniões periódicas, a estudantes ligados a Ação Católica. Alguns ou todos eles, não se sabe bem, opunham-se ao regime vigente, mantendo segundo a polícia, ligações com movimentos da chamada guerrilha urbana.

Madre Maurina, pessoa inteiramente consagrada ao mister religioso, nada sabia a respeito das ações políticas desenvolvidas pelos rapazes. Mas por conta da cessão da sala, por sinal cedida aos jovens antes mesmo de sua chegada à direção do orfanato, acabou sendo lançada, de hora para outra, no torvelinho avassalador de uma tragédia com características, pode-se dizer, kafkianas. Foi detida, barbaramente espancada, torturada, seviciada, alvo de toda sorte de humilhações. Seus algozes forçaram-na, na base da pancada, do pau de arara e do choque elétrico, a assinar declarações em que se confessava amante de militantes políticos apontados, como era de hábito na época, como subversivos. De nada valeram as ponderações feitas em seu favor por religiosos e superiores eclesiásticos, as manifestações solidárias das pessoas que acompanhavam de perto, com admiração, a rotina de seu extraordinário trabalho apostólico, dando testemunho fidedigno de sua absorção por inteiro à bela missão assistencial a que se consagrou a partir do momento da opção pelos votos religiosos. Colocaram-na incomunicável submetendo-a a suplícios inenarráveis.

As atrocidades tomaram tal proporção que o então Arcebispo de Ribeirão Preto, um sacerdote desassombrado, Dom Felício Vasconcelos, atordoado face o desinteresse das autoridades governamentais em investigarem as denúncias acerca das ignomínias cometidas contra a freira, diante do silêncio cúmplice e acovardado da grande mídia e do amordaçamento imposto aos demais veículos de comunicação, tomou a arriscada decisão de ocupar os púlpitos de Ribeirão Preto para condenar as felonias dos agentes policiais e militares e decretar oficialmente a excomunhão de dois dos delegados envolvidos na estarrecedora ação criminosa. Renato Ribeiro Soares e Miguel Lamano, “valentes” integrantes da equipe do “famoso” Sergio Fleury, foram os delegados atingidos pela penalidade canônica.


Um relato atordoante


“Eu tenho pena de deixar-te nua, na presença de todos.”
(Um dos torturadores de Madre Maurina)


A espantosa tragédia vivida por Madre Maurina Borges da Silveira, acusada falsamente de conluio com guerrilheiros para a derrubada da ditadura militar, é apontada por muitos historiadores como o episódio decisivo que conduziu o legendário Cardeal-Arcebispo Dom Evaristo Arns a desfraldar a bandeira da luta sustentada, anos a fio, contra as atrocidades praticadas nos “anos de chumbo”.

Mantida incomunicável por largo período, a inocente criatura, uma vida inteira de devoção religiosa arraigada, foi vítima de toda sorte de sevicias no curso de intermináveis “interrogatórios”. Seu drama comoveu os membros do Episcopado, inspirando Dom Arns, apoiado por líderes de outras correntes religiosas, o Pastor protestante James Wright entre eles, utilizando os escassos recursos de expressão disponíveis naquele período trevoso, de restrições severas às liberdades e de total desprezo aos direitos fundamentais, a bater de frente com os responsáveis pelas barbaridades cometidas nos porões do regime. A essa época começou a tomar forma o histórico documento intitulado “Tortura, nunca mais”, que cataloga parte dos tenebrosos atentados daqueles tempos contra a dignidade humana.

O que se vai ler na sequência são trechos de carta, de 17 de dezembro de 1969, que Madre Maurina, conforme registrou o “Jornal doBrasil”, edição de 16.11.2003, encaminhou ao então Ministro da Justiça, relatando parte do sofrimento que lhe inflingiram.
“Invocando a Deus como testemunha da verdade de minhas palavras venho relatar a V. Exa. as torturas a mim inflingidas por agentes da Polícia de São Paulo(...) Confesso não ser fácil, mas o farei para que V. Exa. tome providências no sentido de evitar (...) que pessoas inocentes sofram injustamente. Fui conduzida ao Quartel Militar de Ribeirão Preto, às 14h do dia 25 de outubro (...).Comecei logo a falar sobre o que sabia do movimento de juventude existente em minha casa, pois ignorava o tão falado terrorismo. Foi através dos elementos que me interrogavam que aprendi o que era terrorismo. (...) Interrompiam-me a cada instante, com gritarias e ameaças, usando uma terminologia, a qual sinto-me envergonhada de repeti-la. "Você sabe que usamos de torturas, mas para você não é difícil suportar, porque a vida das freiras já é uma tortura". “É tão cínica, como pode se fazer de tão inocente, sua freira do diabo.” “Você não é filha de Deus. Fica sabendo que teremos o prazer de prender bispos e padres” (...).”Você não é mais virgem. Vamos fazer um exame ginecológico.” (...) Davam risadas sarcásticas. (...) Silenciei, escutando tudo aquilo, sem compreender o seu significado. (...) Dr. Fleury perguntou-me: ''Você é amante do Mário Lorenzato? Responda afirmativo, é o suficiente, estará resolvido. Vai me dizer que é diferente dos outros!'' Jamais poderia afirmar uma tal mentira. (...) Foi então que ligaram a máquina de choques e se divertiram às minhas custas. (...) Apareceu na sala, um sargento dando ordens para que todos se retirassem, dizendo: ''Sou eu que vou conversar com a irmã. Vou deixá-la por enquanto por conta desses dois rapazes.'' (...) Fui conduzida para a cela, juntamente com duas moças. (...). Não as conhecia. Foi neste grupo que me incluíram como se eu fosse terrorista. (...) Como religiosa, acostumada a uma vida organizada, em ambiente de respeito, muito me custou suportar (...) de um lado os soldados repetindo (...) insultos de baixo calão (...) e, de outro, os ruídos da famosa sala de interrogatórios, de onde, continuamente, ouviam-se os gritos lancinantes dos torturados e os barulhos dos espancamentos. (...) Fui levada à presença de uma pessoa loura, de olhos azuis, estatura média (...), disseram que era um sargento. (...) Eles se chamavam de "doutores", vestiam-se à paisana e usavam apelidos, suponho que para fugirem à identificação (...) Achei que estivesse meio bêbado, sentia-se o repugnante cheiro de álcool. Senti pavor de ficar em sua presença, mas, tive de ficar, ali, fechada naquela sala, (...) atormentada por suas provocações. Entre outras coisas, dizia: ''Irmã querida, posso te chamar de irmã, não é? Eu te quero muito. Vem pertinho de mim. Pelo amor de Deus, fala tudo. Eu quero te dar uma colher de chá, ou melhor, dá-me uma colher de chá. Eu tenho pena de deixar-te nua na presença de todos. É chato para mim. Vamos, me dá uma colher de chá... Pensa que eu estou há dias longe da minha mulher!'' (...) Abraçava-me, tentava esfregar suas mãos nas minhas e procurava tocar os meus joelhos. Eu sentia uma repugnância terrível e não via a hora de livrar-me daquele homem. Insistia para que eu me confessasse conhecedora do movimento (...) Sempre com as mesmas atitudes (...) e com carícias dissimuladas, sentou-se displicentemente sobre a mesa, ordenando que eu me aproximasse dele. (...) Senti-me completamente atordoada, sem condições de coordenar idéias. (...) Aquele homem perguntou-me: “Você é socialista?'' O meu ideal é religioso, e, por ele hei de trabalhar até o fim da minha vida. Ninguém poderá modificá-lo, pois minha promessa foi feita a Deus e não aos homens. (...) Na cadeia de Cravinhos permaneci 25 dias incomunicável. Apesar da insistência de meus irmãos (...) para obterem notícias minhas, não permitiram que nos comunicássemos. Nem tampouco foi permitido a minha superiora provincial falar comigo. (...) Tive a impressão de estar abandonada por todos. (...) Outro tormento foi a falta de assistência religiosa.(...) Solicitei a presença de um sacerdote para levar-me o sacramento da Eucaristia. Não o permitiram, dizendo: Também isso faz parte do castigo!'' (...) No dia 18 de novembro, depois de muita insistência, permitiram que, por 10 minutos, (...) eu pudesse falar com o meu irmão. Dias depois pude ver a Madre Provincial, (...) também sob a vigilância de policiais. (...) Interrogada pelo Dr. Lamano, um dos delegados regionais, este tratou-me grosseiramente, dando-me pancadas no rosto, querendo forçar-me a dizer o que eu não havia feito. Não me foi possível esclarecer nada: tudo era feito na base da gritaria e pancada(...). A certa altura, o delegado gritou: ''Veja se você não vai esquecer do seu Deus! Agora vai apanhar juntamente com o rapaz seu protegido!'' Trazendo o rapaz à minha presença, o delegado intercalava, às perguntas, pancadas no moço e em mim. (...) Aqui tem, Exa, um relatório que lhe apresento, como desencargo de consciência, pois espero com ele estar contribuindo para que outros não venham a sofrer os vexames e maus tratos a mim dispensados. Como brasileira e cristã que sou, gostaria imensamente que fossem usados métodos eficientes na aplicação da justiça, inspirada (...) no respeito à dignidade da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus.”

Dom Arns confirma as sevicias


“Atormenta-me (...) a perspectiva de não poder
prosseguir na vida de apostolado que escolhi em meu país.”
(Carta de Madre Maurina do exílio,  no México)

A carta dirigida por Madre Maurina ao ex-Ministro da Justiça Alfredo Buzaid, dando conta das violências a que se achava exposta no cárcere, acusada injustamente de participação em ações contrárias ao regime militar, não mereceu qualquer atenção digna de nota da parte do governo. Seu apelo angustiado esbarrou em glacial e cruel indiferença.

Dom Paulo Evaristo Arns, falando ao “Jornal do Brasil” em 16.11.2003, confirmou as sevicias inflingidas à religiosa durante o período em que permaneceu detida. Disse, a propósito: “Não negarei as evidências das sevicias sexuais, pois isso ficou demonstrado no depoimento dela e de outras presas que estavam com ela em Ribeirão Preto e também passaram por esses horrores.”

No mesmo depoimento, o Cardeal desmentiu enfaticamente um boato maldoso posto a circular, ao que tudo faz crer, pelos próprios agentes policiais e militares que a mantinham encarcerada, a respeito de que a freira estaria grávida em consequência de seu “relacionamento promíscuo” com “companheiros de militância política”. A sórdida maquinação ia mais longe: por causa da “inconveniente gravidez”, Madre Maurina havia decidido fazer “aborto”. À vista de tudo, a Igreja “teria intercedido’, junto ao governo, para que a religiosa figurasse numa lista de presos políticos encaminhados a exílio no México em troca da libertação de um cônsul japonês sequestrado pela guerrilha urbana.

O combativo Dom Evaristo expressou-se, anos depois, a respeito, desfazendo toda a rede de intrigas, de forma bastante categórica: - “Está na hora de acabar com as mentiras e os boatos que rondam esse episódio. Penso que a inclusão do nome de Madre Maurina na lista de presos trocados pelo cônsul japonês se deve aos próprios militares. Eles queriam, naquele momento, demonstrar para a opinião pública o quanto a Igreja estava comprometida com a causa. Essa foi a forma de desmoralizar os religiosos, exibindo-os como terroristas, numa espécie de vingança. Ela era mulher e freira. Isso chamava a atenção mais que tudo. Era como estarem dizendo: “Olha, precisamos agir, pois até as freiras já estão metidas nisso.”

Madre Maurina ficou ainda mais arrasada psicológica e fisicamente - se isso fosse ainda possível de ser concebido face ao martírio imposto pelas arbitrariedades de que foi vítima - com o exílio forçado. Assinou declaração, reafirmando sua inocência “diante de Deus” com relação às acusações que lhe foram imputadas, dizendo não conhecer nenhum dos integrantes da lista dos prisioneiros trocados pelo cônsul geral do Japão, nem tampouco nenhuma das organizações “subversivas ou comunistas, ou o que quer que seja”, envolvidas nos acontecimentos daquela hora. Explicitou com clareza sua disposição pessoal em não sair do Brasil para qualquer outro país e, aqui, poder provar, perante a Justiça, a verdade dos fatos.

Já no exílio no México, dirigiu apelos dramáticos ao governo militar para que lhe permitisse o retorno, “a fim de ser normalmente processada e julgada (...) e demonstrar a minha inocência.” Palavras textuais de uma das cartas que enviou às autoridades, divulgada também no JB: “Não me atormenta a perspectiva de vir a ser, eventualmente, recolhida à prisão onde me encontrava. Atormenta-me, isto sim, a perspectiva de não poder prosseguir na vida de apostolado que escolhi em meu país, de não poder abraçar e beijar as minhas irmãs de vocação e a minha família, de não poder rezar ajoelhada sobre a terra que me viu nascer, onde caminhei pela primeira vez e que, abrigará, confio em Deus, meu corpo, quando então prestarei contas de minha vida ao Senhor Nosso Pai.”


O exílio e o retorno


“Sua fé foi sempre muito grande.”
(Frei Manoel, dominicano, irmão da Madre)

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Do México, recolhida ao Convento das Irmãs de São José de Lyon, onde permaneceu em exílio forçado até a anistia em 1979, Madre Maurina Borges da Silveira encaminhou inúmeras correspondências às autoridades brasileiras, pedindo permissão para regressar a terra natal. Existem indícios de que, em alguns setores do governo, houve quem se desse conta, em dado instante, da necessidade de se proceder a um reexame do doloroso caso da freira impiedosamente alvejada pela boçalidade e paranóia dos agentes da lei.


Em julho de 1971, a 2ª Auditoria da 2ª Comissão da Justiça Militar aconselhou o retorno da Madre. Esse posicionamento, unânime e inédito, foi tomado num período ainda de violenta repressão. Pode ser interpretado como indicativo de que algumas pessoas no mundo oficial mostravam-se preocupadas, de certa maneira, com o tamanho do abacaxi que teria de ser, mais adiante, forçosamente descascado na tentativa de se oferecer uma explicação para as ignomínias praticadas contra Maurina. A sentença em questão, segundo revelado pelo antigo “Jornal do Brasil”, levou em consideração que “provas colhidas em Juízo” autorizavam “a presunção de que Maurina foi incluída na lista de presos a serem trocados pelo cônsul do Japão, por insidiosa manobra de guerra psicológica, por parte dos militantes da subversão.” Na mesma decisão, fazia-se a ressalva de que a religiosa “suplicou, até o último momento”, antes do embarque rumo ao México, para que a deixassem ficar no país. De algum modo, o Ministro Alfredo Buzaid sensibilizou-se com o argumento. Chegou mesmo a elaborar exposição de motivos ao então Presidente Médici com minuta de decreto até assinada revogando o banimento da freira. O expediente ficou paralisado até junho de 76, alcançando, já aí, o governo Geisel. O sucessor de Buzaid na pasta da Justiça, Armando Falcão, deu andamento ao processo retido emitindo parecer conclusivo nos seguintes termos: “Minha opinião é contrária à concessão da permissão da vinda da interessada, por inoportuna e inconveniente. Vossa Excelência, entretanto, no seu alto critério, se dignará de decidir como mais acertado lhe parecer.” Conforme ainda o JB, Geisel decidiu. Fechou com Armando Falcão.

Madre Maurina continuou, à vista disso, a amargar o indesejado exílio. Nessa tormentosa fase, seu pai, Antônio Borges da Silveira, veio a falecer. Negaram-lhe também o direito de comparecer ao sepultamento.

De volta ao Brasil, beneficiada pela anistia, a religiosa retomou suas atividades na congregação franciscana, com o mesmo inquebrantável espírito de fé que marcou toda sua trajetória de vida, dedicando-se ao trabalho apostólico de sempre.

Há pouco mais de dois meses, no dia 5 de março, aos 87 anos de idade, cercada do carinho das colegas de hábito, em Araraquara, Estado de São Paulo, Maurina deixou este mundo. Embora as vicissitudes enfrentadas, registradas parcialmente nesta sequência de artigos, a morte desta freira valorosa, mineira de Perdizes, condenada ao martírio num momento trevoso da história brasileira, passou inexplicavelmente desapercebida aos olhares da mídia e dos próprios órgãos de defesa dos direitos humanos.

Tanto quanto pude constatar, o reverente pronunciamento do Deputado Adelmo Carneiro Leão, sobre sua vida e obra, na tribuna da Assembléia Legislativa, estranhavelmente sem repercussão midiática, foi o único registro significativo feito em Minas Gerais a respeito do caso. Na internet, colhi também alguns dados que serviram de fonte para a elaboração destes artigos. No mais, o que prevaleceu foi um inexplicável e sepulcral silêncio. Não sei dizer, mas ponho-me a fazer elucubrações a propósito, se essa ausência de registro, pelo menos por parte das organizações de direitos humanos, tenha decorrido de o fato da religiosa não haver, ao contrário do que a acusavam seus algozes, se inclinado por qualquer tipo de militância política. Circunstância, cá pra nós, que não deveria ser de molde também a justificar a falta de divulgação.

Frade Manoel, dominicano, pouco antes da partida de Maurina, não escondendo imensa ternura e orgulho em relação à irmã, comentou o sofrimento inaudito que seu martírio impôs à família. Contou, ainda, que numa das sessões de tortura a que foi a freira submetida, ela clamou por Deus, dizendo aos torturadores que Ele estava ali presente. Deu pra perceber que alguns deles sentiram-se, momentaneamente, abalados com aquela invocação, dando sinais de medo.

Apesar dos suplícios porque passou, Maurina perdoou-os a todos. “Sua fé foi sempre muito grande”, é o sacerdote ainda que afirma, acrescentando que duas moças, torturadas juntamente com Maurina, vieram a se converter ao catolicismo inspiradas nos exemplos de fervor transmitidos pela religiosa no período de reclusão.

Hipocrisia e dedodurismo


“... pelo menos 15 crianças eram filhas de mães solteiras e ricas.”
(Revelação de Madre Maurina a um jornalista)

Reservei para os leitores, no fecho do relato acerca do martírio imposto a Madre Maurina Borges da Silveira por bestiais agentes da lei no período da ditadura, uma revelação intrigante. Tem-se aí configurado um retrato impecável da hipocrisia e farisaísmo imperantes em certos ambientes mundanos. Ambientes esses sempre propícios, em momentos de terror político, às práticas do dedodurismo encapuzado e do denuncismo irresponsável.. A própria freira contou a história ao jornalista Luiz Eblak, num papo de várias horas.

Tomei conhecimento da entrevista consultando a “Wikipedia”, logo após ser informado da noticia do falecimento da religiosa. Falecimento cercado de injustificável silêncio midiático, como já anotei, ocorrido em 5 de março deste ano.
O repórter pergunta a Madre Maurina: - “De onde acha que vieram tantos boatos sobre a senhora, como os episódios de seu envolvimento com guerrilheiros e a violência sexual?” A resposta da freira surpreende, deixando subtendidos os malefícios irreparáveis à dignidade humana que, em momentos de desmandos autoritários, a má fé, a intolerância, a inveja são capazes de engendrar.
“Tem uma coisa – registra a religiosa – que eu nunca disse a ninguém. É sobre os ricos de Ribeirão Preto. No “Lar Santana”, orfanato que eu dirigia, tinha muita criança filha de mãe solteira e rica, o que era escândalo social para a época (1969). Então, as crianças ficavam lá, mas o lugar era para os pobres. Eram cerca de cem crianças e pelo menos 15 eram filhas de mães solteiras e ricas. Elas estavam tomando o lugar de outras, pobres, que precisavam de fato ficar no Orfanato “Lar Santana”. As famílias davam cheques para nós e tudo o mais, mas o correto era que as crianças vivessem em suas casas. O que eu fiz? Devolvi as 15 crianças. Fui à casa de cada uma delas e as devolvi. E eram mansões, casas enormes. Eu disse para as famílias: “O Orfanato é lugar de criança necessitada que precisa de um recanto para viver, que não tem pai nem mãe.” Acho que isso acabou influenciando de algum jeito o que me ocorreu depois. Não sei quem eram as famílias, mas isso deve ter tido ligação com a minha prisão.”

A uma outra pergunta do repórter sobre se a freira sabia das atividades políticas, consideradas subversivas pelas autoridades, que os integrantes do Movimento Estudantil Jovem desenvolviam na sala em que se reuniam no Orfanato sob sua direção, Maurina responde: - “Não sabia. Não sabia de nada. Só sabia do “Movimento de Estudantes Jovens”, mas nada mais. Nem desconfiava. Um dia, o pessoal do MEJ me pediu para fazer uma palavra sobre o amor. Então, nem dá pra imaginar que gente de um grupo guerrilheiro se interesse por palestra de uma freira sobre amor.”

A “Editora Vozes” lançou, há alguns anos, um livro, da jornalista Matilde Lemos, intitulado “Sombras da Repressão – O Outono de Maurina Borges”. A história da Madre é focalizada com base em entrevistas feitas pela autora. Um outro autor, Jacob Gorender, também fala do caso Maurina em seu livro “Combate nas Trevas”.

Quem sabe se, mais adiante, alguém não se animará a produzir documentário para cinema ou televisão a respeito da tragédia de Maurina. Até mesmo como uma forma de expressar a repulsa da esmagadora maioria dos cidadãos que acreditam e confiam nos valores da democracia e no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana e que abominam toda forma de totalitarismo e de rejeição, sustentada pelo arbítrio, a esses valores e direitos.

* Jornalista (cantonius@click21.com.br)

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