sexta-feira, 7 de setembro de 2018


E essa outra baita encrenca?

Cesar Vanucci

“Conveniências espúrias costumam ocultar, neste nosso mundo, 
muita coisa aviltante à dignidade humana.”
(Antônio Luiz da Costa, educador)

Ainda recentemente, aqui neste minifúndio de papel onde se cultiva o hábito de alojar singelas ideias e quimeras mil, andou-se falando de colossais encrencas que adoecem o mundo e que são geradas pela insensatez dos homens. Chamou-se a atenção do distinto público leitor para ocorrências, de manifesta crueldade, propositalmente ocultadas ou (quando) divulgadas com indesculpável parcimônia de manchetes pelos meios midiáticos internacionais, sabe-se lá porque cargas d’água! Melhor dizendo, sabe-se lá por quais conveniências políticas, econômicas ou por outra qualquer outra forma aviltante de agressão à dignidade!

Ao fazer de conta que nada de muito sério, afinal, acontece com relação a certas histórias impactantes, eclodidas aqui ou ali; ao minimizar a contundência de agravos cometidos contra os direitos fundamentais e a cidadania, o grande complexo midiático confessa-se, verdade verdadeira, complacente (se não conivente) com as forças retrógradas ininterruptamente empenhadas em retardar o processo evolutivo civilizatório. Traindo sua natural vocação construtiva, a mídia favorece a disseminação de ignomínias sem conta que atrelam multidões a nauseantes esquemas de perpetuação das servidões humanas.

Mesmo aqueles indivíduos mais embrutecidos em matéria de percepção social, declaram-se hoje aturdidos com certas cenas vindas a tona - mais intensamente nas redes sociais do que em folhas impressas cerceadas pela autocensura - retratando o tratamento desumano dispensado a inocentes crianças atingidas pelo vendaval de intolerância racista que açoita alguns lugares deste nosso convulsionado planeta. Enxergando vesgamente a “imigração sem visto” como crime abominável, não como mera contravenção civil, merecedora antes de tudo de cuidados humanitários, governantes arrogantes se valem de incontestado e implacável poderio para separar famílias inteiras. Colocam pais e mães agoniados em celas infectas. Arremessam crianças inocentes a campos de concentração eufemisticamente batizados de “centros de readaptação”. A violência empregada em tais ações é visível e consciente. Não há como não associá-las às lembranças apavorantes da sinistra era nazista.

Dos desdobramentos desse estarrecedor drama envolvendo os assim chamados “imigrantes ilegais” jorram mais iniquidades. Ordens judiciais expedidas com o fito de reintegrar os menores imigrantes no seio familiar são cumpridas com relutância, excessiva lerdeza burocrática. Há caso comprovado de criança encontrada morta antes da restituição aos legítimos pais. Menores cobertos de sarna, jamais banhados ao longo do extenso tempo de cativeiro, representam outra nódoa inapagável a mais nesse degradante e doloroso esquema de repressão. Responsáveis pela “guarda” de milhares de vítimas não se pejam em oferecer resistência à entrega determinada pela Justiça. Levantam barreira de empecilhos, do tipo “ausência de documentação”, “necessidade de exames de DNA”, assim por diante... Organizações de defesa dos direitos sociais anotam episódios em que as formalidades de soltura não são de imediato cumpridas pela simples razão de que, “devidamente intimados”, bebês de um ano não puderam, compreensivelmente, comparecer sozinhos às audiências para as quais foram “convocados” na forma da lei etecetera e tal, valha-nos Deus... Essas mesmas organizações sustentam ponto de vista de que, no fundo, essa avalancha de abusos e maldades esconde o perverso objetivo de ir acostumando as pessoas, dentro da linha do preconceito, da intolerância e do racismo, a aceitarem sem maiores questionamentos a desumanização no trato das questões ligadas aos “imigrantes indesejáveis”, não importa se adultos ou menores.

É elucidativo ressaltar que todas essas coisas horrendas têm como cenário não um território longínquo, desguarnecido de estruturas políticas e jurídicas sólidas, mas, sim, um país universalmente reconhecido como polo de irradiação cultural, econômico mais influente deste nosso atormentado chão azul terrestre. Os Estados Unidos da era Trump...

Por derradeiro, fica aqui convite para um exerciciozinho de imaginação por parte dos que se angustiam com os rumos trilhados neste mundo do bom Deus onde o tinhoso se habituou a implantar enclaves. E se todos os absurdos relatados estivessem pipocando, não no país mais poderoso, mas nalgum país periférico, de reduzida expressão política e econômica? E se, ainda, espichando o raciocínio, os cidadãos alvejados por maus tratos fossem, todos eles, patrícios do titular da Casa Branca, o que, realmente, estaria acontecendo de avassalador em termos de reação internacional às barbaridades perpetradas? Hein?


Descaso com o Brasil, mais um!

Cesar Vanucci

“Uma tragédia anunciada!”
(Walter Neves, antropólogo)

Na roda do papo matinal na feira, a Almerinda do sacolão traduz a sensação do desalento popular reinante: “Tá danado, gente boa. Tá meio demais da conta, vocês não acham?” O Elesbão churrasqueiro é o primeiro a concordar. Com seu vozeirão de inconfundível sotaque baiano aduz: “Tem toda razão. É uma montoeira de coisa desagradável junta. Tudo pipocando conjuntamente!”

Na espichada da conversa, componentes do grupo, feirantes e fregueses, vão botando pra fora referências desconcertantes, mais do que isso, desagradáveis, das vivências do povão no dia a dia. Jorram manifestações. Os inesgotáveis escândalos com a grana pública. O notório, azucrinante, despreparo de boa parte dos aspirantes a cargos importantes nas eleições que se avizinham. A estagnação econômica, despropositada, insuportável, quando se tem sob mira as prodigiosas potencialidades oferecidas pelo país mais bem aquinhoado deste planeta azul na partilha de recursos naturais em condições de produzir riqueza social em proveito de toda a humanidade. A impactante inoperância do governo mais impopular da história republicana. A multidão incalculável de desempregados e as legiões de patrícios forçados a fazer “bicos” para sobreviver. Além disso, a acumulação assustadora, em tudo quanto é canto, de obras inacabadas importantes, de projetos fundamentais nos setores da infraestrutura que não saem do papel. Tudo isso conspirando estrondosamente contra a necessária, urgente e inadiável retomada do desenvolvimento. Os desestímulos e desencorajamentos às ações de empreendedores capacitados, gente ansiosa pelo ingresso na cena política de uma liderança nacional dotada de carisma, popularidade e poder de iniciativa para galvanizar as atenções da Nação inteira no sentido da invasão do futuro. A progressiva e delituosa desnacionalização de ativos valiosos do patrimônio nacional.

Mais ainda: a violência urbana solta e as diligências oficiais, de inocultável incompetência, volta e meia trombeteadas para se “combater” as organizações criminosas; a exorbitância nos gastos públicos, a começar pelos altíssimos salários e respectivos penduricalhos que compõem os holerites do exército de agentes públicos remunerados acima do teto fixado pela Constituição; as incongruências detectadas com constância, em deliberações legislativas e judiciais.

No desfile das situações cotidianas tormentosas despejadas na conversa solta de rua encaixou-se, também, a recente e estranha manipulação das redes sociais, com a propagação aos quatro ventos de uma “nova greve dos caminhoneiros”. O anúncio, de suspeitosa procedência, provocou mais uma alucinante corrida aos postos. E, na sequência, desprotegidos consumidores viram-se “agraciados” com novas e significativas majorações nos preços da gasolina, do álcool etecetera e tal...

Dona Almerinda do sacolão tem razão. “Tá danado, meio demais da conta”. Já não transbordassem motivos para as aflições da sociedade, com essa avalancha de episódios geradores de assombro e indignação em doses mastodônticas, eis que o horizonte se vê, inesperadamente toldado por essa estocada brutal do destino, reduzindo fatalisticamente a cinzas um pedaço precioso de nossa história É oportuno anotar o que diz o arqueólogo e antropólogo Walter Neves, considerado o “pai de Luzia” – o fóssil humano mais antigo já encontrado em escavações pré-históricas das Américas, localizado em Lagoa Santa, Minas Gerais, com idade provável de 12 mil anos, uma das relíquias perdidas no incêndio do Museu Nacional localizado na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro. Sua reação é de molde a deixar estarrecidas – “juntas, conjuntamente” como diria o Elesbão do churrasco - todas as estátuas de pedra-sabão esculpidas por Aleijadinho existentes no museu ao ar livre em Congonhas do Campo: “Uma tragédia anunciada. O poder público abandonou completamente o Museu há décadas.”

A constatação, aliás, é de que não se trata apenas de uma tragédia para o Brasil. No entender dos especialistas, o desaparecimento do Museu representa uma tragédia para a humanidade. A inconcebível ausência de água da meia dúzia de hidrantes no local do sinistro para o combate às chamas como denunciado pelo Corpo de Bombeiros, as labaredas fatídicas do descaso governamental criminoso com relação ao patrimônio de riquezas guardado no Museu reduziram a cinzas 20 milhões de peças e 200 anos de referências históricas de incalculável significado para a cultura.

Em sua apreciada coluna, Élio Gáspari reporta-se ao desastre do Museu Nacional e a outras ocorrências de passado recente em instituições culturais igualmente desguarnecidas de salvaguardas mínimas para enfrentamento de incêndios. “Quem viu as primeiras reações dos hierarcas da burocracia culturais diante da tragédia da Quinta da Boa Vista – assinala - teve o sofrimento adicional de ser tratado como cretino. O incêndio foi um acidente previsível, mas ainda assim, foi um acidente. A estupidificação oferecida pelos hierarcas foi entulhação deliberada.”

A entulhação, pelo que se extrai das informações a respeito do assunto, veiculadas por fontes qualificadas, foi ampla, geral, irrestrita.  E, também, bastante irresponsável. Os órgãos encarregados da preservação dos bens culturais brasileiros viram-se pilhados em flagrante. Não mais conseguem esconder da coletividade a precariedade dos meios disponíveis à execução das tarefas elementares que lhes tocam institucionalmente promover. É o caso até de admitir, como, por sinal faz outro participante da roda de conversa na feira: “Tamos n’água!”


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