sábado, 1 de setembro de 2018


A ONU  e o Ministro (1)

Cesar Vanucci

“Os fins não justificam os meios.”
(Brocardo português)


O que vem sendo colocado agora, neste momento, à análise serena da sociedade, sobretudo dos interessados na aplicação correta da justiça, portanto sem contrafações, é a necessidade do reexame atento de um entendimento jurídico ardorosamente questionado em qualificadas e insuspeitas instâncias. Decisão recente da Comissão de Direitos Humanos da ONU contesta a interpretação jurídica firmada em caso processual que envolve o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Adiciona argumento vigoroso e convincente a uma tese sustentada por alguns dos mais conceituados cultores brasileiros e estrangeiros do Direito Constitucional. A tese em causa põe em xeque a pertinência da execução de sentenças penais antes do preenchimento cabal dos requisitos do chamado “trânsito em julgado”.

Decisão, proposta, recomendação, sugestão, seja qual for a configuração aceita, o pronunciamento em tela carece ser encarado com seriedade. No verdadeiro conceito civilizatório é vedado a um país signatário da Carta da ONU tangenciar, ignorar, menoscabar questões relevantes, de irretorquível ressonância mundial, trazidas a debate no âmbito da instituição. Alguma eventual opção por procedimento contrário só costuma prosperar em função de impulsos nascidos de embriagante autossuficiência e arrogância imperial, ou como fruto de concepções autoritárias descompromissadas com os valores da confraternidade humana.

Não há como desconhecer, de outra parte, que o posicionamento do órgão internacional, pela similaridade dos conceitos doutrinários emitidos, acabou conferindo refulgente atualidade ao magistral voto do ministro Celso de Mello no STF, a propósito da mesmíssima matéria, na candente sessão dos 6 X 5. Aconselha-se, à vista disso, seja este voto relido e reavaliado, com prudência e objetividade, por tantos quantos demonstrem preocupação com as práticas jurídicas castiças, transparentes, elididas de pontos de vista prévios equivocados, ou impregnados de passionalidade política, ou de outra qualquer inspiração juridicamente conflitiva.

Despiciendo anotar que a louvável disposição comunitária, traduzida em ações institucionais dignas de aplausos pra se acabar com a nefasta impunidade na vida pública, não se amolda a favorecer decisões que alvejem valores jurídicos e democráticos essenciais. Dos julgadores de feitos processuais espera-se se mostrem capazes de imprimir celeridade aos assuntos de sua alçada, claro está. Mas essa almejável agilidade no ritmo processual, que tem sido deploravelmente menosprezada na tramitação de milhares de ações que percorrem as íngremes ladeiras forenses, não pode se aprestar à quebra de preceitos jurídicos consagrados.

Na ciência jurídica, bem como em qualquer outra modalidade de serviço fundamental ligado à trepidante aventura humana, os fins não justificam os meios.

Feitas estas considerações, abre-se ensancha oportunosa, como se dizia em tempos de antanho, para que se formule convite aos ilustres leitores a fazer-nos companhia na apreciação de valiosos trechos do lapidar voto do ministro Celso Mello. A fala do decano do Supremo cuida de oferecer-nos esplêndida condensação de sabedoria jurídica, profusa em conteúdo humanístico e afirmação democrática. Ele começa por descrever com exatidão legítimas aspirações da sociedade no tocante ao saneador trabalho que se impõe promover na lida das atividades públicas no sentido de enobrecê-las.

Suas as palavras que se seguem: “Em um contexto de grave crise que afeta e compromete, de um lado, os próprios fundamentos ético-jurídicos que dão sustentação ao exercício legítimo do poder político e que expõe, de outro, o comportamento anômalo de protagonistas relevantes situados nos diversos escalões do aparelho de Estado, torna-se perceptível a justa, intensa e profunda indignação da sociedade civil perante esse quadro deplorável de desoladora e aviltante perversão da ética do poder e do direito!” (...) “A corrupção governamental e a avidez criminosa de empresários que a fomentam em benefício próprio culminam por capturar as instituições do Estado, tornando-as reféns de seus ilícitos e imorais propósitos, deformando e subvertendo o próprio sentido da ideia de República! Em situações tão graves assim, costumam insinuar-se pronunciamentos ou registrar-se movimentos que parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir, qualquer que seja a modalidade que assuma: pretorianismo oligárquico, pretorianismo radical ou pretorianismo de massa.”

Reservamos para o comentário vindouro a reprodução dos conceitos com os quais o ministro explicita admiravelmente sua isenta e aplaudida interpretação do texto constitucional.


A ONU e o Ministro (II)

Cesar Vanucci

“O respeito à Constituição (...)
representa limite inultrapassável.”
(Ministro Celso de Mello, do STF)

Conforme demonstrado no comentário “A ONU e o Ministro (I)”, o voto do ministro Celso de Mello, na sessão do STF do dia 04 de abril de 2018, exprimiu com exatidão o entendimento jurídico atinente às cautelas rituais exigidas nos casos de decisões condenatórias que ainda comportem procedimentos recursais perante instância superior de julgamento. Inteirada do teor das manifestações de acatados organismos e de conceituados especialistas de dentro e de fora do país, a opinião pública pôde constatar que a peça jurídica da lavra do decano da Alta Corte sobre o que venha a ser “trânsito em julgado” examinou à exaustão e retratou fidedignamente a doutrina jurídica mundialmente consagrada sobre a candente matéria.

Num pronunciamento que se estende por 61 laudas, Celso de Mello faz questão de sublinhar que “o respeito indeclinável à Constituição e às leis da República representa limite inultrapassável a que se devem submeter os agentes do Estado.” Lembra que “já se distanciam (...) os dias sombrios que recaíram sobre o processo democrático” e que a experiência a que o Brasil se submeteu, no regime de exceção, deixou marcante advertência, que não pode ser ignorada, por representar momento “de grave inflexão no processo de desenvolvimento e consolidação das liberdades fundamentais.” Anota que sua análise não envolve a apreciação do litígio penal instaurado no processo-crime que tem Lula como réu. Do que mesmo se ocupa é da controvérsia jurídica “resultante dos debates em torno da extensão e abrangência da presunção constitucional de inocência, tal como reconhecida pelo direito constitucional positivo brasileiro (Constituição Federal, art. 5º, inciso LVII)”. Sua preocupação – pontua – é precisar “o momento a partir do qual a pessoa sob persecução criminal em elaboração pode ser legitimamente considerada culpada, especialmente para efeito de sua imediata submissão à prisão penal (...), tão logo esgotado o duplo grau de jurisdição pelo pronunciamento, embora recorrível, de um Tribunal situado em segunda instância.”

Frisa, por outro lado, que os julgamentos do STF, imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se a pressões externas, “como aquelas resultantes do clamor popular e da pressão das multidões.” Se isso porventura ocorre há risco de “subversão do regime constitucional dos direitos e garantias individuais e de aniquilação de inestimáveis prerrogativas essenciais”, asseguradas pela ordem jurídica.

Visto está que o voto do Ministro foi ancorado em substanciosa jurisprudência e menções a julgados pretéritos dentro da mesma linha conceitual de apego intransigente ao texto constitucional e às leis da República. Os trechos vindos a seguir foram pinçados entre outros muitos igualmente magistrais.

“Nenhum dos Poderes da República pode submeter a Constituição a seus próprios desígnios, ou a manipulações hermenêuticas, ou, ainda, a avaliações discricionárias fundadas em razões de conveniência ou de pragmatismo (...)”  “Há quase 29 (vinte e nove) anos tenho julgado a controvérsia ora em exame sempre no mesmo sentido, ou seja, reconhecendo, expressamente, com fundamento na presunção de inocência, que as sanções penais somente podem sofrer execução definitiva, não se legitimando, quanto a elas, a possibilidade de execução provisória, em razão de as penas impostas ao condenado, a qualquer condenado, dependerem, para efeito de sua efetivação, do trânsito em julgado da sentença que as aplicou.” (...) “A presunção de inocência não impede a imposição de prisão cautelar, em suas diversas modalidades (...), tal como tem sido reiteradamente reconhecido, desde 1989, pela jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal.”(...) “Insista-se (...) na asserção de que o postulado do estado de inocência repele suposições ou juízos prematuros de culpabilidade até que sobrevenha – como o exige a Constituição do Brasil – o trânsito em julgado da condenação penal. Só então deixará de subsistir, em relação à pessoa condenada, a presunção de que é inocente.” (...) “O postulado constitucional da presunção de inocência impede que o Estado trate, como se culpado fosse, aquele que ainda não  sofreu condenação penal irrecorrível.”
Admirável a forma serena e equilibrada que Celso de Mello achou para expressar, antecipando-se a outras vozes jurídicas credenciadas, sem se deixar impregnar da incandescência ideológica reinante ao redor, o entendimento apropriado sobre questão tão relevante, estribado na arraigada crença no saber jurídico universal que pontua sua trajetória como magistrado.


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