sexta-feira, 17 de novembro de 2017

O homem da mala

Cesar Vanucci

“Tempos confusos, esses nossos, em que uma 
mala volumosa desperta olhares de desconfiança...”
(Antônio Luiz da Costa, educador)

Os aborrecimentos começaram já no carro, a caminho da Rodoviária. A patroa ficou de cara amarrada com a observação que fez sobre o excesso de bagagem. Para quê mala desse tamanhão, mais parecendo baú, difícil de ser carregada, até mesmo por estivadores? Afinal de contas, o casal não estava indo de muda para a Europa. Seu destino era Itaúna, tão pertinho, visita de poucos dias à parentada. Na hora de retirar a malona do porta-malas, no estacionamento da estação, mais amolação. Precisou, com o motorista, dar uma demão pro carregador. Este, por sua vez, espantado com a carga, saiu com uma observação que só fez crescer-lhe a irritação: - “Puxa, doutor! Que peso! Carregamento de ouro?” Franziu a cara, por pouco não cantando a pedra noventa para o enxerido. A patroa, descontraída como sempre, achou de fazer coro com a impertinência. “Não é ouro não moço, mas coisa bastante valiosa, né benzinho?” foi o que disse, catando com o olhar o assentimento dele, maridão. Evitando espichar conversa, fez que não ouviu. Foi quando deu com a presença, nas imediações, de uma dupla de PMs, a acompanhar a cena com interesse que considerou inusitado. Ficou com a incômoda sensação de que os dois se fixaram demasiadamente no malão. Um deles acionou o rádio portátil, o que fez nascer em seu bestunto a hipótese de estar passando para alguém informe sobre a bagagem. A qual, naquele preciso momento, com o auxílio dos dois tripulantes do ônibus, já estava sendo alojada pelo intrometido do carregador no bagageiro do coletivo.

Embora feito em voz baixa, não lhe escapou o comentário zombeteiro, acolhido com risinhos maliciosos, de um passageiro que aguardava na plataforma a liberação para embarque. “Uma mala tão grande ou é mensalão, ou dízimo.” Nervos à flor da pele, supondo-se alucinatoriamente sob o foco de todas atenções, conteve a duras penas o impulso entalado na garganta de dizer poucas e boas para aquela cambada. Foi todo desconforto viagem afora. Trancou-se em copas. Evitou diálogo com a patroa, a grande responsável pela “invenção” da famigerada carga. Fingiu concentrar a atenção nos jornais que trazia. Folheou-os, de forma displicente, sem o menor desejo de penetrar-lhes o conteúdo. Alguns bons quilômetros rodados, o passageiro próximo pediu-lhe, “por obséquio”, o empréstimo do primeiro caderno de um jornal. Atendeu ao pedido, sem abrir-se para prosa. O cara danou a comentar, em voz alta, suas impressões sobre o que estava a ler. “Minha nossa, mas que absurdo!” “É por essas e por outras que este país não vai pra frente.” Deu para perceber que o vizinho de assento, em clima de desabafo, buscava extrair manifestação de sua parte. Guentou firme. Permaneceu mudo e quedo que nem penedo. Em suas ruminações, atolado de suspeições, achou que o dito cujo estava era mais querendo provocá-lo. Desconfiava ser ele o autor da zombaria na Rodoviária. “Esse tipo desqualificado tá a fim de insinuar que a mala transporta coisas ilícitas, como a televisão vive mostrando, tou vendo.” Acertou com seus botões: “Não lhe darei o prazer de uma palavra.”

Dominado por tão borbulhantes e desagradáveis pensamentos, viu o ônibus adentrar o pátio da Rodoviária do destino. Desceu e postou-se à espera da bagagem. No instante em que o gigantesco volume lhe foi passado, o tal do passageiro, com um aceno que poderia ser tranquilamente aceito como um gesto cortês, mas que na cachola transtornada do personagem desta nossa história ressoou como injúria, resolveu registrar: - “Que mala, essa sua, hein companheiro?” Foi o que bastou. A gota d’água. Tomado de “santa indignação”, arrancou o correão que envolvia a mala, escancarou-a nervosamente, espalhando desordenadamente pelo chão, diante de uma plateia atônita, o seu infindável e valioso conteúdo. Carne de sol de Montes Claros, goiabada cascão de Ponte Nova, queijo do Serro, linguiça de Itamarandiba, polvilho de São Pedro dos Ferros, doce de leite de Santana do Jacaré, pinga de Jacinto, rocambole legítimo de Lagoa Dourada. E, aos berros, fazendo questão de conquistar toda audiência ao redor: - “Ocês aí, seu bando de fuxiqueiros. Olha pras mercadorias. Sou o homem da mala, mas sou gente direita, seus degenerados”.


Teto salarial e a 
reforma previdenciária

Cesar Vanucci

“A discussão em torno de qualquer reforma previdenciária 
tem que começar pela abertura da caixa preta dos esquemas que permitem 
a extrapolação do teto salarial instituído pela Constituição.”
(Antônio Luiz da Costa, educador)

O artigo 37, inciso XI, da Carta Magna, fixa um teto salarial para os agentes públicos. Diz na essência, com todas as letras, pontos e vírgulas, exatamente isso:  o teto do subsídio mensal, em espécie, para o funcionalismo, é a remuneração atribuída aos Ministros do Supremo Tribunal Federal.  Poderia também dizer que o valor salarial máximo permitido, na área pública, não pode ultrapassar o vencimento estabelecido para o Presidente da República.

Pois bem, senhoras e senhores, por mais estarrecimento que a revelação provoque no espírito das pessoas, esse dispositivo não passa de letra morta para um apreciável contingente de conspícuos cidadãos. Com agravante que tem força de bofetada na cara da sociedade: boa parte dos mesmos carrega, entre suas incumbências institucionais, a solene responsabilidade de garantir o cumprimento das leis vigentes. Sem exclusão, obviamente, do item constitucional mencionado.

Numa estimativa sujeita a correções, provavelmente para mais, uns 50 mil afortunados viventes (esferas federal, estaduais e municipais) estariam a desfrutar, do Oiapoque ao Chuí, do privilégio de ver consignadas, todo finalzinho de mês, em seus holerites, parcelas superiores aos 33,7 mil reais assegurados pela lei. E o que é mais contundente: vez por outra, como resultado de apurações do chamado “jornalismo investigativo”, chegam à tona indicações de que a extrapolação de rendimentos no serviço público alcançou patamares alucinantes. Indoutrodia, descobriu-se que alguns honrados magistrados do Estado do Mato Grosso estavam sendo recompensados, pelo seu diuturno labor profissional, com estipêndios superiores a... 500 mil reais.

A surreal postulação da Ministra Luislinda Valois, exacerbada na defesa dos “direitos sociais”, denotando descomunal “preocupação” quanto à dignidade que deve resguardar a política salarial, de modo a evitar venha ela (política salarial) se equiparar ao “regime da escravidão” (ora, veja, epa!), interpreta magistralmente o sentimento de muita gente fina. Uma legião de criaturas bem posicionadas concorda, em gênero, número e grau, sem exteriorizações estridentes ao jeito da ministra, com as “judiciosas” observações por ela formuladas.

Em seu exasperante monólogo com a sociedade, porta-vozes governamentais, insistindo na necessidade de urgente reforma previdenciária, aludem à existência de avantajado rombo na Previdência Social.  O rombo é contestado com veemência por respeitáveis juristas e auditores, que condenam também enfaticamente a ausência de um debate mais aprofundado em torno da reforma previdenciária que realmente interessa à Nação. Uma reforma que só poderia nascer com base em entendimento amplo, geral e irrestrito entre todos os setores interessados e que seja capaz de definir, a médio e longo prazos, um regime único em matéria de concessão de benefícios, pensões, aposentadorias a todos os assalariados do serviço público.

A proposta de reforma previdenciária que o mais impopular governo da história republicana mostra-se tendente a enfiar goela abaixo da população, sem debates e cooptando, mediante barganhas aviltantes, votos parlamentares, alveja inclementemente interesses das camadas assalariadas de menor poder aquisitivo. Nada se fala, nos argumentos alinhados sobre “déficits orçamentários”, nos intocados, ilegítimos, ilegais salários pagos a agentes públicos contemplados com rendimentos acima, muito acima, do teto legal.

O silêncio sepulcral a respeito da remuneração concedida a milhares de marajás faz com que soe falsa e hipócrita a alegação constante (repita-se, bastante contestada) de um baita rombo nas contas previdenciárias. Rombo esse que, em caso de confirmação, teria que ser realmente estancado. O bom senso sugere que se faça uma radiografia completa, com informes circunstanciados, de todos os sistemas vigorantes diferenciados em matéria de política salarial. A opinião pública considera muitíssimo oportuno que a discussão, em termos justos e adequados das políticas salarial e previdenciária, comece pela abertura da “caixa preta” desses múltiplos esquemas que criam condições para extrapolações do teto salarial.



Um comentário:

Unknown disse...

Muitos dizem que carregam a "mala da sogra", outros preferem malas bem mais recheadas. Mas, uma mala com as delícias de Minas é a mais cara e desejada de todas elas.
Welis Couto

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