sexta-feira, 14 de outubro de 2016


Tudo muito louco

Cesar Vanucci

“É loucura, mas há um método nela”.
(Shakespeare)

O semblante da humanidade exprime, nestes nossos tempos, perplexidade, tristeza, preocupação e indignação. São tantos e tão frequentes os desatinos praticados, sob os mais variados e inqualificáveis pretextos e motivações, que a gente se sente propensa a admitir que o mundo anda parecendo até um hospício. São a perder de vista os atos e fatos acumulados diante de nosso olhar que dão guarida a essa tese. Fixando-nos num curto trecho da história atual dá para extrair essas poucas, sugestivas e atordoantes constatações.

Vejamos o que rola no apavorante conflito sírio, já estendido a áreas do Iraque e da Líbia. As partes beligerantes, representativas de uma infinidade de tendências e objetivos, continuam a promover matança e devastação sem definições muito claras a respeito da causa defendida (ou atacada), ou de quem seja precisamente aliado ou adversário nas frentes de luta. Perversas conveniências geopolíticas fazem da horrenda contenda um enigmático jogo de xadrez, com regras sujeitas a mudanças de última hora a cada lance. E que se danem a indefesa população civil e as intermináveis legiões de desterrados!

Na esteira dessa selvageria guerreira o drama dos refugiados expõe a face cruel do racismo. As manifestações de rejeição ostensiva, aos que conseguem vencer a barreira das traiçoeiras águas do Mediterrâneo à cata de asilo em terra firme, costumam ofuscar, em não poucos momentos, as generosas demonstrações de solidariedade asseguradas por setores comunitários sensíveis ao angustiante problema dos refugiados. Observadores qualificados são de parecer que o êxodo de agora vem concorrendo para a exacerbação de um sentimento xenófobo, parte da cultura europeia, que mira como alvo os estrangeiros, notadamente das regiões menos desenvolvidas do planeta.

Outra vertente racista tem fomentado nos Estados Unidos versões modernosas do faroeste. Policiais brancos, rápidos no gatilho, investem-se do papel de xerifes justiceiros para eliminar “desordeiros” negros e desarmados. A sequência inaceitável desses brutais episódios proporcionou, indoutrodia, cena que comoveu o mundo. Uma garotinha de 8 anos fez um apelo, em cadeia nacional de televisão, para que os direitos da minoria negra não sejam mais tão espezinhados na sociedade americana.

É da grande nação do norte que também pipocam, por outro lado, ameaças que levantam sobressalto mundo afora. Elas se acham explícita e implicitamente inseridas na plataforma do candidato Donald Trump. Apoiado, em sua campanha pela Casa Branca, por forças que representam o pensamento mais radical de um conservadorismo de feição medieval, o cara bota pra fora, a todo momento, seus maus bofes racistas e machistas. Intolerante com relação a tudo que não se coadune com o estilo de vida dos segmentos mais reacionários da história moderna, sua eleição poderá constituir risco enorme à concórdia universal.

Já o presidente filipino, Rodrigo Duterte, que virou celebridade por conta de suas bravatas e atos, lembra um pouco Trump, um pouco o ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, e outros personagens famosos pela atuação despótica. Em comportamento inédito no relacionamento diplomático, empregou palavreado de baixíssimo calão ao se referir ao presidente Obama e a dirigentes da comunidade europeia. Anunciou a disposição de “solucionar”, vez por todas, o problema das drogas, executando sumariamente quem se entregue ao comércio e ao consumo. Deu carta branca aos adeptos de suas amalucadas teorias para afastar do caminho adversários políticos defensores dos direitos humanos.

Chegamos aqui ao plebiscito na Colômbia. Os resultados causaram assombro mundial. O “não” ao acordo para se por fim à guerra civil deixou evidenciado que o rancor, o ressentimento, o ódio podem impactar, às vezes, de forma mais contundente, o coração das pessoas do que os apelos à paz, à concórdia, à conciliação, à misericórdia, ao desarmamento de espíritos. A concessão do Nobel da Paz ao presidente colombiano Juan Manuel Santos, pelo elogiável esforço despendido no sentido da celebração da paz, constituiu resposta condigna da comunidade internacional ao despautério praticado pela parcela dos votantes que, no referido plebiscito, deixaram-se trair por insuspeitada inclinação talebanista com referência às coisas da vida.

E, por último, falemos da decisão chocante, inacreditável, tomada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Em desafio aberto ao bom-senso e aos direitos fundamentais, a Corte ousou anular  os julgamentos que condenaram policiais militares responsáveis pelo chamado “Massacre do Carandiru”. A alegação de que não houve trucidamento de presos, mas sim um mero ato de legítima defesa, foi interpretada como uma bofetada na face da Lei e uma afronta à dignidade humana.

Tudo que foi relatado acima parece loucura, mas há método nela. Shakespeare sabia das coisas.


A opção pelo social

Cesar Vanucci

“Questão social (...) eu faço parte dela, simplesmente”.
(Mário Quintana, poeta)

A tv mostrou, tempos atrás, o grito agoniado de uma jovem despedaçando o silêncio da madrugada numa grande cidade estadunidense (poderia ter ocorrido em qualquer outro lugar). As luzes dos edifícios ao redor foram sendo acesas, uma após a outra, atraindo às janelas centenas e centenas de pessoas. Esta a cena lá de fora contemplada com horror: um bando de marginais debruçados sobre uma moça brutalizada com requintes de crueldade, num caso de estupro seguido de morte. Da multidão de espectadores não irrompeu qualquer ato concreto de solidariedade para com a vítima, durante os largos e tensos minutos que marcaram a consumação da tragédia. O máximo extraído do comodismo da plateia foi a chamada telefônica que trouxe patrulheiros e ambulância depois de “Inês morta”. Expressão que, no doloroso episódio, representou muito mais do que simples metáfora.

Todos se recolheram, depois, ao ronco dos justos, conseguindo dormir com todo aquele barulhão...

Um exército de bons viventes age, vida afora, com a mesma desconcertante tranquilidade de espírito. Não se lhes afeta o sono, tiquinho que seja, o barulho ensurdecedor dos problemas que pululam à volta. Conservam-se inalteravelmente na sua. Nada do que ocorre, fora de seu mundinho, se lhes diz respeito. Problema social é coisa pra governo, bradam do alto de irresponsável certeza, a autossuficiência anestesiante completamente aflorada. Problema social é um outro departamento, com o qual não têm, não querem ter, tendo raiva de quem tem, a mais leve familiaridade. “Coisa dos outros, não coisa da gente!” A “esses outros” é que resta a incumbência certamente, de se apoquentarem com os dramas rotineiros da mendicância, dos sem casa, dos sem terra, dos enfermos sem acesso a assistência, enfim, com todas as corriqueiras e variadas mazelas que alvejam excluídos de todos os matizes.

Solidariedade humana, pra muita gente, é que nem gruta de eremita do Himalaia. Algo remoto, mantido à inteira deriva das egoísticas preocupações pessoais do dia-a-dia. Quando fortes impactos ou simples respingos das questões sociais mal resolvidas atingem o remansoso refúgio em que se entrincheiram, roçam as fimbrias de sua zona de conforto, os acomodados da silva júnior viram bicho na condenação inflamada do estado de coisas reinante. Se o problema explode na área da segurança, culpam logo a polícia. Conforme a natureza dos problemas, acionam a metralhadora giratória com acusações à imprensa, Igreja, Parlamento, Judiciário, Governo, o escambau. Deixam à mostra indisfarçável inclinação à prática da prepotência, apelando feio para aviltantes preconceitos. Colocam na alça de mira etnias, nacionalidades, classes, profissões. A culpa, conforme os humores, pode ser dos negros, dos judeus, dos índios, dos ciganos, dos funcionários públicos. Fácil chegar, em desdobramentos tão insanos, aos ciclistas, aos barbudinhos, aos fabricantes de doce de abóbora, aos catadores de caranguejo. Tudo vale, como se explica nas fábulas de Esopo e La Fontaine, no processo de transferência de responsabilidades, fórmula marota de apaziguamento de remorsos íntimos de efêmera duração.

A questão social - proclamar isso sempre é preciso, carece ocupar, urgentemente, as preferências nas ações promovidas por quem detenha, nas comunidades, poderes de decisão. Precisa acordar os inconscientes, mas bem intencionados. Os bem intencionados, mas indolentes.

A omissão diante do quadro social tem sabor de pecado. A insensibilidade de muitos, somada à irresponsabilidade de outros e ao comodismo de outro tanto, provoca clamorosas distorções nas escalas das prioridades.

Daí ficar geralmente mais fácil ajudar banqueiro falido do que criança de rua. A “opção preferencial” acaba sendo despudorada e impiedosa. Todos aprendemos a “adivinhar” quem acaba levando a melhor nas “quedas de braço” entre os sem terra, os sem casa, os sem esperança, dum lado, e os sem compostura, os sem escrúpulos e os insensíveis do outro.

É bom que se guarde, também, a informação alvissareira de que, ao contrário dos moradores indiferentes da grande cidade que acompanharam impassíveis o trucidamento da jovem, as pessoas realmente despertas, conscientes e sensíveis, a cada dia mais numerosas, compondo os batalhões dos homens e mulheres de boa vontade desejosos de reconectarem este mundo do bom Deus com sua humanidade, deparam-se amiúde com dificuldades em conciliar satisfatoriamente o sono, diante da acumulação dos problemas sociais.

Reflexões amadurecidas sobre a temática social conduzem a uma certeira convicção.  Essa prodigiosa força energética está apta, nalgum momento, a operar mudanças estruturais que possam elevar o bem-estar social a níveis condizentes com a dignidade humana.




Um comentário:

ACSS-2011 disse...

Confrade Vanucci:

Parabéns pelo conteúdo bem organizado e alto valor!

Augusto César

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