sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Pera lá, até em mandarim?

Cesar Vanucci

“É a nossa língua, o nosso modo normal de expressão,
a nossa língua literária e artística.”
(Rachel de Queiroz)

Mantenho em minha profissão de escriba uma relação com os leitores (no caso, poucos, mas reconhecidamente leais) que se inspira naquela máxima lojista de que o freguês está sempre com razão. Não vejo como ignorar solicitação de quem dispensa costumeiramente atenção às maltraçadas linhas aqui lançadas. Maria Thereza Quintella pediu-me reproduzisse uma crônica divulgada há cerca de doze anos. Atendo prazerosamente ao pedido.

Já disse, já repeti e voltarei a dizer quantas vezes achar necessário. O emprego de expressões estrangeiras para classificar coisas óbvias do cotidiano representa rematada panaquice. Prova de indigência intelectual. Pauperismo cívico e subserviência cultural. Querem saber mais? Frescuragem ampla, geral e irrestrita.

Incomoda pacas, ao cidadão comum, a poluição “sonora”, em não poucas ocasiões agregada à poluição visual, de certos painéis de rua – impropriamente chamados de “out doors” -, de panfletos – impropriamente apelidados de “folders” - traduzida em mensagens publicitárias onde as palavras utilizadas, habitualmente num inglês “morolés”, só guardam similitude com o idioma falado nas ruas por conta das letras do alfabeto.

Tem nada demais levantar com constância assunto tão momentoso. Carradas de razão assistiam a Napoleão quando proclamava, com a mão mergulhada no peito sob o dólmã medalhado, que a repetição é a melhor retórica. A repetição de um conceito, de uma ideia faz, muitas vezes, nascer a luz do entendimento. No reverso, como Joseph Goebbles, porta-voz do nazismo, demonstrou com odienta eficácia, serve também para fazer de uma mentira uma solene, posto que efêmera, “verdade”.

Para o cidadão comum constitui motivo de compreensível desassossego bater com os olhos, na vitrina de uma loja qualquer, com o anúncio em letras garrafais, coloridas, de um baita queima de mercadorias com aqueles indefectíveis “sale” e “off” concebidos com base em ruidosa macaquice. O mesmo a anotar naqueles casos em que se topa, nos lavatórios de restaurantes e botecos, com arrepiantes placas de “ladies” e “gentlemen”.

Quem resolver percorrer as ruas na tarefa de listar placas e letreiros irá se deparar, inexoravelmente, com uma pá de barbaridades vocabulares perpetradas por conta desse abestalhado modismo. São a perder de vista os registros fora dos trinques, distribuídos por tudo quanto é canto. Na capital mineira pude constatar que a grande concentração das extravagâncias, fruto de deslumbramento que garante aos autores direito a carteirinha de néscio irrecuperável, fica localizada na região sul. Provavelmente, pela impressão que se tem de ser o setor melhor apetrechado para o atendimento de demandas de consumo pretensamente requintadas e sofisticadas, ora, veja, pois... Já nas outras regiões o índice das censuráveis manifestações é consideravelmente menor. Taí, convenhamos, material de primeira água, manancial exuberante pra elaboração de uma tese sociológica em que se possa avaliar o grau de comprometimento de grupos e pessoas, de variadas categorias sociais, com os autênticos valores culturais brasileiros.

O mal-estar produzido por esse linguajar de importação, composto predominantemente de anglicismos, verbalizado em doses elevadas de pernosticismo, chega até as pessoas também pelo rádio, pela televisão, jornal, convites impressos. Quantas vezes, no dia-a-dia, o pedante procedimento não é praticado pertinho da gente? Vocábulos de nosso belo idioma - que é a própria pátria, segundo Monteiro Lobato -, dentro desse malfadado processo de macdonaldização linguística, são descerimoniosamente substituídos pelos intragáveis e incompreensíveis “inside”, “feelings”, “brunchs”, “coffee break”, “feedback” ; “book”, “paper” e por aí vai...

Indaoutrodia inteirei-me de um desconcertante conflito romântico provocado por essa onda abobalhada de estrangeirices que nos assola. Relato a história, alterando os nomes dos personagens. Hildo e Marion estavam de casório marcado. Proclamas publicados, igreja, florista, fotógrafo, canto coral, coquetel contratados, padrinhos convidados, viagem de núpcias paga, convites expedidos. Dias antes do badalado evento, a coisa melou. O noivo arrepiou carreira de repente. Não mais do que de repente. Provocou, naturalmente, uma pororoca de contrariedades e transtornos, disse-me-disse, fofocas, o diabo... Foram cobrar do moço explicação para o inusitado gesto. Mandando o constrangimento inicial às favas, ele resolveu contar tudo, tintim por tintim. Informou haver alertado a noiva, em repetidas oportunidades, sobre seu desagrado pessoal com relação às expressões de carinho, por ela – adepta fervorosa desse modismo ridículo - desovada aos berros, em instantes especiais de intimidade. O aborrecimento do noivo decorria, sobretudo, do fato de serem emoções transmitidas em versões estrangeiras. Tipo: “I love you”, “Je t'aime”, “Quiero te mucho”. Mas o que decretou mesmo a discórdia definitiva foi a fala de Marion no clímax do último encontro dos dois. Aos brados, ela sapecou uma frase esquisitíssima e, pelo que se ficou sabendo mais tarde, extraída do mandarim, idioma que a moça vem aprendendo com uma professora chinesa do prédio em que mora: “Uo ran ai mi”.

Segundo o Hildo, “o clima passou de verão primaveril brasileiro a espesso outono siberiano. O encantamento escorreu pelo ralo, a relação espatifou. “Uo ran ai mi”, no ápice de amorável colóquio, foi demais. Não deu pra segurar.”


Dois momentos culturais

Cesar Vanucci

“E fiquei a pensar na forma aguerrida com que  
Marley Duarte Costa se refere à emoção vital, o Amor.”
(Rogério Zola Santiago, jornalista)

Terça-feira, 20 de setembro de 2016. Dois primorosos momentos culturais numa mesma data. O primeiro deles ocorreu, na parte da tarde, na Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais (Amulmig). O segundo, na parte da noite, aconteceu na Academia Mineira de Letras.

A celebração do “Dia da Árvore” e o problema do “bulling” na vida escolar foram os temas de pauta da tradicional reunião quinzenal da Amulmig. O primeiro item foi focalizado pela acadêmica Lucília Cândida Sobrinho, numa alocução repassada de lirismo. Escorada em alentada experiência como educadora, a acadêmica Edelvais Campos Silva abordou, na sequência, a questão do assédio no meio estudantil. Com objetividade didática, lembrou que pelas proporções assumidas, a questão encerra peculiaridades de arrasadora patologia social.

Nos debates, acadêmicos e convidados acrescentaram informações valiosas, como fruto de reflexões e observações colhidas em suas áreas de atuação pessoal, às considerações expendidas pelas brilhantes expositoras. Chamaram atenção para a circunstância de que, continuamente, à nossa volta, quer seja contra a Natureza, quer seja contra o ser humano, são praticadas inomináveis violências.

O substancioso intercâmbio de ideias deixou evidenciado que, pela percepção dos debatedores, o “assédio” não é anomalia adstrita aos domínios escolares, ao contrário daquilo que um esquema midiático equivocado costuma sugerir. O “bulling” marca presença, sob múltiplas modalidades, no efervescente jogo das relações cotidianas. Suas raízes estão fincadas na intolerância, na ignorância, na fanatice fundamentalista, no sectarismo rançoso que orienta as ações de não poucos agrupamentos religiosos e falanges políticas. O racismo, as discriminações de raça, credo, gênero e estamento social, que tantos males provocam na convivência humana, são, ao lado de outros atos alarmantes, ruidosas manifestações da odienta prática.

Evocando a Natureza (em menção à comemoração do “Dia da Árvore”) como fonte matricial de celebração da vida, os debatedores recordaram ainda que as diversidades abundantes, dadivosas, existentes no meio ambiente, deveriam servir de inspiração permanente aos seres humanos para o exercício de práticas saudáveis de tolerância e respeito no relacionamento de uns com os outros.

O segundo momento cultural frisante teve por cenário, já foi dito, a Academia Mineira de Letras.

Em concorrida e prestigiada solenidade, a escritora e professora Marley Duarte Costa lançou o livro “O amor e o tempo em O Forte, de Adonias Filho”, uma apologia ao amor, na definição da conceituada professora Letícia Malard. No preâmbulo, a autora justifica o trabalho apresentado: “o amor antes de tudo, acima de tudo, além de tudo, em busca do eterno”.

Letícia Malard, Luiz Carlos Abritta, Carminha Ximenes, Rogério Zola Santiago, em aplaudidos depoimentos, exaltaram o valor da publicação, sublinhando a importância do amor como instrumento essencial no processo de construção humana. Este escriba também registrou, em singela fala, a forte impressão deixada em seu espírito pela leitura do ensaio de Marley sobre a obra do grande escritor baiano.

Festa de grande brilho intelectual, o lançamento do livro “O amor e o tempo” ofereceu a público numeroso, de elevada representatividade na vida cultural, a oportunidade de travar um contato mais próximo com uma autora que se notabilizou pela “forma aguerrida com que se refere a uma emoção vital, como o amor”, conforme inspirada análise do jornalista Rogério Zola Santiago, e que se revela, também, como fiz questão de registrar, apta a compor uma bela ode ao amor.   “Antes de tudo, do amor puro, espiritualizado, mítico, ancestral, apropriado do amor divino, enfim: amor ao Amor”, como registra magistralmente Letícia Malard.


“Orçamento Impositivo” questionado novamente

Cesar Vanucci

“Atenta contra os direitos fundamentais à vida e à saúde”.
(Trecho da ação proposta pela Procuradoria Geral da República junto ao STF, questionando emenda constitucional aprovado pelo Congresso)

A Procuradoria Geral da República enviou representação ao Supremo Tribunal Federal contestando o chamado “Orçamento Impositivo”. O questionamento diz respeito a uma emenda constitucional aprovada pelo Congresso e promulgada em março de 2015. Tal emenda obriga o Governo ao pagamento de verba do Orçamento da União para utilização pelos congressistas em seus redutos eleitorais. Por esse dispositivo, o Executivo é obrigado a destinar até 1,2% da receita corrente líquida do orçamento - soma dos recursos provenientes de tributos - em serviços e áreas de atividades indicados pelos próprios parlamentares.

Os leitores de boa memória haverão de se recordar que a candente questão foi objeto de ruidosa “queda de braço”, ano passado, entre o Governo Federal, então sob o comando de Dilma Rousseff, e o Congresso. Os congressistas insurgiram-se contra a disposição do Executivo em não acatar a emenda. O Planalto perdeu a parada e a derrota foi divulgada estridentemente, pelos meios midiáticos e comemorada esfuziantemente pelos adversários como uma prova a mais da inexistência de uma base governamental sólida de sustentação político-partidária.

Afora prever o pagamento das emendas parlamentares individuais, a PEC ora contestada pelo Ministério Público altera as regras de financiamento dos programas de saúde executados pela União. Fixando mínimo de 15% da receita para investimento em saúde em até quatro anos, o texto estipula aplicação das verbas de maneira escalonada, 13,2% no primeiro ano. A Procuradoria salienta que a determinação reduz o atual financiamento federal para ações assistenciais e serviços públicos de saúde, instituindo percentuais progressivos e retirando recursos provindos da exploração de petróleo da chamada “fonte adicional para a saúde”. Relembra, também, que tempos atrás um projeto de lei de iniciativa popular, englobando mais de dois milhões de assinaturas, propôs que da receita bruta da União fossem investidos 10% na área da saúde, mas que na emenda promulgada, objeto da ação do MPF, esse percentual incide sobre a receita líquida. Portanto, se adotada, essa norma de elevação progressiva poderá redundar em perdas de vinte bilhões para o sistema de saúde até o exercício de 2017. Isso não se justifica, já que o setor da saúde, vital no programa das políticas públicas sociais, carece ser fortalecido e não enfraquecido. E tem mais: padece, como sabido e notório, de sub financiamento crônico.

Outro ponto bastante criticado pela Procuradoria no pronunciamento feito à alta Corte da Justiça diz respeito à proposta, constante da emenda, de canalização dos recursos da exploração de petróleo e gás, como fonte adicional. Essa medida decretaria perda bilionária para o SUS, Sistema Único de Saúde. No entendimento do Ministério Público Federal, a emenda relativa ao “Orçamento Impositivo” atenta, resumindo razões, contra os direitos fundamentais à vida e à saúde e contra o princípio da vedação do retrocesso social. Alveja cláusulas pétreas da Constituição. Não atende aos interesses nacionais.


Flanelinhas e flanelões. Acompanhando a propaganda eleitoral gratuita pela televisão inteiramo-nos da preocupação dos candidatos com a atuação dos assim chamados “flanelinhas”, face à incidência de irregularidades praticadas nos espaços sob seu controle em áreas de estacionamento público. Os compromissos assumidos no sentido de regulamentar essa modalidade de prestação de serviço, de modo a coibir abusos, respondem – há clara percepção do fato – aos desejos da comunidade. Entendemos, todavia, que esse louvável interesse relativo à momentosa questão do estacionamento de veículos nos logradouros deveria se estender também, com a mesma firmeza de propósitos, à ação dos “flanelões”. Assim compreendidos os responsáveis pelos negócios correspondentes a numerosos pátios espalhados em pontos estratégicos da geografia urbana, pra guarda temporária de veículos. Devido à inexplicável complacência das autoridades competentes, privilegiados pela ausência de normas acauteladoras dos interesses superiores dos clientes, os “flanelões” praticam extorsões ininterruptas contra motoristas. Os preços cobrados no rendoso negócio por eles administrados, fixados a seu bel prazer, tornaram-se, há muito, pode-se dizer, um verdadeiro caso de polícia. Já está passando da hora de uma ação vigorosa no sentido de se colocar freio na descomedida ambição por lucro que baliza hoje essa atividade. Candidatos e órgãos fiscalizadores precisam se compenetrar do dever que lhes assiste de colocar o palpitante assunto em pauta nas discussões travadas sobre as aspirações da coletividade em favor do bem-estar social.

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