quinta-feira, 29 de outubro de 2015

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XXXVIII ENCONTRO 
CULTURAL DA ACADEMIA





Deu a louca

Cesar Vanucci

Cadê o bombom que estava aqui?”
(Foi o que perguntou a autoridade antes de enquadrar
nos devidos conformes a serviçal de salário mínimo)

Deu a louca. Só pode ser.

Na mui’heroica e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, cenário constante de decisões e reações comportamentais (sobretudo na área de segurança pública) que o bom senso imagina serem sempre improváveis, um delegado deixa cair comentário desnorteante a propósito de ocorrência que reclama pronta e decidida ação policial. Moradores de um conjunto residencial do programa “Minha Casa, Minha Vida” denunciam estar sendo molestados pelo tráfico de drogas e por “milicianos” (ou seja, policiais civis e militares organizados em gangues) que atuam no conglomerado. A autoridade deixa entendido que os reclamantes “agiram irresponsavelmente” ao optarem por morar no local, sabedores de antemão do fato de que os incômodos vizinhos se achavam “radicados” há tempos na região. Em outras palavras: se o lugar já possui “legítimos donos”, vale dizer, os bandidos, por que cargas d’água, afinal de contas, as famílias contempladas pelo programa habitacional resolvem, de repente, se instalarem ali, em flagrante desrespeito aos “direitos adquiridos” dos antigos moradores?

· Enquanto isso rolava, zelosos Procuradores da Justiça Eleitoral carioca, no rigoroso exercício de seus deveres institucionais, expediam cartas de intimação a eleitores “acusados” de haverem feito doações na campanha política. Exigem que venham explicar tintim por tintim, em Juízo, as motivações reais do “ato pecaminoso” praticado. Nenhuma das doações feitas a candidatos da simpatia desses eleitores “chamados às falas” excedeu a soma de R$ 20,00. Isso mesmo que você acabou de ler: vinte reais. Os Procuradores levantam a grave “suspeita” de que as transferências de recursos das pessoas físicas indiciadas poderiam ocultar – quem sabe lá? - um novo “Lava-Jato”. Dá procês?

· Não se sabe bem se com a manifesta intenção de ofuscar as “otoridades” do Rio de Janeiro em matéria de excentricidade e prepotência, um outro delegado, dos quadros da Polícia Federal no Pará, protagonizou na mesma semana episódio capaz de estarrecer, como era costume dizer-se em tempos de antanho, um piedoso e benevolente frade de pedra. Enquadrou nos devidos trinques legais, inclusive arrebatando-lhe o emprego de salário mínimo, serviçal encarregada da limpeza da repartição pelo gravíssimo delito de haver se apoderado de um bombom em sua mesa de trabalho. Deixou bastante claro que, em sua esfera de atuação, manter-se-á sempre vigilante, como no edificante aconselhamento do escotismo, mode impedir que crimes de tamanha gravidade sejam consumados, em defesa da ordem constituída e bons costumes, salve, salve...

· Ao ser informado por alto do incidente, supus, inicialmente, com toda sinceridade, que os detalhes do relato repassado estivessem incorretos. Ou, então, que o episódio não teria acontecido por aqui, nestes pagos brasileiros, e, sim, talvez, numa daquelas regiões conturbadas do Oriente dominadas por enfezados talebãs e sectários outros com a mesma perversa índole. Mas, não, para assombro e aturdimento meu e de mais gente, o “palco” da inverossímil manifestação foi mesmo um recinto situado em Belo Horizonte, reconhecido pela sociedade humana e tradições religiosas como espaço sagrado resguardado das paixões e emoções incendiárias. O velório de um personagem político destacado, ex-senador José Eduardo Dutra, à hora em que amigos e parentes lhe prestavam as derradeiras homenagens de saudade, foi inacreditavelmente alvejado por integrantes de grupamento radical desprovidos de um mínimo de sensibilidade social. Impelidos pelo objetivo mórbido de propagar palavras de ordem raivosas mesmo que em situação pra lá de imprópria, os referidos elementos protagonizaram ato de vandalismo moral sem precedentes, tanto quanto saiba, na crônica política brasileira.


Símbolos inocentes da hediondez

Cesar Vanucci

As guerras são calamidades compostas
de todas as calamidades imagináveis.”
(Padre Vieira)

A matança ordenada por Herodes, narrada pelos evangelistas, é universalmente reconhecida como o evento mais remoto, na história conhecida dos homens, da hediondez praticada desde sempre contra criaturas inocentes. Em todas as quadras da existência podem ser colhidos abundantes exemplos de atrocidades envolvendo seres indefesos.

Mas foi mesmo com o advento da fotografia, nestes tempos modernos de avanços tecnológicos eletrizantes, que outros registros emblemáticos, nessa mesma linha apavorante, acabaram de fato se incorporando à lembrança perpétua das multidões.

Do período da feroz perseguição nazista aos judeus ficou o estonteante flagrante de uma criancinha assustada com os braços erguidos em sinal de rendição ante a ameaça dos fuzis de seus algozes da SS. A meiga figura  integrava grupo de prisioneiros “selecionados” para viagem sem retorno aos tenebrosos campos de extermínio.

Quase nos estertores da guerra do Vietnã uma câmera captou, em estrada apinhada de civis sem rumo, a carreira desabalada de uma garotinha em pânico, totalmente nua, com a pele do corpo desprendendo-se da carne. Ela acabara de ser atingida por fragmentos de bombas de napalm.

Mais pra frente, num desses periódicos e previsíveis conflitos tribais da África esquecida dos homens e abandonada por Deus (conforme ditado popular moçambicano), um correspondente de guerra captou essa imagem arrepiante. Imensa ave de rapina postada em posição de pre-ataque num local coalhado de vestígios de batalha onde jaz abandonado garotinho em estado de completa prostração.

Por ocasião da invasão ao Iraque, promovida, como proclamou o xerife George Bush, com o “sagrado” objetivo de implantar no país um edificante “modelo democrático” para o Oriente, outra cena estarrecedora percorreu mundo. Um grupo de meninos, o pavor estampado nos semblantes, surpreendido no interior de moradia arrombada, responde com gestos desesperados de capitulação incondicional às ameaças ferozes de patrulha armada até os dentes.

As fotos, tempos depois, das centenas de meninas sequestradas em escolas da Nigéria por alucinados guerreiros do Boko Haram, comparsa do sinistro ISIS, compuseram mais um capítulo tétrico da eterna tragédia do massacre de inocentes. A notícia, pouco mais tarde, de que algumas delas viraram “bombas humanas” em ações terroristas deflagradas na capital do país, Lagos, acresceu o desalmado lance do sequestro de componente simplesmente medonho.

Outra visão de barbárie inimaginável tem sido, ultimamente, projetada com frequência nas redes sociais. Dirigentes do Estado Islâmico confessam-se “orgulhosos” em poder exibir militantes mirins, trajados à moda da organização, empunhando adagas, junto a inimigos ajoelhados, à espera da fatídica ordem de comando para a degola desses famigerados “infiéis”. Ou seja, pobres viventes que não rezam pela cartilha do tresloucado agrupamento fundamentalista.

Noutro instante, chega até nós o grito angustiado do menininho do Iêmen, o corpo dilacerado, pedindo aos médicos e enfermeiras do hospital bombardeado para que não o deixem morrer. Materializa-se aí novo episódio emblemático de um cortejo infindável de crueldades. Tanto mais quanto se sabe que o desvelo dos agentes de saúde à volta do menor não foi suficiente, dolorosamente, para atender o apelo.

Voltando à África, onde os antagonismos tribais costumam derivar de perversos esquemas econômicos e geopolíticos impostos de fora pra dentro, deparamo-nos com mais um lance agoniante.  Documento típico da conturbação ecológica hoje reinante neste planeta azul. Crianças maltrapilhas disputam o acesso a água, com bois e cavalos, num tosco recipiente de madeira, em pedaço de chão árido despojado de vegetação. São protagonistas atordoados de uma situação extremamente dramática que expõe o elevado grau da irresponsabilidade humana no trato com a Natureza.

E tem também, por último, a história recente daquele anjinho sírio despejado pelas ondas do Mediterrâneo numa praia da Turquia. O incidente ganhou rapidamente, na emoção sofrida de bilhões de pessoas, a condição de símbolo atualíssimo de horrenda tragédia coletiva, deploravelmente sem qualquer fim à vista.

Os refugiados escorraçados de suas terras pelas lutas fratricidas, pela miséria implacável, pela intolerância religiosa, em consequência da insensatez de dirigentes políticos e grupos sociais elevada a nível de paroxismo impensável, escancaram o fracasso irreparável de segmentos influentes da sociedade humana na lida com questões essenciais na convivência civilizatória.

A imagem do soldado carregando o menor é de impacto avassalador. Soa como bofetada na cara da sociedade. Clama das lideranças, dos “donos do mundo”, uma reflexão, ancorada naturalmente na esperança, esse impulso heroico da alma, sobre o sentido de tudo quanto anda acontecendo. Perguntas espocam. Como reverter o quadro universal angustiante das desigualdades sociais? Como enfrentar as ameaças dos fundamentalismos, do racismo, da intolerância, geradores de infindáveis conflitos? Como abolir as guerras que as mães tanto abominam, conforme o dito de Horácio?

Padre Vieira, nos “Sermões”, concita-nos a uma meditação acerca dos males incuráveis das guerras. Todas as guerras. Lembra, serem elas, inseridas desde sempre em nossa história, calamidades compostas de todas as calamidades imagináveis, “em que não há mal algum que, ou não se padeça, ou não se tema, nem bem que seja próprio e seguro”.


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