sábado, 15 de dezembro de 2012

Belô, 115 anos

Cesar Vanucci *

"Mas que Belo Horizonte!"
(João Paulo II, na Praça do Papa)

As cidades são que nem gente. Possuem aura, esse mágico envoltório da matéria física, com as cores do arco-íris, intuído nas concepções místicas antes de ser aceito na experimentação científica de Kirlian.

As cidades exprimem na silhueta áurica que as envolve o estado d’alma da coletividade. O invólucro de Belô, com sua impressionante concentração demográfica para a juventude histórica ostentada, oferece as cambiantes típicas das tendências, sentimentos, emoções, inclinações, expectativas, crenças e vontades agasalhados em seu território. O tom amarronzado surpreendido aqui e ali denuncia vestígios de pobreza, alojados em morros mal vestidos, onde a ação pela inclusão social do Poder Público e da comunidade tenta se fazer presente, a cada dia de modo mais abrangente.

Azul com matiz de onda de mar

Vê-se, então, que esse tom amarronzado do desenho áurico da cidade não é capaz, o suficiente, de obscurecer o azul com matiz de ondas de mar em dia claro que traduz a contagiante generosidade praticada pela sociedade, como resposta aos perturbadores desafios largados à sua porta na tormentosa questão social.

A cidade apresenta-se, assim, para os que a conhecem, em suas realizações e imperfeições humanas, em seus instantes de glória e horas de frustração, mas que também a amam enternecidamente, com aspecto reluzente, entre o prateado e dourado, indicativos de uma aura positiva, reveladora de boa condição para se viver. Vá lá: o amor costuma turbar um pouco a visão dos fatos. Mas, se a condição de vida da cidade não é de todo a ideal, não deixa de ser, no mínimo, bem razoável, comparativamente com outros lugares importantes deste nosso conturbado mundo.

O amor é um sentimento poliglota

Quando despertou em mim o grande e incondicional afeto que sinto por Belo Horizonte, cidade que me acolheu como filho por obra e arte do ex-vereador José Domingos, aprendi valiosas lições. Uma delas: fiquei sabendo que o amor é um sentimento poliglota, exprimindo-se em diversos idiomas e dialetos. E que, também, no catálogo das vedações morais e éticas, não há lugar para condenações à "poligamia geográfica". O que sinto por Belô é forte e vigoroso, como fogo que arde sem se ver, na lírica imagem camoniana. Mas não é algo que possa subtrair ou empobrecer – e aí reside a beleza da relação – o que sinto pela minha terra natal, ou por recantos outros onde tenha pendurado meigas lembranças de um passado que armazena referências primordiais de minha preparação para o jogo da vida. Amo BH em sua vocação para a ação humanística e social, de marcante influência em meu destino espiritual e profissional. Amo Belô em seu apreço à liberdade e em seu grave senso de respeito democrático, que dela fazem centro de excelência do pensamento político nacional. Amo Belo Horizonte na manifestação soberba de sua cultura e arte erudita e popular. No seu colorido, no rompante de voz, na expressão corporal tão ricos em mineiridade e brasilidade. Amo Belo Horizonte na fraternidade da fala e gestos de seu povo que atingem, completamente, de forma apreciável, os espaços carentes que o esforço oficial não consegue ou não pode alcançar, o tempo todo, com a eficiência desejável. Amo Belo Horizonte, pelo que ela representa como cidade síntese da cultura e do humanismo de Minas e do Brasil. Amo Belô como mulher bela que é. Cheia de graça, "espanta melancolia e consola mágoas de amor", na definição tomada por empréstimo ao Livro dos Cantares.

Jeitão desconfiado da cidade

Quando cheguei a Belo Horizonte, na década de 60, vindo do interior, intrigou-me aquele ar de donzelice ciosa de castas prerrogativas, substituído, em ocasiões inesperadas, por lances de incandescência profana os mais singulares. Encabulava-me o jeitão desconfiado da cidade na acolhida ao forasteiro. Sobretudo o forasteiro das plagas triangulinas. O estado de espírito de Belô parecia-me chegado ao egocentrismo. Algo assim como de alguém que se deixasse extasiar pelo próprio umbigo, elegendo-o centro do mundo, numa overdose de autossuficiência.

Silêncio de tumba etrusca

Minhas avaliações repousavam em conceitos culturais trazidos da origem. Não conseguia, por isso, entender a dificuldade da cidade, caixa de ressonância natural das ocorrências do Estado inteiro, para assimilar os êxitos pessoais de valores que emergiram para a notoriedade nacional, valendo-se de conexões diretas com o Rio e São Paulo, sem passar por estágio belorizontino. Era assim que eu via as coisas com relação a empresários de Uberlândia e Uberaba e seus empreendimentos vitoriosos, solenemente ignorados na divulgação e no apreço da Capital. Recorrendo a alguns poucos exemplos: as pessoas, de modo geral, recebiam com um misto de surpresa e incredulidade revelações do tipo de que em Uberlândia estava plantado o mais importante polo do comércio atacadista do país. Era o caso, também, na literatura, da meteórica ascensão de Mário Palmério às altitudes acadêmicas sem que tivesse obtido o prévio reconhecimento de seu talento pelas respeitáveis elites da inteligência local. Era o caso, ainda, no campo da arte e comunicação, da vertiginosa escalada de sucessos de Augusto Cesar Vanucci não registrada com o destaque próprio por ocasião dos sucessivos títulos ganhos, primeiro no Teatro do Estudante, depois como ator de cinema e teatro, produtor de televisão, com "Emys" e "Ondas" no amplo acervo dos troféus arrebatados internacionalmente, ou como um dos criadores do famoso padrão global de qualidade. Afligia-me também, de princípio, o silêncio de túmulo etrusco estabelecido à volta da portentosa obra de pensadores da altura de Alexandre Gonçalves Amaral e de Juvenal Arduini.

Algum tempo passado, passei a perceber melhor tudo: Belo Horizonte, como toda cidade, é um estado de alma. Coisa de gente. Exprime sentimentos e emoções humanos da coletividade que abriga. Não sentimentos e emoções de deuses ou de anjos. De qualquer modo, aliás, se nos valermos das anotações sagradas e mitológicas, deuses e anjos deixam muitas vezes explodir reações que lembram bastante personagens humanos.

No caso, o sentimento da cidade traduzia melhor as características de outras partes das Gerais. Destas Minas Gerais muitas, na definição do nunca assaz louvado Guimarães Rosa. Das várias Minas, o pedaço correspondente ao Triângulo Mineiro era à época – e foi assim no curso de muitos anos – o de menor peso no conjunto das tendências e variáveis culturais, políticas e econômicas a influírem na formação do pensamento coletivo belorizontino.

Quando o amor irrompeu...

Quando irrompeu, o amor fincou raízes, encorpou-se, espalhou ramagens, adquiriu a feição pronta e acabada de uma empreitada bem sucedida. O processo foi todo repleto de perguntas silenciosas e de avaliações também mudas. As respostas brotavam à medida que eu conseguia penetrar a envolvente matreirice mineira da cidade. Entendê-la em seu jeito de ser tão paradoxal. De um lado, a abertura, diria escancarada para o universal, o holístico. De outro, o recolhimento puritano, provinciano, suburbano até.

Foi assim, desse modo, que me amarrei, afetivamente, à Capital dos 115 anos.

Amor amadurecido, encharcado de compreensão, onde entram todas as cambiantes e entonações dos laços e entrelaçamentos humanos feitos para durar. Mais até: para permanecer. Amor feito de doces e irreveláveis segredos, mistérios e fascínios, como bem se ajusta às ligações que se pretendem eternas.

* Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)

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