sexta-feira, 1 de junho de 2018


A propósito dos direitos femininos


Cesar Vanucci
  
“Tirante a mulher, o resto é paisagem.”
(Dante Milano, poeta) 

Numa terna cena de infância, extraída do baú das recordações, vejo desenhado o perfil da primeira líder feminista de cuja existência tomei conhecimento. Era uma moça de seus 30 anos, dona de semblante extremamente simpático e de corpo bem proporcionado. Trescalava obstinação pelos poros. A gesticulação exuberante, herança napolitana, nela reforçava as palavras ditas em tom de voz quase cantante. Durante um tempão, já adulto, alimentei sem poder concretizar o desejo de manter com ela um dedo de prosa. Até hoje carrego dúvida que um bom papo poderia certamente desfazer. Teve ela, a qualquer tempo, exata percepção do significado precursor dos gestos e ações publicamente assumidos?

Todas as tardes, eu a avistava descendo a ladeira que dava num campo de futebol improvisado, onde a garotada tocava suas peladas movidas a bola de pano, brigas inofensivas e um que outro palavrão, punido às vezes com chinelada. A sensação era de que Verlaine encontrara naquele gracioso desfile vespertino inspiração para os versos: “Quando ela anda, eu diria que ela dança”. Pontualidade parecia atributo todo seu. Havia quem acertasse o relógio à sua passagem. Era o momento em que as janelas das redondezas se fechavam estrepitosamente, em sinal de zanga mal contida. Murmurações e olhares recriminatórios acompanhavam-lhe a trajetória por detrás das venezianas, até que escapulisse por completo do raio de visão do falso puritanismo entocaiado. Tudo compunha clima de excitante e novelesco mistério que aguçava demais da conta a cabeça da gente.
Por que as coisas rolavam daquela maneira? O que nossa heroína andava aprontando a fim de provocar tanto transtorno?

Preparem-se os eventuais leitores destas mal datilografadas para um baita impacto. Nossa intrigante personagem, apenas e simplesmente, foi a mulher que primeiro ousou, naquela aprazível cidade do interior, na cara e na valentia, fumar em público. Ousou mais – “imaginem só o descaramento!” -: foi também a primeira mulher a andar de calça comprida pelas ruas, num desafio aberto aos padrões predominantes em matéria de "veste recatada". Tais lembranças, de simbólico surrealismo, arrancando dos mais jovens, com toda certeza, estardalhantes risadas, acodem-me sempre que alguma questão ligada aos direitos femininos ganha destaque no debate comunitário.

Ponho-me a imaginar que discussões a respeito do tema, consistentes em afirmações de cidadania, tenham o mérito de abrir efetivas condições para a quebra de novos elos na gigantesca engrenagem que aprisiona a mulher, em extensas áreas geográficas, sociais, profissionais e culturais, a figurinos de concepção morbidamente machista. Mas quantas manifestações se farão necessárias ainda, ao longo dos anos, para facilitar à mulher o acesso por inteiro a direitos naturais, independentemente de sexo, inerentes à condição humana? Poder-se-á argumentar que esses são, na verdade, direitos não desfrutados na integralidade pela grande maioria dos seres humanos. Perfeito. Mas não há também como negar que a força invasora masculina chegou primeiro e se apoderou dos melhores pedaços nos espaços liberados. 

  
Paradigmas engessados no tempo

Cesar Vanucci

"O palpite de uma mulher é muito
 mais preciso que a certeza de um homem."
(Rudyard Kipling)

Embora estejam sendo significativos os avanços em conquistas associadas ao desenvolvimento pessoal da mulher, fruto da expansão da consciência coletiva quanto à verdadeira natureza do papel que toca a cada cidadão desempenhar no fascinante e complexo jogo da vida, existe ainda por aí um oceano inteiro de problemas a ser navegado na busca de soluções compatíveis com a dignidade humana. É gente que não acaba mais, homens e mulheres, a proceder no dia-a-dia que nem se fosse o pessoal lá da rua de minha meninice (história narrada no artigo anterior). As janelas prosseguem hermeticamente trancadas e figuras espectrais estão ainda a acompanhar, com desconfiança, por detrás dos reposteiros e venezianas, à luz mortiça dos candelabros e candeeiros, o esfuziante processo que corre solto lá fora em favor da emancipação feminina.

Essa gente faz ouvidos moucos a justos clamores nascidos do inconformismo, da inteligência e da sensibilidade diante dos paradigmas rígidos bolados pelo farisaísmo, pelo talebanismo no campo das ideias, na avaliação do comportamento da mulher. São paradigmas engessados no tempo. Para os retrógrados têm a mesma inexpugnável consistência das muralhas incas de Sacsayhuaman. O pessoal não consegue enxergar que são paradigmas irremediavelmente condenados pela doença letal de uma “certeza” trazida de momento obscurantista, soterrado na caminhada da história.

A briga pela derrubada de tais paradigmas é braba, longa, barulhenta. São ainda fortes os ecos de certas palavras de ordem procedentes de eras remotas, sintetizadas na frase padrão “lugar de mulher é em casa”. Os preconceitos vigorantes apresentam, entre nós, em muitos lugares, é bem verdade, efeitos atenuados em matéria de violentação à personalidade, se comparados com as inacreditáveis situações vividas em tempos antigos e em outros rincões de nossa própria época. Mas conservam vestígios culturais rançosos, daquelas épocas absurdas em que algumas coletividades eram forçadas a absorver, em suas regras de vida e crenças, a ideia, por exemplo, de que a mulher não possuía alma. Ou de que, no plano dos sagrados deveres conjugais, como amorosa e dedicada companheira, devesse se preparar para fazer jus ao prêmio máximo da loteca dos deuses, consentindo em que a enterrassem viva com os pertences e despojos do pranteado marido, senhor seu amo, quando de sua (dele) partida desta para melhor.

Todos estamos seguros de que provêm de uma visualização desfocada da realidade, mesclada com flagrante injustiça social, os escandalosos problemas trazidos, volta e meia, a debate nos frequentes e necessários conclaves organizados com o objetivo de fortalecer a valorização do papel feminino no contexto social. O desfile de absurdos é composto de revelações estonteantes. Abarcam desde inacreditáveis práticas escravagistas, processos de mutilação sexual, aceitos em nome de princípios religiosos, até inaceitáveis restrições no acesso ao mercado de trabalho a cargos e a promoções idênticos aos que são concedidos aos homens. Isso, sem falar na participação restrita nas decisões políticas e, também, nas limitações de ações nos campos técnico e científico e desfrute de bens educacionais. E por aí vai...




Uma questão crucial

Cesar Vanucci


"Pois a mulher é a grande educadora do homem."
(Anatole France)


Os registros estatísticos dão conta de que mesmo em países tidos como desenvolvidos, caso, por exemplo, do Japão, os salários mostram-se desiguais entre homem e mulher. A média da remuneração da mulher situa-se abaixo da metade da média da remuneração do homem. As possibilidades de ingresso em empregos, nesse mesmo tipo de confronto, eram até recentemente de 61% no Japão, 58% na Holanda e 16% nos países árabes. Estudo recente revela que, no Brasil, as mulheres negras recebem, em média, a metade dos salários atribuídos aos homens negros. Os quais, por sua vez, recebem a metade dos salários conferidos aos homens brancos. Quer dizer, o mercado de trabalho garante-lhes a metade da metade...

Sabe-se mais: de 1,2 bilhão de pessoas que, no decênio passado, viviam em estado de pobreza absoluta (renda anual inferior a 370 dólares), 70% eram mulheres.

Outro levantamento esclarecedor diz respeito às chances de participação feminina no poder das decisões. As mulheres ocupavam, no final do século passado, apenas 20% dos cargos administrativos, 6% dos cargos de direção, algo equivalente aos chamados postos ministeriais. Tem mais: meio milhão de mulheres (99% do chamado terceiro mundo) morriam, anualmente, de acordo ainda com as estatísticas, vitimadas por patologias vinculadas à maternidade.

Não há como ignorar, por outro lado, o tratamento diferenciado, de modo geral desrespeitoso, com que a mídia, de modo geral, acionada por preconceitos milenares dominantes no inconsciente coletivo, se ocupa das coisas da mulher, em geral. O fato trivial de uma mulher que, no exercício de função pública, resolva assumir ostensivamente um caso afetivo é de molde a suscitar um turbilhão noticioso, que vou te contar...

Está na cara que os dados focalizados nesta sequência de comentários não esgotam o temário difícil e, sob incontáveis aspectos, doloroso da problemática enfrentada pela mulher. Mas eles se incumbem de projetar as perturbadoras circunstâncias que envolvem a questão, prioritária no processo da promoção humana. O Banco Mundial anota algo muito importante e que permanece no olvido da maior parte dos viventes, homens ou mulheres: “A desigualdade entre os sexos paralisa a produtividade e dificulta o crescimento econômico”.

É de toda oportunidade salientar, de outra parte, que, antes de serem problemas da mulher, as questões que impedem ou dificultam, em tantas partes do globo e em tantas esferas de atividade, a ascensão feminina na sociedade, são problemas cruciais do ser humano. De todos os seres humanos, em todos os continentes, independentemente de sua nacionalidade, etnia, credo religioso, ideologia política ou formação cultural. Quanto mais convicções individuais de sentido renovador puderem se reunir à volta de constatações óbvias como essas, maiores se tornarão as possibilidades de podermos, algum dia, todos juntos, construir um mundo melhor. Um mundo melhor para mulheres, homens, crianças, adultos, negros, brancos, amarelos, árabes, judeus, sãos, enfermos, cristãos, budistas, maometanos, pobres, ricos, remediados e excluídos. Tudo está relacionado com tudo.

Fique, aqui, por derradeiro, uma confissão pessoal. Carrego comigo, não é de hoje, uma instigante sensação. Ponho-me, às vezes, diante das vicissitudes impostas à mulher no longo curso da história humana, a imaginar que poderá ter sido armada, lá em cima, na hora do juízo final, para os viventes que sintam dificuldades em reconhecer a igualdade em direitos do homem e da mulher, uma desnorteante surpresa. Na hora da inevitável prestação de contas pelos atos aqui praticados, Deus revelar-se mulher. Negra.

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