sexta-feira, 21 de junho de 2013

Fábrica de moleque malcriado

Cesar Vanucci*

“Nenhum taverneiro poderá vender
farinha em cuia, que é ladroeira..."
 (Edital de 1868)

Na reorganização recente de minha biblioteca, meti a mão no fundo do baú, desencavando algumas preciosidades em matéria de livros e textos soltos. Foi assim que andei redescobrindo um exemplar do “Elixir do Pagé”, sobre o qual João Dornas Filho assim se expressa: “Um injustiçado pudor sempre dificultou a leitura do que eu considero os melhores versos de Bernardo Guimarães, os seus poemas eróticos. Sugeri, por mais de uma vez, a inclusão desses versos numa antologia galante, que contivesse outras jóias líricas da nossa poesia e continuo a pensar que constituiriam um escrínio precioso da nossa poética”.

Uma outra publicação rara, ofertada pelo próprio autor, a pessoa de meu apreço pessoal por ocasião de visita que lhe fez, na década de 30, em sua fazenda em Ponte Nova, é o livro que contém o desassombrado pronunciamento nacionalista de Arthur Bernardes, na sessão de 18 de junho de 1937, na Câmara dos Deputados, sobre a Itabira Iron.

Sem que me veja em condições de poder explicar em detalhes, recorrendo apenasmente à memória, como foram parar em meus “arquivos implacáveis”, deparei-me, também, nessa mexida, com documentos de nítido caráter picaresco que me disponho, aqui e agora, pelo seu sabor hilário, a trazer ao conhecimento dos preclaros leitores. O que chega aí é a transcrição de uma portaria editada pela Câmara Municipal de Catimbau, Província de Minas Gerais, no ano de 1868. Foi encontrada nos arquivos do INPM.
“Antônio Pires de Noronha Franco, fiscal aprovado pela Câmara desta Vila de Catimbau Minas Gerais:
Faço saber aos povos desta vara que no dia 1° do mês que vem sairei em triunfo de correção aferindo os pesos de todos, bem como as respectivas.
Art. 1°- Ficam proibidos os regos. Aqueles que não mandarem tapar os que tiverem, bem como todos buracos, serão multados em 20$000 cobre.
Art. 2°- Nenhum animal de ordem das cabras poderá roer pelo vizindário.
Art. 3°- Nenhum negociante ou taverneiro, ainda mesmo Coronel da Guarda Nacional, poderá vender farinha em cuia, que é ladroeira.
Art. 4°- Negro sem bilhete, tarde da noite na rua, é ladrão. Multa no senhor de 6$000.
Art. 5°- Português de braço dado com negra cativa, alta noite, é fábrica de moleque malcriado e sem-vergonha. Cadeia nos dois, um em cada xadrez, para evitar dúvidas.
Art. 6°- Boi ou vaca deitado na rua de noite, sem lamparina no chifre, do modo que os andantes não o vejam bem, multa de 5$000.
E para que não digam que não sabiam mando afixar este edital e mais outro na porta de frente e de trás do boticário, que é o lugar onde se fala da vida alheia.
Em 4 de março de 1868.”

Proponho-me a oferecer na sequência, a transcrição de uma decisão distribuída ao Juiz de Direito da comarca de Porto de Folha, Bahia, datada de 15 de outubro de 1833.


Manoel Duda, “homine debochado”

“A capadura deverá ser a macete."
 (Decisão judicial de 1833)

No documento abaixo transcrito, que desencavei do fundo do baú, conta-se como o cabra da peste Manoel Duda, por causa de malefícios praticados contra a mulher de Xico Bento, foi condenado à capação a macete, nos idos de 1833, na comarca de Porto de Folha. Já na súmula da decisão, é sublinhado que “comete pecado mortal o indivíduo que (...) faz coças de suas victimas desejando a mulher do próximo para (...) suas chumbregâncias”.
A decisão do Juiz Municipal, acolhendo representação da Promotoria, é abaixo reproduzida, respeitada a ortografia original, inclusive com a expressão xumbregância grafada com ch.
“VISTOS, ETC.
O adjunto de Promotor Público, representa contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant’anna, quando a mulher do Xico Bento ia para fonte, o supracito cabra que estava de tocaia em uma moita de mato sahiu della de supetão e fez proposta a dita mulher (...), para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recusasse, o dito cabra abrafolou-se ella, (...) deixando as encomendas della de fora e ao Deus dará, e não conseguio matrimonio porque ella gritou e veio em assucare della Nocreto Correia e Clementos Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante, e pediu a condenação delle como incruso nas penas de tentativas de matrimonio proibido (...). As testemunhas, duas são de vista porque chegaram no flagrante e bisparam a perversidade do cabra (...). Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qualquer nauvrágio do sucesso faz prova (...):
CONSIDERO – que o cabra Manoel Duda, agrediu a mulher do Xico Bento por quem roia a brocha, para conxambrar, com ella, coisas que só o marido della, competia eonxambrar, porque eram casados pelo regime da Santa Igreja Catholica Romana; - que o cabra deitou a paciente no chão e quando ia começar as suas conxambranças, viu todas as encomendas della que só o marido tinha o direito de ver; - que a paciente estava peijada e que em conseqüência do sucedido, deu à luz de um menino macho que nasceu morto; - que o cabra é um suplicante deboxado que nunca soube respeitar as famílias, tanto que quis também fazer comxumbranças com a Quitéria e Clarinha, que são moças donzellas, e não conseguio porque ellas repugnaram e deram aviso a polícia;- que Manoel Duda é um sujeito perigoso e que não tiver uma causa que atalhe a perigança delle, amanhã está metendo medo até nos homens por vias das suas patifarias e deboxes; - que Manoel Duda está em pecado mortal porque nos Mandamentos da Igreja é proibido desejar a mulher do próximo (...); - que sua Majestade Imperial (...) precisa ficar livre do cabra Manoel Duda para secula, seculorum amém, arrefem dos deboxes e semveregonhesas por elle praticados.
POSTO QUE:
Condeno o cabra Manoel Duda, pelo malifício que fez a mulher do Xico Bento (...) a ser capado, capadura que deverá ser feita a macete.
A execução deverá ser feita na cadeia desta Villa, Nomeio carrasco o Carcereiro. Feita a capação depos de 30 dias o mesmo Carcereiro solte o cujo cabra para que se vá em paz. O nosso prior aconselha – Homine debochado eboxatus mulherorum inovocabus est sententias quibus capare est macete macetorim carrascus sine facto nortre negare pete.
Cumpra-se e apregue-se editaes nos lugares publicos. Apelo ex oficio desta sentença para o Dr. Juiz de Direito desta Comarca.
Porto de Folha, 15 de outubro de 1833  a)   Manoel Fernandes dos Santos, Juiz Municipal suplente em exercício.”


Um subversivo de nome Dionísio

“Em minha humilde opinião, ele deve
ser enforcado e ficar na forca até feder."
(Trecho da correspondência do Juiz de Paz
de um lugarejo baiano a Dom Pedro II)

Transcrevo abaixo mais um texto solto, que indoutrodia retirei do baú.
Incomodado com a presença, no lugarejo em que pontificava como representante da lei e da ordem, de um tal Dionísio, pelo visto republicano bagunceiro e anti-clerical incorrigível, Antônio Pires de Oliveira, também conhecido por Tonico Paçoca, no exercício de suas elevadas funções de Juiz de Paz, resolveu manter em cativeiro o “perigosíssimo anarquista”, aplicando-lhe severos corretivos. Entendeu também de seu indeclinável dever dar conta a Sua Alteza, o Imperador Dom Pedro II, dos malfeitos provocados em seus bem protegidos pagos pelo indigitado subversivo. A inusitada ocorrência, registrada no Arraial de Sapecado, Província da Bahia, no ano da graça de mil oitocentos e setenta e cinco, vem relatada com pormenores em pitoresco ofício. O texto do Tonico Paçoca foi reproduzido, alguns anos atrás, numa revista da capital da Bahia, “Mensageiro da fé”.

Protestante, maçom e republicano, o tal de Dionísio passou maus bocados nas mãos do zeloso guardião dos valores imperiais, morais e cristãos, pelo que se deduz da missiva. Conservamos na reprodução aqui trazida, a ortografia utilizada na correspondência do zeloso Tonico Paçoca ao Imperador.
“Ilmo. Sr. Imperadô,
Antônio Pires de Oliveira, vurgamente conhecido por Tonico Paçoca, moradô no arraiá do Sapecado e juis de pais do mesmo mencionado arraiá, vem por meio da presente adeclará para voça ecelentícima o que abaixo vai dizê: Appareceu por aqui “um tar de Diunizo” que intentô virá o povo na lei do protestante, maçono e arrepublicano, adeclarando que voça Sinhoria é um bobo que faz de nóis pau de amarrá égua. Eu, im vista das formação que tive por quexa do spetor, prendi em sufragante o referido Diunizo que se acha amarrado legalmente dos péis e das mãos, em corda, pur não havê argema, e purtanto eu peço a voça Sinhoria que me arresponda o que qué que eu faça do bicho, o quar eu tenho martratado pior du que um caxoro.
Na minha mirde opinião ele deve sê enforcado e ficá na forca até fedê, porque não é brinquedo a bobage que ele bota em voça Sinhoria de todo nome feio e eu já quiz dá nelle promorde as injurias que esse tranca diz a seu respeito.
Espero a sua resposta pra meu gunvernu.
No mais pro sê.
Seu amigo e defensô perpetu.
(a) Antonio Pires de Oliveira
-- Dado e paçado no arraiá do Sapecado no dia 28 de fevereiro do anno que estamos n’ele”.

Ignora-se qual tenha sido o desdobramento do caso. Se as autoridades superiores da Corte Imperial ficaram inteiradas do que aconteceu no “Arraiá do Sapecado”.

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